Lançado em 2017 para Switch e Wii U, The Legend of Zelda: Breath of the Wild só foi ganhar versão localizada para português do Brasil em 2019 — Mas não pelas mãos da Nintendo.

A tradução foi feita pelo grupo de fãs brasileiros Triforce Heroes, que agora trabalham na dublagem do jogo.

Se dependesse da companhia japonesa, o game permaneceria sem localização até hoje. Isso porque, até o momento, os jogos desenvolvidos pela empresa para suas plataformas não são lançados com opção de idioma em português.

Enquanto a Nintendo vai na contramão de Sony e Microsoft, que há uma década lançam seus títulos exclusivos localizados em português, os jogadores ocupam esse espaço deixado pela falta de suporte da empresa. O que em um cenário de mais de dez anos atrás seria comum, hoje chama a atenção pela abundância de games que suportam o idioma local.

Assim como o Triforce Heroes, existem diversos grupos de fãs no país dedicados a localizar jogos de Switch e 3DS -- sem cobrar ou receber por isso. E o The Enemy foi em busca dessas pessoas para entender como e por que se dedicam a um trabalho que, ao menos na teoria, seria de competência da Nintendo.

De fã pra fã

O afilhado de 11 anos da mãe de Fred Hareon tinha dificuldade de leitura. A fim de estimulá-lo a ler mais, Hareon decidiu que colocaria nas mãos do menino algum jogo de Pokémon no Nintendo 3DS em português. O problema: os títulos não eram localizados e não havia tradução feita por fã disponível na internet.

Por isso, se encarregou da tarefa e começou a traduzir Pokémon X e Y, lançados em 2013 para o portátil. "Se eu não fosse traduzir, ninguém iria", diz ele que, ao lado outras sete pessoas, integra o grupo Elite dos Quatro Traduções, que agora planeja a localização dos outros títulos da série no 3DS.

A motivação de Hareon é compartilhada entre todos os tradutores com os quais conversamos: tornar os games da empresa mais acessíveis ao público nacional.

Quando o técnico em informática Ricardo Nogueira, do grupo Triforce Heroes, iniciou sua campanha para traduzir Breath of the Wild, ele nem sabia por onde começar. Sem experiência prévia alguma com tradução de games, foi sua vontade de ver o jogo em português e ajudar fãs que têm pouco ou nenhum conhecimento da língua inglesa.

"Se eu aprendi a como traduzir, decidi fazer e compartilhar com os outros", explica Nogueira.

Para Alan Cruz, a barreira de idioma engrossa ainda mais o caldo da desigualdade de acesso a jogos no Brasil. Ele é o criador do grupo JumpManClub Brasil, que já traduziu títulos como Super Mario Odyssey, The Legend of Zelda: A Link Between Worlds e Captain Toad Treasure Tracker.

JumpManClub Brasil/Divulgação
André Alcântara/Reprodução
JumpManClub Brasil/Divulgação

O menino de 7 anos presenteado com um Super Nintendo jamais imaginaria que, depois de 20 anos, se veria em uma empreitada para facilitar o acesso aos jogos de sua desenvolvedora de games favorita. "Na minha opinião, cultura e arte devem ser acessíveis a todos", defende Cruz.

E o trabalho tem dado certo. Os tradutores comentam que recebem numerosos elogios e agradecimentos por parte dos jogadores. Mas um depoimento em especial marcou Alan.

"Lembro-me de um vídeo enviado por um membro do nosso grupo no Facebook, que gravou o filho nos agradecendo por um jogo que ele conseguiu entender tudo porque nós o traduzimos", conta.

Enquanto petições online que pedem que a Nintendo localize seus games não dão em nada, quem coloca a mão na massa para alterar esse quadro são jogadores que embora quase nunca lembrados, dedicam tempo e energia a uma atividade árdua.

Assumindo a labuta

JumpManClub Brasil/Divulgação

Uma das principais dificuldades relatadas pelos fãs tradutores é a de encontrar pessoas que se dediquem aos projetos. Afinal, explica Fred Hareon, "Somos apenas fãs. Não somos pagos. Não somos profissionais".

Segundo ele, muitos acabam largando projetos no meio do caminho depois de se darem conta da trabalheira que há pela frente. É por isso que é tão comum encontrar traduções inacabadas na internet.

O membro do Elite dos 4 Traduções acrescenta também que embora ele e sua equipe não sejam profissionais, tentam ao máximo dar uma cara de "localização oficial" ao trabalho, objetivo compartilhado entre todos os grupos com os quais falamos.

No caso da adaptação para português de Pokémon X e Y, por exemplo, a equipe buscou entender como eram traduzidos certos termos do jogo que aparecem no anime de no jogo de cartas da franquia.

A ideia é sempre buscar referências oficiais e adaptar o que for possível para o contexto cultural brasileiro.

Mas no meio do caminho para que todo o trabalho chegue de fato ao game estão os obstáculos técnicos. Conforme me explicou Derek Xenofonte, responsável pela tradução de Pokémon Sword and Shield e Pokémon Let's Go, cada jogo, seja ele de 3DS, Switch ou Wii U -- ou de qualquer outro console -- possui particularidades que devem ser analisadas por quem vai traduzi-lo.

André Alcântara/Reprodução

Naturalmente, muitas vezes isso vai demandar ferramentas específicas, desenvolvidas por outros fãs que tentaram manipular os arquivos do game. Ou seja, o trabalho não se resume a apenas traduzir textos.

