Pentiment não me parece o tipo de jogo que vai atrair o interesse de muita gente.

Mas duvido que quem se interessou não fique absolutamente absorvido por ele.

Um projeto pequeno e pessoal vindo da Obsidian Entertainment, o jogo foi criado por um pequeno grupo chefiado por Josh Sawyer, diretor de RPGs aclamados como Fallout: New Vegas e Pillars of Eternity.

Embora não traga nada particularmente novo mecanicamente (pelo menos de forma isolada), Pentiment é uma mistura curiosa, experimental e pessoal, que parece vinda das profundezas da cena indie, e não de um estúdio que trabalhou em RPGs multimilionários e um jogo de sobrevivência com uma vibe de Querida, Encolhi as Crianças.

E ele talvez seja meu jogo favorito desse ano.

Pentiment
Obsidian Entertainment/Reprodução

Pentiment conta a história de Andreas Maler — ou, mais precisamente, a história de Tassing, uma pequena cidade formada em meio a ruínas romanas e localizada na Alta Baviera do Sacro Império Romano-Germânico (atualmente parte da Alemanha), sob os olhos de Andreas, um artista do século XVI, nos diferentes momentos da sua vida em que seu caminho cruza com a cidade.

Em uma narrativa que acontece no decorrer de décadas, Andreas começa como um jovem artista itinerante que trabalha em sua obra-prima na abadia de Kiersau, localizada nos arredores da cidade, trabalhando com monges beneditinos na tradução e ilustração de livros sagrados e profanos.

... Isso até um assassinato acontecer dentro dos muros da abadia, e Andreas acaba tendo que se tornar um detetive do dia para noite para descobrir o verdadeiro responsável pelo crime.

As decisões que o jogador tomar durante seu trabalho de investigação tem impactos significativos nas vidas (e mortes) dos moradores tanto da cidade quanto da abadia, com repercussões que podem ser sentidas pelas décadas seguintes.

Mas a história de Pentiment vai muito além de um assassinato, pois a investigação de Andreas serve como um gancho para o jogo explorar os vários aspectos da vida e das questões centrais que afetavam os habitantes dessa região dessa época da Europa Medieval.

Pelos olhos de Andreas e as ações do jogador, é possível presenciar desde grandes movimentos, como os efeitos iniciais da reforma protestante e a repulsa do alto clero quanto às propostas de Martinho Lutero. Também se vê a exploração e taxação do campesinato ao ponto de semear a insatisfação e a criação dos Doze Artigos que levariam a uma revolta contra a nobreza, assim como a resposta brutal da aristocracia.

A vida cotidiana da época também ganha destaque: os moradores de Tassing vivem em uma sociedade regida pela Igreja Católica, mas sua cultura é antiga, anterior mesmo à expansão da Roma Antiga, e por isso mesmo muitos desses costumes e tendências pagãs continuam no imaginário da população — às vezes reapropriada para os ritos cristãos... e às vezes não.

A evolução das técnicas de reprodução artística também são um grande foco do jogo, afinal Andreas é um artista, e vive em uma época de transição entre as transcrições de livros feitas à mão e a expansão da tipografia como forma mais rápida e mecanizada de produzir textos.

Descrevendo assim, talvez pareça muita coisa, mas a Obsidian conseguiu envolver e entrelaçar esses tópicos de um jeito que acaba sendo natural, afinal muitos desses assuntos acabando tendo relação uns com os outros — e que se encaixam com possíveis motivos para o assassinato.

É difícil, pelo menos neste caso, não fazer uma comparação direta com Disco Elysium, já que aquele jogo também tem como objetivo central a solução de um assassinato, mas que serve como um mecanismo para explorar o mundo e as temáticas do jogo.

Detetive medieval

Pentiment é, em essência, um jogo de adventure point and click em que o jogador interage com pessoas e objetos na tela, em busca de informações, respostas ou pistas que levem a motivos e suspeitos para os crimes cometidos em Tassing e na abadia.

Mas não seria um jogo da Obsidian sem ao menos elementos de RPG, e eles estam presentes na criação do personagem de Andreas.

Certos elementos da vida de sua vida são imutáveis, tendo nascido em Nuremberg e tentado uma breve carreira acadêmica antes de seguir nos passos da sua família e se tornar um mestre nas artes.

Porém, os detalhes mais específicos podem ser escolhidos e moldados pelo jogador, o que traz um impacto nos conhecimentos e habilidades que Andreas pode usar ao investigar o crime e interagir com as pessoas.

Dependendo do lugar em que tiver passado seus anos itinerantes, ele pode ter fluência em diferentes línguas e conhecimento sobre marcos culturais de determinadas regiões. Caso o jogador escolha, Andreas pode ter excelente retórica para argumentação, ou conhecimento de ocultismo para entender mais do paganismo e rituais proibidos pela Igreja.

Essas habilidades podem facilitar certos caminhos investigativos que o jogador decidir seguir em busca de um culpado, especialmente porque — e isso é importante ressaltar — você não vai ter tempo de investigar todos os suspeitos à fundo de uma só vez.

