"Os deuses do Olimpo me abandonaram. Agora não tem nenhuma esperança."

Essa é a fala inicial de Kratos na abertura do primeiro God of War, lançado em 2005 para PlayStation 2. Regra para a maior parte dos jogos da época, o título não foi traduzido para português oficialmente.

Porém, ao jogarem o clássico do console, muitos brasileiros se depararam com a fala no nosso idioma, não no original em inglês.

Não se tratava de uma versão especial: a tradução havia sido feita por fãs. Lançada em 2006, a localização de God of War foi apenas um dos trabalhos de adaptação para português de jogos populares do PS2, líder absoluto no país (e no mundo).

E todo esse empenho de jogadores insatisfeitos com a falta de suporte da Sony na época, que teve início há mais de uma década, continua até hoje.

Mesmo 20 anos após o lançamento do PlayStation 2, e com diversos jogos localizados oficialmente em gerações posteriores, grupos e fãs despendem tempo e suor para traduzir os games populares do console clássico para português, incluindo até dublagem para o idioma local.

Vive o inesquecível

Tendo isso em mente, uma dúvida surge: por que há quem se dedique tanto a localizar títulos de um console de idade tão avançada e que, para muitos, já está enterrado?

"Principalmente por ter feito parte da minha infância e de muitos", afirma Marcos Henrique, mais conhecido como hnnewgames na internet. Ele, assim como a maioria dos tradutores de games amadores, não tem experiência prévia com localização, mas ainda assim se tornou responsável pela adaptação de games como Darkwatch, Rogue Trooper e Castlevania: Curse of Darkness.

Henrique, que divide seu tempo entre a tradução de jogos e os estudos para o Enem, explica que é aquilo que o motiva é "saber que uma pessoa voltou a jogar um jogo que curtia tanto, agora em nosso idioma. É o que me traz gratidão".

Henderson Souza, o Sonderhen do grupo de dublagem Silent Fandub, explica que, se depender das empresas responsáveis pelos games, os jogadores de PS2 nunca terão jogos com áudios localizados. O analista de sistema vê aí a importância do papel de seu grupo, que já fez dublagem de títulos como Resident Evil 4 e Silent Hill 3.

"A única oportunidade que os fãs terão de jogar aquele determinado jogo dublado, é através dos projetos de fãs."

Muitos desses fãs estão em grupos do Facebook, que reúnem milhares de jogadores de PlayStation 2 que apoiam os projetos de tradução e esperam ansiosos por versões localizadas dos games da plataforma, claro reflexo da popularidade histórica que o console mantém até hoje no Brasil.

Segundo dados da edição de 2019 Pesquisa Game Brasil (PGB), o PS2 é o terceiro console mais popular do país, com 23,7% dos respondentes do estudo afirmando possuí-lo. O aparelho de mais de duas décadas só fica atrás do PlayStation 4 (37,6%) e do Xbox 360 (32,8%).

Seja via download ou através do comércio alternativo de games, versões localizadas de jogos do PS2 dão nova vida para títulos com certa idade.

"É muito legal porque mesmo as pessoas que já jogaram games antigos relatam ter uma nova experiência em relação a imersão a história do game", afirma Allan Deivity, cabeça do grupo Nemesis Fandubs, que localizou os áudios de Resident Evil Code: Veronica e atualmente trabalha na dublagem de GTA: San Andreas.

O trabalho de localização, que beira o artesanal, não é simples. Até que a tradução chegue nas mãos dos jogadores é um trabalho longo — e penoso.

Dificuldades

Para se ter noção, um texto localizado para português não pode ultrapassar o tamanho do arquivo do texto original — embora seja possível lidar com essas limitações de espaço com conhecimento em programação.

E é justamente em lidar com esses espaços limitados que fica um dos principais desafios enfrentados pelos tradutores-jogadores.

"Pra isso ter um conhecimento básico de programação é necessário, além de muita paciência para pesquisar em fóruns na internet", explica Marcos Henrique.

Para acessar e editar os arquivos compactados encontrados dentro dos jogos do console, é necessário realizar engenharia reversa e utilizar programas próprios para modificação dos dados. Resumindo desta forma parece simples, mas quem faz parte da comunidade de tradução afirma que a complexidade por trás do processo é grande.

De acordo com Henrique, as dificuldades variam de game para game, e são influenciadas por fatores como o motor gráfico no qual o jogo foi desenvolvido. Mas um dos problemas mais comuns é a necessidade de editar as fontes do título "no intuito de adicionar ou substituir caracteres como o cedilha e o til", já que o inglês, idioma original da maior parte dos games traduzidos, não possui acentuação gráfica.

Já se tratando de localização de áudio, os obstáculos se elevam ainda mais.

Primeiro: naturalmente, essas adaptações demandam uma equipe de dubladores amadores ou semi-profissionais por projeto. A dublagem de Resident Evil 4 produzida pela Silent Fandub, por exemplo, contou com um elenco de 15 pessoas, fora o pessoal técnico formado por outras três pessoas, incluindo Henderson Souza.

Segundo: a metodologia de adaptação envolve mais processos técnicos — e bem mais complexos. O primeiro passo, conforme Souza, é "extrair os áudios de algum arquivo compactado". Depois, é necessário "editar o áudio dublado que criamos com base no áudio original, sincronizando tudo".

Nessa parte é preciso ter muito cuidado. Allan Deivity explicou que o áudio em português precisa possuir exatamente as mesmas configurações do áudio original. Isto é, mesma duração, frequência e formato. Caso algo esteja fora dos conformes, "o jogo vai bugar".

