Filipe Pereira tem tentado acordar todos os dias entre 5 e 7 horas da manhã. Confere as atividades do dia, estuda idiomas por meio de um aplicativo e faz yoga. Quando dá tempo, toca um pouco de bateria para ativar o corpo. Pontualmente às 10h, inicia uma reunião online diária com seus colegas de trabalho da Aoca Game Lab, estúdio de jogos de Salvador no qual trabalha como produtor.

Depois de concluir atividades gerenciais e de produção, pausa para o almoço. Tenta ver algum episódio de série ou jogar brevemente. Às 14h, volta ao batente na mesa de trabalho, que se prolonga até as 18h e às vezes até as 20h. Após mais um dia de labuta, à noite, tenta se desconectar da vida profissional, mas é difícil.

O dia seguinte tende a ser igual, e se desenrola exatamente no mesmo lugar: sua casa.

A realidade de Pereira é a mesma de milhões de pessoas ao redor do mundo, que, diante da pandemia do novo coronavírus (COVID-19), se viram obrigadas a trabalhar de suas próprias residências.

Estúdios de videogames não ficaram de fora das determinações de combate e prevenção ao vírus adotadas por praticamente todos os países do globo: Em 15 de março, a Rockstar Games, de GTA V, anunciou que a empresa adotaria o trabalho remoto, medida também incorporada por outros grandes nomes da indústria como a CD Projekt RED e Ubisoft. Nessa época, eram aproximadamente 170 mil casos confirmados da doença em todo o planeta, segundo dados da Universidade Johns Hopkins. No momento da publicação desta matéria, esse número passa de 4,3 milhões.

No Brasil, que contabiliza mais de 190 mil casos confirmados de COVID-19 e ultrapassa 13 mil mortes pela doença de acordo com o Ministério da Saúde, não é diferente: estúdios de games têm funcionado via home office há semanas. Novidade para alguns e velho conhecido de outros, desenvolvedores contam como foi a transição laboral e como a pandemia tem os impactado emocionalmente.

Do escritório para dentro de casa

"Por incrível que pareça, a rotina praticamente não mudou, tirando o fato de ganhar umas horas do dia pelo trajeto até o trabalho e o retorno", afirma Nando Guimarães, chefe de desenvolvimento na Aquiris Game Studio, de Horizon Chase Turbo e Looney Tunes World of Mayhem.

O estúdio gaúcho incorporou o home office após a decisão de estados e municípios brasileiros decretaram quarentena, uma novidade para a maior parte dos funcionários da empresa. Segundo ele, a produtividade de antes tem se mantido.

"Adotamos algumas ferramentas novas para podermos 'chegar na mesa virtual' de alguém e trocar uma ideia, sem precisar agendar reunião", explicou Guimarães sobre como manter o contato com colegas virtualmente. "É uma ótima simulação do escritório, que tem a vantagem de retirar os ruídos na comunicação."

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Aquiris Game Studio/Divulgação

Outra estreante do modelo é a Behold Studios, de Chroma Squad, que tenta se adaptar à nova lógica imposta pela pandemia. É o que conta Saulo Camarotti, fundador e CEO do estúdio.

"Essa tem sido a nossa primeira vez fazendo isso", diz. "Não é um modelo fácil pra gente, porque estamos há 10 anos juntos. Temos processos muito orgânicos e até 'desorganizados' no sentido de que muita coisa acontece ali no papo, na conversa. Muita ideia surge através disso."

Camarotti afirma que manter a rotina de antes não está fácil. Pai de duas filhas pequenas, atualmente ele diz trabalhar cerca de duas horas por dia. Antes, sua jornada diária variava entre seis e sete horas. "Isso dificulta um pouco. Mas a gente continua tentando fazer tudo dentro dos prazos sem sobrecarregar ninguém. Continuamos o trabalho, mas entendendo os problemas que essa situação gera", explicou, enquanto vozes de crianças ecoavam ao fundo.

No entanto, o executivo afirma que, apesar da pandemia, as metas da Behold permaneceram as mesmas.

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Behold Studios/Divulgação

Esse também é o caso da Aoca, desenvolvedora de Árida: Backland's Awakening. Segundo Filipe Pereira, o que mudou foi o planejamento de participação em eventos de games, que tiveram suas edições presenciais canceladas (substituídas, em alguns casos, por eventos digitais, como a Gamescom 2020).

