Em toda a história dos videogames, sempre surgem jogos que mudam tudo: o panorama do seu gênero, as plataformas em que são lançados, e até mesmo a maneira como enxergamos o meio como um todo. Um destes jogos veio ao mundo há exatos 15 anos: em 22 de março de 2005, a Sony lançava o primeiro God of War para o PlayStation 2.

Uma aventura cheia de brutalidade baseada na mitologia grega, God of War se transformaria em um dos mais importantes nomes dos videogames nas décadas seguintes, e para celebrar seu aniversário, o The Enemy relembra a história de como o título foi feito, em uma história de desenvolvimento que pode ser considerada uma verdadeira epopeia.

Em 2005, o desenvolvedor de jogos David Jaffe buscou inspiração em uma das mais antigas fontes de histórias da humanidade: as lendas de deuses como Zeus, Hades, Poseidon e os demais habitantes do Olimpo. A mitologia grega em si já havia servido de base para muitas obras da cultura pop, mas Jaffe viu nestes contos o terreno ideal para um jogo.

“Existem muitas mecânicas de jogo na mitologia que já estão prontas. A cabeça da Medusa, os raios de Zeus e as lutas contra ciclopes. Isso tudo, misturado ao meu amor pelo material original, fez a gente pensar: ‘ok, temos de fazer esse jogo’”, contou Jaffe ao documentário de making of oficial de God of War.

David Jaffe God of War

David Jaffe: o diretor do primeiro God of War

Reprodução/PlayStation

Jaffe era provavelmente o nome mais conhecido do estúdio Sony Santa Monica. Nos anos 1990, ainda na época do primeiro PlayStation, foi a mente criativa por trás do game de combate veicular Twisted Metal. Já a desenvolvedora na qual trabalhava tinha apenas três anos de operação quando começou a produzir os primeiros conceitos de um novo jogo de ação.

Fora o uso da mitologia, ninguém sabia exatamente como o jogo seria ou qual seria sua história. Tudo o que sabiam era qual tecnologia seria usada. Na época, o estúdio contava com apenas um título no portfólio: o game de corrida futurista Kinetica, lançado em 2001, ainda no início da vida do PlayStation 2.

Apesar de ter alguns anos de estrada, a Sony Santa Monica ainda buscava se provar para a Sony e para o mercado de games. O motor gráfico de Kinetica, construído para jogos de corrida, não era muito bem adaptado para o gênero de ação, mas seria utilizado mesmo assim.

Shannon Studstill

Shannon Studstill, chefe da Sony Santa Monica: "No início, não tinhamos motor gráfico para o jogo, nem uma equipe familiarizada com o gênero de ação"

Reprodução/PlayStation

“(Na época), Jaffe e eu conversamos sobre quais seriam os próximos passos do estúdio. Ele tinha essa grande visão, e era basicamente isso. Não tínhamos um motor gráfico para jogos de ação e aventura, ou uma equipe que trabalhou com esse gênero antes”, relembrou Shannon Studstill, ex-chefe da Sony Santa Monica (e hoje comandante de um estúdio de games do Google Stadia), em entrevista à série Conversations with Creators. “Foi um desafio atrás do outro para construir a fundação do que conhecemos hoje como um dos pilares do PlayStation.”

A visão de Jaffe seria preponderante em praticamente todos os aspectos sobre como o primeiro God of War foi concebido. Fã de filmes clássicos dos anos 1980, o diretor tinha como principal visão a de criar um jogo que constantemente colocasse o jogador diante de desafios grandiosos e cenas impactantes.

“Eu sempre quis fazer um jogo em que você saísse em uma grande aventura. Havia um senso de brutalidade e violência, francamente. Era algo que muitos fãs desse estilo de jogo (de aventura) gostavam. Pensamos: e se a gente misturar isso com a mitologia grega, que já é muito violenta, se você ler as histórias”, ponderou Jaffe durante o especial Game Directors Live, que juntou os diretores dos games da franquia.

Todas essas referências que Jaffe trazia para a sua equipe ajudaram a formar uma aventura cruel e épica pelos mundos da mitologia grega, mas isso não seria o suficiente caso o protagonista não fosse igualmente marcante. Mas o processo para criar este herói teve lances curiosos.