Há mais um impeditivo que pode surgir nessa etapa: se todos os áudios de uma estiverem condensados um único arquivo, é necessário recriar, do zero, várias trilhas de som.

"Depois a gente tem de montar a cena com as músicas e efeitos sonoros, e nem sempre se consegue achar os mesmos sons, aí temos que inserir algum semelhante", conta Souza.

E se hoje, com uma vasta quantidade de ferramentas de edição e conteúdo educativo acessível sobre como realizar localizações de jogos de PS2, a vida dos jogadores-tradutores já é difícil, há mais de uma década a situação não era das melhores.

Velha-guarda

Quem jogou God of War em português no PS2 precisa agradecer a Stephen Diego, ou Eskhotline, como era conhecido quando fazia parte do extinto grupo de traduções Brazilian Sabotage, formado por ele e seu irmão. A dupla também adaptou para português títulos como Black, God of War II e Tomb Raider: Anniversary.

Lançada em 2006, quando Diego tinha cerca de 16 anos, a tradução foi uma das primeiras do console — e uma das mais populares tanto na internet quanto no mercado alternativo de games.

Ao contrário de localizações de fãs mais recentes, a primeira versão em português do clássico do console tinha somente as cutscenes e bônus legendados. Ou seja, os textos exibidos durante o gameplay ainda eram em inglês.

O mesmo aconteceu com outros títulos, como Resident Evil 4, que só veio a ser traduzido inteiramente em 2015.

Isso, segundo Diego, estava associado à escassez de ferramentas que facilitavam o acesso e modificação de arquivos e tutoriais acessíveis à época.

"O processo para analisar internamente os games era complicado. Muitas vezes havia uma criptografia forte das empresas responsáveis pelo jogo", comenta Diego, que hoje, aos 30 anos, atua na área contábil e como designer.

Além disso, "ainda havia poucas pessoas pertencente ao cenário brasileiro de tradução comparado com outros países", o que dificultava a troca de informação.

Vale lembrar: na época a emulação de PS2 não era realidade como é hoje. Os testes precisavam ser feitos no próprio console com o game modificado gravado em um disco.

Apesar das dificuldades da época, Bruno Oliveira, ou Mr Kill, localizou todos os textos de GTA: San Andreas de PlayStation 2. Lançada em 2008, a adaptação feita por ele, hoje contador, tinha como base a tradução da versão de PC do game.

"Basicamente era localizar o arquivo onde continha os textos/diálogos do jogo e abrir em uma ferramenta que diminuía o trabalho braçal para aí sim traduzir os textos. O mais chato foi localizar a fonte do jogo e adequar os acentos", conta ele, que na época fazia parte do popular grupo Central MiB e também traduziu GTA: Vice City e GTA III.

E era essa modificação de arquivos que, em muitos casos, fazia com que jogos de PS2 congelassem em determinado ponto da experiência. Porém, conforme explica Oliveira, às vezes o problema estava mais ligado a uma gravação em disco mal feita da versão traduzida do game.

"Acontecia também de diversas traduções estarem em andamento e já serem usadas, uma espécie de versão 'beta'", relembra. Aí, segundo ele, o travamento era certo.

De lá pra cá, muita coisa ficou mais fácil na vida de quem quer traduzir, segundo Gledson Azevedo, o Gledson999, membro do grupo Brazilian Warriors e que já localizou textos de jogos como Resident Evil 4 e Need for Speed Underground 2.

Tradutor amador de jogos há mais de 10 anos, ele afirma que, além do conhecimento acumulado que circula nas comunidades, hoje há diversos softwares disponíveis e tutoriais acessíveis. "Na minha época era ferramentas a base de linha de comando."

3 por 10 e o futuro do hobby

Tanto a tradução de God of War quanto a de GTA: San Andreas foram lançadas em uma época de ouro do mercado alternativo de games. E foi através dele que muitos tiveram — e continuam a ter — acesso a essas versões não oficiais em português, bem como a outras mais recentes.

Apesar de não visarem retorno financeiro com os trabalhos de localização, a venda dos jogos em português no comércio alternativo não foi nem parece ser um problema para os tradutores amadores. Pelo contrário.

Stephen Diego, que ainda hoje recebe mensagens de agradecimento de jogadores, acredita que as barraquinhas de feira, camelôs e negócios informais foram uma ponte essencial para atingir a massa de jogadores.

"Isso porque há 10, 12, 15 anos nem todos conseguiam fazer o download de jogos em sua própria casa, e muito menos gravá-los em discos para jogar", comenta. "O comércio alternativo deu grande visibilidade às traduções."

Hoje, esses fãs que traduzem jogos populares do PS2 e de outros consoles enxergam a atividade apenas como um hobby — ainda que extremamente trabalhoso —, mas alguns não descartam a possibilidade de, no futuro, atuarem profissionalmente no ramo.

Marcos Henrique, o hnnewgames, cita a área de jogos independentes como um caminho viável, em que é "muito comum trabalhos autônomos para desenvolvedoras".

Servidor público, Gledson Azevedo cogita a possibilidade de um dia conseguir trabalhar com localização de games, embora afirme que as empresas "não estão nem aí para isso". Porém...

"Eles sabem que nós existimos".

Seja por hobby ou como atividade profissional, o empenho de fãs que permitiu que a fala inicial de Kratos em God of War fosse lida em português segue firme, e seu arrefecimento não está no horizonte.

"O cenário desses consoles antigos só crescem", conta Henrique. "Mesmo hoje há lançamentos de homebrews [softwares não oficiais] para consoles como PS2, PSP e Wii e existe muita gente que ainda discute sobre o assunto. Isso é muito legal."