Para Pereira, porém, o cancelamento sumário não foi de todo ruim.

"Isso traz uma vantagem de certa forma, porque se você pega a parte de negócios, por exemplo, as reuniões aconteciam majoritariamente nos eventos, e agora como os eventos são obrigatoriamente digitais, isso tá permitindo que a gente se encontre mais online com mais pessoas. Isso é legal."

Já as horas trabalhadas pelos desenvolvedores permaneceram as mesmas. Porém, o produtor afirma que o fato de trabalhar em casa e estar no mesmo local mesmo após a jornada laboral diária pode fazer com que seja difícil se desligar totalmente do trabalho.

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Aoca Game Labs/Divulgação

"Eu fico trabalhando o dia inteiro, principalmente na parte de gerenciamento. Acaba que você acorda pensando nisso e vai dormir pensando nisso por você estar sempre no mesmo ambiente", aponta Pereira. "Então pessoalmente estou procurando estratégias de em determinado horário me desconectar e fazer outras coisas."

Na Hoplon Infotainment, desenvolvedora de Heavy Metal Machines que afirma que a produtividade do estúdio tem se mantido a mesma, um dos principais problemas enfrentados na transição do trabalho presencial para o remoto estava relacionado à logística. A atividade de desenvolvimento de games demanda equipamentos e softwares específicos, além de redes internas em alguns casos. Conforme Rodrigo Campos, CEO do estúdio de Santa Catarina, levar tudo isso do escritório para dentro de casa não é tão fácil.

"Um exemplo simples: cada versão do nosso jogo tem em torno de 8GB e fazer o download completo pela internet, por todos os membros do QA [Quality Assurance, ou "Garantia de Qualidade" em tradução livre] ao mesmo tempo, de dentro dos nossos servidores na Hoplon foi um problema que enfrentamos lá no início do home office. De dentro do escritório era a cópia de um arquivo na rede. Já fazer isso pela internet, de quatro a cinco vezes por dia, foi um problema."

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Hoplon Infotainment/Divulgação

De opção à obrigação

No ramo de desenvolvimento de jogos escritório não é regra. Seja por escolha ou por falta de recursos para se ter um local dedicado ao trabalho, o home office já era realidade de muitas empresas de games. É o caso da paulistana Sue The Real, desenvolvedora de Angola Ganja: Picada dos Sonhos, que vê o home office na pandemia diferente daquele que realizava antes.

Marcos Silva, game designer e programador do estúdio voltado à produção de jogos com narrativas afro-brasileiras, afirma que no início da quarentena conseguiram avançar consideravelmente no desenvolvimento dos projetos "principalmente por não estar entendendo toda a situação nesse momento". Silva diz que, em certo momento, percebeu que ele e sua esposa, Raquel Motta, que também forma a Sue The Real, estavam trabalhando muito mais do que o habitual.

"Então chegava no final do dia, a gente percebia que o cansaço era maior. A gente tava trabalhando muito mais. Tinha dia que dava oito da noite e a gente ainda tava lá batendo nos códigos ou fazendo alguma coisa", revela.

Porém, "aí veio um crescimento no número de casos e coisas acontecendo... e daí vem a tensão emocional e preocupação com a família", diz Silva.

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Sue The Real/Divulgação

Por isso, de acordo com Silva, a Sue The Real resolveu desacelerar um pouco o ritmo de trabalho — e também do consumo de notícias sobre a pandemia. "E dá pra segurar os projetos. O mais importante é a gente passar disso da melhor forma possível. Não existe dinheiro ou projeto algum que substitua a vida. Saúde em primeiro lugar", defende o desenvolvedor.

Já na Rogue Snail, estúdio de Relic Hunters Legend, a rotina continua a mesma de antes, segundo o CEO e diretor da empresa Mark Venturelli. Embora reconheça que a situação afete os desenvolvedores a nível pessoal e que o momento é difícil para todos, "nosso trabalho, nosso dia a dia continuam muito parecidos."

"O home office de antes em relação ao de hoje não mudou nada no trabalho pra gente, sendo sincero", comentou.