A criação de Kratos

Para Jaffe, o herói de God of War deveria ser brutal, sujo, violento, anti social, chateado, irritado e… f*#@-$&. “Esta foi a direção que passei para o (líder do setor de artes conceituais) Charlie Wen”, lembrou o desenvolvedor ao making of do game. “O mais difícil de criar o visual de Kratos foi porque ele não tinha uma história definida”, relembrou Wen. Jaffe, por sua vez, deu uma recomendação fundamental: “Venha para o trabalho nervoso, e veja o que acontece”.

Kratos artes conceituais

Artes conceituais não utilizadas de Kratos: herói poderia ter tido tatuagens azuis e até bebê

Reprodução/PlayStation

Antes de se tornar o espartano coberto de cinzas brancas e tatuagens vermelhas que todos conhecemos, Kratos foi um homem de muitas faces. As artes iniciais mostravam um homem de dreads carregando um animal nos braços, uma espécie de guerreiro mascarado e uma miríade de bárbaros e guerreiros mal-encarados. “Cada um veio com sua visão de raiva, o que os deixava furiosos”, acrescentou Jaffe. “Isso foi legal, porque deu para ver como cada um lidava com a fúria, o caos.”

Kratos passou por tantas mudanças até chegar em seu icônico visual que até mesmo uma versão preliminar deixou o quadro de artes conceituais e chegou a ser modelada nos primeiros protótipos do game, ainda batizado de Dark Odyssey. Seu visual, embora similar à versão final, tinha tatuagens azuis, e até seu nome era diferente: Dominus.

Brutal, sujo, violento, anti social, chateado, irritado e… f*#@-$& - O conceito de David Jaffe para a criação de Kratos

Inicialmente, David Jaffe queria que o herói tivesse tatuagens vermelhas, como ficou na versão final, mas o restante da equipe achou que a cor era muito clichê. No fim das contas, o próprio diretor fez valer sua visão original para o personagem, incluindo o nome: Kratos.

Cory Barlog

Cory Barlog: um dos pais de Kratos

Reprodução/The Enemy

Embora o conceito primordial de Kratos tenha vindo da cabeça de Jaffe, nada teria ido para a frente se o personagem não parecesse convincente sob o controle do jogador. Seus movimentos de luta carregados de fúria acabariam vindo das mãos de outro desenvolvedor: Cory Barlog, que viria a se tornar diretor de God of War no futuro, no segundo game da saga, e na continuação de mesmo nome lançada para o PlayStation 4 em 2018.

“Até Cory entrar com a animação de Kratos, eu poderia mostrar para todo mundo vídeos do Russell Crowe em ‘Skinheads - A Força Branca’ até não aguentar mais. E eu fiz isso mesmo: mostrava o vídeo e falava: ‘veja como ele bate a cabeça desse cara no bar! Mas até Cory entrar e levarmos isso para uma animação verdadeira e expressiva, ele era um personagem morto. Ele é tão pai de Kratos quanto eu, ou até mais”, revelou Jaffe anos depois, durante o Game Directors Live.

Barlog, por sua vez, relembrou a primeira vez em que Jaffe lhe apresentou o conceito de Kratos: uma mistura do general Maximus, vivido por Russell Crowe em Gladiador, e Martin Riggs, o policial insano de Mel Gibson na saga Máquina Mortífera. “Primeiro dia de trabalho, ele falou: ‘mitologia grega, Martin Riggs, Russell Crowe, vai’”, descreveu Barlog.

Kratos God of War
Divulgação/PlayStation

A criação do gameplay de God of War

Como diretor, a visão de Jaffe era clara, mas seu estilo beirava o oposto disso. Suas definições vagas para artistas e animadores sobre como Kratos deveria ser e sua obsessão por fazer um jogo com o mesmo sentimento de aventura das obras que ele gostava quando criança montaram um ambiente no qual havia uma liberdade quase caótica para criar. Kratos ajudou a moldar o mundo a sua volta, e vice-versa.

Desde o começo, a Sony Santa Monica sabia que queria fazer um jogo de ação. Na época, o cenário era dominado por títulos japoneses, como Devil May Cry e Onimusha, que foram claras inspirações para o estúdio. A equipe sabia da enorme influência oriental no gênero que queria trabalhar, a ponto de aceitar a tarefa em tom de desafio.