Porém, não é regra que vá existir sempre uma ferramenta para lidar com um determinado jogo, e aí os fãs precisam se virar. Se esse for o caso, "algum programador tem que estudar e fazer uma engenharia reversa para poder acessar esses arquivos e extrair os textos para que possam ser traduzidos", explica Hareon.

Mesmo com uma ferramenta funcional em mãos, Ricardo Nogueira passou por maus bocados no início da tradução de Breath of the Wild, que levou dois anos para ser finalizada. Por um tempo a acentuação foi sua maior inimiga, já que o jogo não aceitava alguns dos acentos presentes na língua portuguesa. Solucionado posteriormente, o problema é uma das principais dores de cabeça de quem traduz games de forma não oficial.

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Mas esse não foi o único inimigo que atormentou Nogueira. Até a finalizar a tradução, ele precisou lidar constantemente com o tempo -- ou a falta dele. Além de técnico em informática, também faz faculdade de biologia. Sem espaço na rotina, o jeito foi trabalhar na localização à noite e de madrugada.

Agora junto com o Triforce Heroes ele trabalha na dublagem de Breath of the Wild. Com um elenco de 13 dubladores amadores, do qual Nogueira faz parte, a nova etapa de localização conta com poucos recursos de gravação, e a edição e inserção dos áudios no game tomam parcela considerável do tempo de Nogueira.

Prevenindo o previsível

Mesmo empreendendo esforço e tempo em um trabalho que não deveria ser deles, esses fãs tradutores ainda precisam se esquivar de possíveis intervenções da Nintendo. Isso porque a empresa é conhecida por proteger suas propriedades intelectuais com mão de ferro.

Nos últimos anos a companhia obrigou sites a retirarem ROMs e ISOs de seus games, arquivos utilizados para jogar via emulação ou fazer cópias em mídias físicas, por exemplo. A Nintendo também não tem histórico de tolerar jogos criados por fãs que usem seus personagens e marcas.

Por isso, em vez de distribuir arquivos dos jogos em si modificados, os grupos de tradução optam por patches, que são adicionados aos games pelos jogadores. "Não distribuímos conteúdo protegido por direitos autorais ou fomentamos pirataria", ressalta Alan Cruz, do JumpManClub Brasil.

Apesar de alguns grupos estarem abertos à doações de jogadores, eles afirmam que jamais cobram do público pelo acesso às traduções.

André Alcântara/Reprodução

Conforme explica Fred Hareon, os patches são compatíveis com jogos originais — tanto em mídia física quanto digital —, mas só podem ser instalados em aparelhos modificados (desbloqueados, em outras palavras). Além disso, os patches também podem ser aplicados em emuladores.

Vale ressaltar: disponibilizar patches de tradução não significa distribuir os jogos da Nintendo em si. Portanto, é uma situação bem diferente de sites que compartilham ROMs e ISOs de games da companhia.

"Se a gente ficar distribuindo ROMs por aí é mais um motivo pra Nintendo derrubar a gente. E a gente ainda tem muito jogo pra traduzir", explica Hareon, que, assim como todos os fãs tradutores com que falamos, nunca recebeu qualquer tipo de mensagem de advertência da japonesa.

Switch no Brasil = jogos localizados?

Elite dos 4 Traduções/Divulgação

Depois de deixar o mercado nacional em 2015, a Nintendo anunciou a chegada do Switch no país para o dia 18 setembro — mais de 3 anos depois do lançamento original — pelo preço sugerido de 3 mil reais.

O anúncio veio depois de uma tímida reaproximação com país. Nos últimos anos a empresa publicou jogos para celulares em português, lançou uma versão nacional Loja Nintendo e começou a vender cartões pré-pagos de games do Switch. Porém, segundo a própria Nintendo, por ora, jogos localizados não estão nos planos.

Ricardo Nogueira, do Triforce Heroes, é pouco otimista sobre o assunto. Ele acha difícil que o lançamento oficial do Switch no Brasil represente também a chegada de localização para os games do hardware, pois "quando eles estavam aqui antes, já não faziam".

Já Derek Xenofonte tem mais esperanças. "Espero de coração que isso aconteça. Somos uma fatia considerável de consumidores dos produtos da Nintendo", nota ele.

É praticamente unanimidade entre os grupos que títulos localizados podem contribuir para uma maior venda dos games e dos próprios aparelhos da companhia.

Em entrevista ao The Enemy, Bill van Zyll, diretor da Nintendo para a América Latina, afirmou que a empresa está ciente da demanda, que vem de "vários 'Nintendistas' vocais", e que a companhia trata questão com cuidado porque o trabalho de localização envolve muito mais do que apenas traduzir textos.

"O desafio com a localização vai além da tradução. Precisamos acertar no contexto, acertar o humor. É algo que a Nintendo, tentando trazer essa qualidade para o consumidor, está muito focada e consciente", explica. "Mas é algo em que estamos prestando atenção."

JumpManClub Brasil/Divulgação

Portanto, a chegada de localização para os jogos da empresa parece ainda muito longe de se concretizar.

Sobre isso, Nogueira dá a letra: "eu acho um descaso com o público brasileiro". Junto com o desejo de quebrar a barreira de idioma e o amor aos games da Nintendo, é essa insatisfação com a falta de suporte da empresa que move os grupos brasileiros de tradução. A depender deles, os jogos da Nintendo só se tornarão mais acessíveis ao público brasileiro.