Em entrevista ao jornal norte-americano The New York Times, Forrest Dowling, da The Molasses Flood, disse que a pandemia tem similaridades ao crunch, prática comum dentro da indústria de games que faz com que desenvolvedores trabalharem além da carga horária habitual para finalizar projetos.

Afirmando que o momento deve sobrecarregar profissionais do setor, ele apontou que a quantidade de energia necessária para se trabalhar agora é próxima daquela vista em situações de crunch.

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Rogue Snail/Divulgação

O diretor da Rogue Snail também enxerga essa similaridade, mas por outro motivo: "o fato de que você fica imerso no ambiente, você não sai dele."

"Às vezes quando você faz crunch, principalmente quando é presencial na empresa, você passa muitas horas ali. E isso tem um efeito psicológico. Isso é uma coisa que tá me afetando inclusive, o fato de não poder sair de casa, de não poder ir num bar, restaurante, teatro, cinema, festa... enfim, sair um pouco, ver gente. Isso aí realmente causa um impacto emocional", ressalta.

Venturelli afirma que tem dado consultoria e dicas para estúdios que se viram obrigados a sair do escritório e partir para o trabalho de dentro de casa, inclusive sobre como fazer happy hour remoto, prática tradicional dentro da Rogue Snail.

"Hoje em dia eu tô achando muito legal como as pessoas estão começando a ver que é uma coisa [happy hour] que você pode fazer. Ter proximidade e companhia são coisas que não precisam ser só físicas", comenta ele.

O impacto emocional

Especialistas apontam que um dos efeitos colaterais de uma pandemia é o impacto emocional e na saúde mental de quem passa por ela. Uma revisão feita pela revista científica The Lancet, uma das mais antigas e respeitadas do mundo, de estudos realizados sobre o assunto durante a pandemia da SARS, ocorrida entre 2002 e 2003, mostrou que um momento como esse podem trazer uma série de efeitos psicológicos negativos. De acordo com a publicação, podem ir de preocupação constante a quadros de estresse pós-traumático.

E esse momento tem deixado apreensivos desenvolvedores da Black River Studios, desenvolvedora amazonense de jogos como Rococo VR e Jake & Tess' Finding Monsters. O estúdio é sediado em Manaus, cujo sistemas de saúde e funerário se encontram em colapso. Segundo dados do Ministério da Saúde, o estado da região Norte tem a maior incidência de casos de COVID-19 de todo o Brasil, além de registrar a maior taxa de mortalidade pela doença no país.

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Black River/Divulgação

"É claro que isto não deixa de abalar emocionalmente a todos nós, e todos ficamos apreensivos", afirma Diego Prates de Andrade, produtor executivo da Black River. "É de certa forma apavorante a ideia de não existirem leitos para todos os doentes e por isso reforçamos constantemente para que todos fiquem em casa."

O desenvolvedor conta que desabafos têm se tornado comuns dentro dos grupos de comunicação da empresa, "que é onde falamos um pouco sobre nossos problemas de forma completamente informal"

"Algumas coisas estão sob nosso controle e conseguimos ajudar, mas infelizmente nestes tempos de coronavírus é muito difícil se manter inabalado."

Marcos Silva, da Sue the Real, reside na Zona Norte da cidade de São Paulo, uma das áreas da capital mais afetadas pela COVID-19. Ele comenta que, no início da quarentena, era comum ver pessoas subestimando a gravidade da situação. "Era uma coisa muito de 'ah, a gente já passou por muitas coisas difíceis. Vamos conseguir passar por isso também'."

Apesar da melhoria significativa nesse sentido vista nos últimos dias, ele diz que isso acaba afetando o estúdio por estarem inseridos no contexto de periferia e de participarem ativamente da comunidade local. Porém, Silva espera pelo melhor, e lamenta a falta de amparo do Estado à população vulnerável.

"O que eu sinto é que de algum jeito a gente vai superar isso. De forma muito triste e desanimadora a gente ainda vê algumas coisas acontecendo por parte das estruturas que mais deveriam ajudar as pessoas, mas a gente tá com fé de que essas pessoas consigam aos poucos e seguirem as recomendações pra que a gente não tenha tanto impacto", afirma.