“Teve uma época durante o desenvolvimento em que produtores japoneses estavam falando que produtores ocidentais jamais fariam um bom jogo de ação e aventura. Meio que na cara dura, eles disseram que esse bons jogos desse gênero eram japoneses. Os produtores ocidentais não têm a sensibilidade certa para isso”, afirmou Barlog ao Conversations with Creators.

“A gente encarou como desafio, como ‘legal, a gente vai cuidar dessa’. Acho que isso nos incentivou a pegar as melhores partes de jogos que gostamos, dos Castlevanias, dos Rygars, Zelda, e juntar tudo. Vamos fazer o jogo que nós queremos jogar”, contou Barlog.

A facilidade para encaixar diferentes tipos de golpes e a movimentação precisa no timing de acertos, esquivas e defesas deixa bem evidente a inspiração do combate de God of War no design de jogos oriental.

Vamos fazer o jogo que nós queremos jogar - Cory Barlog, sobre as influências de God of War

Das ideias de um protagonista feroz que permearam as primeiras artes conceituais, vieram as Lâminas do Caos, um conjunto de espadas acorrentadas ao braço de Kratos que lhe deram uma identidade única, e tornaram seus golpes facilmente reconhecíveis.

A maior assinatura do gameplay de God of War, porém, viria de uma mecânica bem conhecida: o Quick Time Event, que pede ao jogador o acerto de botões em intervalos rápidos para dar andamento a uma cena, não era tão novo assim. Ele foi muito explorado nos filmes interativos dos anos 80 e alcançou seu formato moderno quase duas décadas depois com Shenmue. Porém, foi God of War que popularizou de vez a mecânica entre os jogos de ação, especialmente pela maneira cinematográfica com a qual foi realizada.

Kratos God of War
Divulgação/PlayStation

De inimigos comuns a grandes chefes, o quick time event serviu para que as lutas de God of War sempre mantivessem o jogador com a adrenalina de quem acompanha o desenrolar tenso das cenas de filmes de ação. No fim das contas, a equipe de desenvolvimento percebeu que o videogame, o meio no qual trabalhavam, permitia a criação de sequências que poderiam transpor essa sensação de uma maneira que o cinema jamais conseguiria.

“Nossa visão original era muito, muito brutal”, afirmou Barlog no making of do jogo. Jaffe, por sua vez, minimizou a violência do cinema: “É engraçado, porque decidimos procurar cenas de luta em filmes, como referência de movimentação e crueldade. A gente achou que ia encontrar tudo isso (no cinema), mas as brigas eram bem tranquilas se você parar pra pensar. Nossas referências se limitaram a dois ou três filmes bem desconhecidos”

A história e os desafios do desenvolvimento

O senso de urgência também permeou o andamento da história. Ela sempre move Kratos adiante, para a próxima tarefa, e aqui a mitologia grega desempenhou um papel fundamental. Ao entregar sua alma a Ares, o Deus da Guerra, Kratos inicia um período de longos anos servindo os deuses, o que sempre o colocou diante de missões monumentais.

Desde o primeiro combate contra a Hidra, passando pelos desafios no Templo de Pandora até a penosa travessia do Submundo, God of War quer que você vivencie cenas e cenários épicos, evitando ao máximo as repetições tão comuns nos sistemas de progressão de um jogo. A câmera, que o jogador não podia controlar, permitiu ao estúdio trabalhar com o aspecto de grandiosidade que uma aventura dessas pedia.

O mais curioso disso tudo é que, nos momentos em que o jogador mais tinha controle, a estrutura de fases era a mais simples possível. Embora o jogo mostre que muitas coisas acontecem ao redor de Kratos enquanto ele percorre a Grécia mitológica, os cenários são lidos pelo hardware do PS2 como corredores e paredes, denotando um ritmo extremamente linear.

Tudo isso era envolvido por uma preocupação enorme de tornar God of War impressionante nos quesitos técnicos. Em meio a um longo processo de produção e observando a geração do PlayStation 2 chegar ao seu auge, a Sony Santa Monica empregou todos os esforços para garantir a maior qualidade gráfica possível.

