O anúncio dos planos da Microsoft de adquirir a Activision Blizzard trazem muitos questionamentos para o futuro da indústria de games como um todo: a consolidação do mercado em um número de empresas cada vez menor; a disponibilidade de jogos e franquias marcantes em plataformas rivais; a forma com que o modelo de negócios do Xbox Game Pass deve evoluir daqui para frente; entre outros.

Mas se é possível tirar alguma conclusão, é esta: Bobby Kotick muito provavelmente nunca pagará propriamente por tudo o que fez dentro e fora da companhia durante sua liderança como CEO.

Isso, apesar de uma parte significativa dos trabalhadores da empresa querer sua cabeça, figurativamente (ou até literalmente) falando.

Quando o anúncio da aquisição foi realizado, uma das primeiras perguntas envolvendo essa mudança de paradigma era justamente o que aconteceria com Kotick nesta nova fase da empresa. Oficialmente, as declarações foram extremamente vagas, vindo tanto da Microsoft quanto da boca do próprio executivo.

"Bobby Kotick continuará a servir como CEO da Activision Blizzard... Assim que o acordo for fechado, os negócios da Activision Blizzard reportarão para Phil Spencer, CEO da Microsoft Gaming", declarou um representante da Microsoft ao jornalista Jason Schreier, da Bloomberg.

Em um email enviado aos funcionários, Kotick declarou que, graças ao longo processo de aprovação e aval governamental para completar a aquisição, é provável que continue na posição de liderança até o fim do próximo ano fiscal da Microsoft, que se encerra em 30 de junho de 2023. Após isso, de acordo com o próprio Kotick ao The New York Times, ele estará "disponível quando for preciso".

Não-oficialmente, uma reportagem do Wall Street Journal informa que o executivo deve deixar a companhia logo após o fim do processo de aquisição. Uma outra da Bloomberg reforça este ponto

Isso não impediu o CEO da Microsoft, Satya Nadella, de elogiar publicamente o executivo em uma conferência com investidores.

"Por mais de 30 anos como CEO da Activision Blizzard, Bobby Kotick construiu a companhia em uma das companhias mais influentes e de maior sucesso no mundo inteiro, e sou grato por sua liderança e compromisso com uma mudança cultural de verdade", declarou (via Kotaku).

O que Nadella tentou omitir, logicamente, é justamente o fato de que, por ter sido a liderança da Activision por mais de 30 anos, Kotick é diretamente responsável pela cultura que necessita de mudança.

Sucesso à base de lágrimas

Actvision Blizzard - Bobby Kotick
Drew Angerer / GETTY IMAGES NORTH AMERICA / Getty Images via AFP

Em três décadas, a indústria de games nunca teve um vilão tão representativo de seus podres quanto Robert Kotick. Ao tomar controle de uma Activision moribunda, ele essencialmente a refez em sua imagem, demitindo quase todos os funcionários, e partindo para devorar qualquer tendência até não sobrar nada além de ossos.

Como já falei no passado, isso gerou diversos games e franquias de enorme sucesso, não só entre o público como entre a crítica, mas a cultura de medo e tensão na companhia nunca foram novidade — e ele já se gabou disso no passado.

No mesmo evento onde fez sua famosa (e infame) declaração de que gostaria de "tirar a diversão de fazer games", Kotick também falou o seguinte (via GameSpot).

"Acho que definitivamente fomos capazes de instaurar a cultura, o ceticismo e pessimismo e medo que você deveria ter em uma economia como a de hoje. Assim, enquanto as pessoas falam sobre a recessão, somos muito bons em deixar as pessoas focadas na depressão profunda."

É uma fala tão profundamente mesquinha e abusiva que mais parece uma paródia de um capitalista ganancioso, do tipo encontrado em pôsteres soviéticos da década de 1920. Que ele tenha falado isso em um evento realizado pelo Deutsche Bank, uma das entidades mais corruptas do planeta, só ajuda a completar o espetáculo.

Vladimir Mayakovsky/Reprodução

E isso é apenas a ponta de um iceberg particularmente nocivo, já que Kotick chegou a contratar Frances F. Townsend, que fez apologia a tortura durante o governo George W. Bush, apenas para mais tarde supostamente usar seu nome para escrever uma carta para defender a companhia após ser processada pelo governo (que causou a primeira revolta de seus funcionários), e até a fazer uma ameaça de morte contra uma funcionária.

E, claro, sua suspeita conexão com o bilionário e traficante sexual de menores Jeffrey Epstein, tendo seu nome listado em sua infame lista de contatos.

Mesmo quando os escândalos de abuso sexual dentro da companhia foram revelados, as primeiras ações do CEO pareciam mais focadas em expurgar a Blizzard de pessoas que não respondessem diretamente a ele, já que as acusações iniciais eram focadas principalmente no lado da produtora de World of Warcraft e Overwatch.