Embora o relógio interno do jogo não rode em tempo real, ao seguir uma certa pista ou procurar por motivações de determinados suspeitos, as horas passam, e Andreas só pode ir a fundo em suas investigações em certos momentos do dia.

Isso criou um senso de urgência, desespero e ambiguidade na primeira vez que joguei o jogo, já que Andreas é nada mais que um proto-detetive amador, e não tem nada perto de treino ou equipamento para a solução do crime.

Tudo o que você tem são as informações que puder encontrar e analisar antes do fim do prazo — e o que você quiser expor ou esconder na hora da sua prestação de contas.

Infelizmente, é difícil entrar em maiores detalhes sem estragar as surpresas da narrativa, já que há reviravoltas genuinamente curiosas no decorrer das décadas em que o jogo se passa.

Mesmo a verdadeira identidade do responsável pela conspiração que encobre a cidade e a abadia — que pelo menos para mim não foi muito difícil de descobrir — tem um impacto quando você percebe o que estava por trás de todo o sangue derramado. Minha única reclamação nesse sentido é que a descoberta (pelo menos nas duas vezes que completei a história) de uma forma bem mais linear do que as investigações anteriores.

Mas embora os eventos principais sejam imutáveis (até onde eu sei), as decisões e ações do jogador influenciam a vida dos moradores de Tassing e da abadia, que só podem ser mais apreciadas ao jogar o jogo novamente e ver o quão melhor, ou pior, você tornou a vida dessa gente.

Scriptorum

É impossível não falar de Pentiment sem exaltar a identidade visual do jogo, totalmente imersa na estética das pinturas e ilustrações medievais.

A narrativa do jogo é contada como um livro escrito e desenhado à mão. A diretora de arte Hannah Kennedy e sua equipe conseguiram criar uma estética fiel às ilustrações medievais e os animadores conseguiram fazer com que elas se movessem de um jeito que não parecesse estranho aos olhos do público.

Essa paixão e esforço técnico e estilístico se encontra em várias outras partes do jogo: Pentiment não tem diálogos em áudio, apenas em texto — incluindo em português do Brasil —, e a Obsidian fez um trabalho especial ao dar diferentes caligrafias para as "vozes" dos personagens (a dos camponeses é mais simples, e a dos monges beneditinos mais rebuscada, por exemplo).

Mas o mais curioso é que ela também representa a percepção do próprio Andreas quanto aos personagens, e caso alguém revele ter um nível de estudo diferente do que o artista presume, o tipo de caligrafia do balão de diálogo muda.

O próprio som reflete isso, com os tipógrafos tendo seu diálogo "gravado" no balão, com os barulhos de prensa correspondentes.

É uma forma extremamente inteligente de encaixar a estética com a narrativa, mas caso seja muito difícil de interpretar a caligrafia, a Obisidian também implementou um modo com grafia mais simplificada.

O jogo também procura situar o jogador que não tenha um bom conhecimento de cultura ou história medieval, com certos termos e nomes sendo grifados e clicáveis, afastando a câmera para as "bordas" do livro que dão um contexto histórico maior.

Há uma personalidade e estilo especial criada pelo time da Obsidian, e isso se reflete em alguns dos momentos mais memoráveis do jogo, quando como Andreas ajuda Illuminata, uma das freiras bibliotecárias a guardar livros perdidos, com ambos dando suas perspectivas e opiniões de textos clássicos como a Eneida e Il Guerrin Meschino— discutindo, no processo, as limitações sociais das mulheres e os sonhos de avanço das classes sociais mais baixas.

Sagrado e profano

Pentiment é especial pelo simples fato de existir, já que isso deixa claro que a Microsoft está disposta a deixar seus estúdios fazerem coisas diferentes e inesperadas (pelo menos por enquanto).

Josh Sawyer queria, por anos, fazer um jogo que se passava no Sacro Império Romano do século XVI (assunto que ele estudou na faculdade de História), e ele não desperdiçou sua oportunidade.

Ao usar um mistério de assassinato, o jogo consegue introduzir o público que talvez não conheça nada desse período histórico de uma forma natural, ligando temas e questões complexas da época aos personagens e à ambientação de Tassing e Kiersau.

É um jogo denso de assuntos — não lembro de uma bibliografia tão extensa nos créditos de um jogo de videogame antes, que vai desde referências básicas como O Nome da Rosa até estudos sobre prostituição na Barcelona medieval —, mas que entrega esse conteúdo de forma simples e engajante.

Eu precisei fazer quatro prints de tela pra pegar a bibliografia inteira

A Obsidian Entertainment já é há muito tempo um dos meus estúdios de games favoritos, e o que sempre me atraiu na maior parte dos seus jogos é tentar fazer coisas de um jeito diferente e inesperado.

Como disse no começo, Pentiment não me parece o jogo que vai chamar a atenção de muita gente. Mas acredito que vai ser algo especial para quem tiver o olhar certo para ele.

Nota do crítico