“Nós queríamos trazer essa experiência para as pessoas de forma realista. Para fazer isso, tivemos de explorar ao máximo o PS2”, detalhou ao making of do jogo o designer de ambientes Stig Asmussen, que quase batizou o protagonista de God of War e também se tornaria diretor de um dos games da franquia, em God of War 3, e depois foi para a Respawn comandar a produção de Star Wars Jedi: Fallen Order.

A busca pela excelência técnica levaria a equipe de God of War ao limite da exaustão, e, com os prazos apertando, era necessário impor um limite no que acabaria entrando na aventura, a ponto de sequências que estavam quase prontas serem cortadas.

O maior exemplo é uma cena em que Kratos foge de uma tempestade de areia com o auxílio de um elevador. A fase chegou até a ser mostrada para a imprensa, mas foi retirada da versão final. Já alguns dos conceitos não utilizados, como esta fase na qual Kratos veste uma versão muito preliminar das Asas de Ícaro, mostram coisas que acabariam entrando na série no futuro.

Enquanto isso, algumas partes que chegaram ao jogo foram vítimas do cansaço e do excesso de confiança da equipe. A maior delas é o criticado caminho do submundo com suas colunas de espinho e suas partes de plataforma quase impossíveis. Depois de um tempo, ficou claro que a fase não havia sido testada o suficiente em relação aos demais pedaços do jogo.

Criar jogos é uma briga. Eu e o time batemos cabeça o tempo todo - David Jaffe, ao making of do game

O estúdio de Santa Monica chegou à reta final de produção sob pressão. De uma forma até cômica, a natureza bruta de Kratos acabou tomando conta do clima dentro da equipe. No making of do jogo, Jaffe confessou se enxergar no próprio protagonista do game. “Criar jogos é uma briga. Eu e o time batemos cabeça o tempo todo. Tinha essa raiva crescendo dentro de mim que eu acho que transferi para o Kratos”, revelou.

Barlog, por sua vez, tratou a tensão dentro do estúdio de forma mais diplomática. “Acho que a gente se xingava várias vezes durante o dia. É um lance de altos e baixos. Começamos o dia muito felizes e durante o dia ficamos muito chateados uns com os outros, depois felizes, depois chateados… com sorte, vamos embora quando estamos felizes e voltamos ao trabalho ainda mais felizes”.

Kratos God of War
Divulgação/PlayStation

A recepção e o lançamento do primeiro God of War

God of War foi revelado publicamente pela primeira vez em fevereiro de 2004, durante um evento da própria Sony Santa Monica à imprensa americana, mas foi durante a edição daquele ano da Electronic Entertainment Expo (E3) que a maioria dos jornalistas teve a oportunidade de testar o game de fato. O jogo foi um dos destaques da feira, atraindo a atenção necessária para que o lançamento, no ano seguinte, fosse um sucesso.

Em números oficiais, o game vendeu 4,6 milhões de cópias e foi recebido com louvor pela crítica e pelo público, que elogiou a história, a combinação de narrativa com gameplay, e o combate visceral.

O desafio de provar que desenvolvedores ocidentais sabem, sim, fazer jogos de ação levou God of War a se tornar um marco em seu gênero. Os quick time events cinematográficos viraram quase um padrão, e foram usados por tanta gente que acabaram se tornando uma mecânica evitada hoje em dia. Por outro lado, a estrutura narrativa que favorece a ação cinematográfica influenciaria outros grandes jogos da Sony no futuro, como Uncharted, The Last of Us, Horizon Zero Dawn e Days Gone.

Para além de suas conquistas técnicas e criativas, God of War fez Kratos se tornar quase que imediatamente um ícone do PlayStation. Ao lado do Master Chief, herói de Halo, da concorrente Microsoft, o guerreiro espartano inaugurou uma era em que a face pública das fabricantes de consoles deixava de lado o aspecto cartunesco, para mostrar o poder de um hardware mais avançado.

God of War, aquela aventura violenta e inspirada no cinema dos anos 1980, fez a Sony deixar de lado os mascotes inspirados em animais fofinhos, para apostar em heróis cada vez mais realistas e humanos.