Isso não é nenhuma novidade para quem acompanha as movimentações da empresa: nos últimos anos, mais e mais personalidades da Blizzard conhecidas e apreciadas pelo público (ao menos na época) deixaram a companhia.

Figuras como Mike Morhaime e Chris Metzen (que merecem suas próprias críticas) traziam um ar de personalidade e proximidade de seus jogos aos fãs, o que foi se perdendo a cada nova mudança de chefia para alguém com experiência do lado Activision das coisas.

Com a abertura do processo contra a companhia, essa consolidação parecia estar muito próxima de acontecer. Foi apenas mais tarde, com reportagens e denúncias adicionais, que todas as facas se voltaram diretamente para Kotick e sua posição de liderança.

E, ao menos por algum tempo, parecia que Bobby Kotick receberia algum tipo de represália por suas ações e sua liderança tóxica, ainda que a perspectiva mais otimista fosse sua remoção do cargo de CEO em desgraça, ou mesmo alguma investigação mais aprofundada sobre suas ações (e inações) durante esse período conturbado.

Bônus por desamor

Protesto Blizzard Entertainment
DAVID MCNEW / AFP

A aquisição da Activision Blizzard pela Microsoft parece eliminar até mesmo essa perspectiva, já que de acordo com documentos revelam que Kotick receberia um pacote de benefícios de US$ 293 milhões para deixar seu cargo em caso de a Activision Blizzard ser tomada por outra companhia.

Isso sem falar nas cerca de 4 milhões de ações da companhia pertencentes ao executivo, que pelo valor negociado de US$ 95 por ação da aquisição daria por volta de US$ 408,5 milhões para ele.

Assim, mesmo que deixe a companhia com a reputação terrível que mereceu, ele ainda contará com um bônus na casa das centenas de milhões de dólares na saída (e Bobby Kotick certamente está acostumado a bônus de centenas de milhões de dólares)

No fim, o máximo que ele deve sofrer é ter seu orgulho ferido ao vender e deixar de estar envolvido na empresa que comandou com mão de ferro durante décadas, mas neste caso há ao menos US$ 293 milhões para enxugar suas lágrimas — e qualquer pendência legal no futuro.

Uma questão que surge agora é como a Microsoft pretende lidar com o estado da empresa sem a liderança de Kotick. Do lado criativo, as coisas aparentam ser surpreendentemente positivas (ao menos no curto prazo), já que Phil Spencer se mostra alguém bem mais interessado em trazer diferentes experiências para o público em potencial, ao invés de fazer apenas Call of Duty.

Isso não é exagero: atualmente todos os estúdios da Activision trabalham em produzir conteúdos para Call of Duty, como relatou o Kotaku. Com um acervo de dezenas e dezenas de propriedades intelectuais icônicas e relevantes para a indústria de games como um todo, seria bom ver as equipes desses estúdios 

O lado trabalhista, porém, pode encontrar novos e maiores desafios: nos últimos meses, Kotick tornou-se uma figura tão detestada dentro da companhia que um movimento por melhores condições de trabalho ganhou uma força significativa dentro da estrutura da companhia.

Chegamos ao ponto em que trabalhadores da Raven Software, de CoD: Warzone, encontram-se em greve para a recontratação de 12 prestadores de serviço do seu setor de QA (Garantia de Qualidade), em um protesto que já dura cinco semanas.

Nas redes sociais, o grupo ABetterABK reforçou que ainda reivindica melhores direitos, condições de trabalho, e maior autonomia e representatividade em relação aos membros da gerência.

Kotick tentou esconder, mas a empresa já confirmou que quase 37 pessoas foram demitidas ou deixaram a empresa por casos de abuso após investigações internas, e ainda mais de 40 foram aparentemente disciplinadas. Kotick, enquanto isso, queria esconder essas informações, de acordo com o WSJ.

O que a futura liderança da Microsoft fará a respeito desses trabalhadores insatisfeitos e em revolta aberta? O histórico da empresa nunca foi positivo quanto a movimentos e iniciativas sindicais, e é provável que o mesmo se repita com os funcionários da Activision Blizzard.

Isso sem falar da força do próprio movimento nessas circunstâncias: sem uma figura como Kotick, e sob uma nova liderança que promete ser (nominalmente, ao menos) mais inclusiva e representativa, será possível manter a coesão em grupo?

Caso a iniciativa para sindicalização dentro da Activision Blizzard acabe falhando graças à Microsoft, isso seria (apropriadamente) uma última desfeita de Bobby Kotick a seus trabalhadores no caminho para a saída.