Uma hipótese: você acorda (se é possível usar esse tempo), sem roupas, em um quarto de hotel destruído, com a mãe de todas as ressacas.

E você não tem ideia de onde você está. Ou de quem é. Ou mesmo de detalhes básicos sobre o mundo em que vive.

Ao ser reapresentado a este mundo, e até a mais detalhes de sua vida, com novos olhos, surge a pergunta: que tipo de pessoa é você?

Esta é, ao menos ao meu ver, o argumento central de Disco Elysium, o RPG para computador que, tal qual um policial bêbado e entupido de drogas com um pé-de-cabra na mão, chegou de surpresa para alcançar o status de um dos melhores jogos de 2019 mais do que merecido, na minha humilde opinião.

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ZA/UM/Divulgação

No papel de um detetive que perdeu totalmente a memória após consumir uma quantidade absurda de álcool e drogas, o jogador tem como principal objetivo desvendar quem é responsável pelo assassinato de um homem enforcado na árvore que fica aos fundos do hotel em que você está hospedado.

Este caso, porém, é apenas um pretexto para explorar uma série de outras narrativas e temas complexos, que incluem, mas não se limitam a: o conflito de classes entre trabalhadores e corporações na forma da greve de estivadores contra a companhia dona do porto da cidade; a queda e fracasso de movimentos e revoluções comunistas, e o domínio de um modelo moralista e liberal que, a longo prazo, trouxe mais miséria e à popularização de pensamentos fascistas, racistas e eugenistas; e a decadência social e ambiental do mundo ao redor de Revachol, cidade em que acontecem estes eventos mais precisamente, no bairro de Martinaise.

Também, é claro, estão as questões e problemas pessoais e mentais do próprio protagonista, um policial que, após atingir uma espiral de autodestruição encontra-se sem memória, distintivo, ou arma, e cujo único fio condutor e possível fonte de sanidade para o mundo é seu parceiro temporário para o caso, o detetive Kim Kitsuragi.

O que diferencia Disco Elysium de tantos outros jogos do tipo, e até de RPGs de computador tradicionais, é justamente a força de sua narrativa, diálogos e escrita em geral, assim como os sistemas de jogo que os sustentam, conseguindo equilibrar de forma excelente humor, drama e tragédia.

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Por ser um detetive policial, o jogador tem como principal ação conversar com as pessoas do bairro, podendo estar ou não ligadas ao caso  mas, de um jeito ou de outro, elas têm alguma relevância para o mundo em geral.

Para ajudar nisso, e reforçando a natureza fragmentada da mente de nosso protagonista, o jogador tem diversos tipos e escolas de pensamento, que são divididas em elementos como físico, psicológico, intelecto e capacidade motora.

Cada um destes aspectos é representado por uma entidade que tem seus próprios diálogos e perspectivas sobre qual seria a melhor forma de lidar com uma situação, e opções de diálogo e ações especiais  baseados em um rolar de dados digital  cuja porcentagem de sucesso depende de quantos pontos você dedicou a determinada mentalidade.

Não só isso, conforme o jogador começa a entrar em certos padrões, respondendo a perguntas ou agindo de forma a estabelecer melhor a personalidade do protagonista, é possível internalizar certas ideias, que podem trazer benefícios e malefícios dependendo das circunstâncias.

Isso sem falar nas diversas roupas que podem ser encontradas pelo mundo, que dão (ou retiram) pontos extras para determinados pensamentos.

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Com este sistema, o jogador pode definir a essência de quem é este indivíduo que você controla, assim como a forma com que trata as pessoas e investiga os crimes e problemas a seu redor.

É por meio destes alicerces que Disco Elysium brilha: cada conversa ou monólogo interno, por mais inconsequente que possa parecer, oferece algo de novo, seja sobre Revachol, Martinaise, seus habitantes, o mundo que os cerca ou seu próprio personagem.

O caso do assassinato pode ser o que move a narrativa, mas conforme os dias vão indo e o jogador tem oportunidade de explorar as ruas decadentes de Martinaise, os diferentes temas do jogo vão se abrindo.

Tão (ou mais) engajante quanto o mistério do homem pendurado na árvore, Disco Elysium também é sobre: encontrar a música perfeita para cantar no karaokê; encontrar dinheiro suficiente para pagar a diária no hotel; descobrir a batida perfeita para um grupo que quer transformar uma igreja (não muito) abandonada em uma rave; abrir um contêiner por meio de retórica; roubar drogas do pai do menino que joga pedras no corpo do homem assassinado; descobrir um mistério criptozoológico; ligar para números aleatórios de um orelhão abandonado...

E tudo, de algum jeito, está conectado a outra coisa em Revachol.

Enquanto muitos jogos tem uma clara inspiração em Twin Peaks, Disco Elysium é o que mais se assemelha à proposta de usar uma morte central para explorar outras narrativas  algumas mais mundanas, outras mais metafísicas. E, considerando que um de seus aspectos de personalidade tem o nome de Inland Empire, a influência de David Lynch é clara.

Os desenvolvedores também merecem respeito se apenas por criar situações em que falhar no rolar dos dados pode gerar situações tão interessantes - e até, a seu próprio modo, recompensadoras - quanto nas roladas de sucesso.

Vale também destacar a excelente trilha sonora que compõe o jogo, elaborada pela banda de rock independente British Sea Power, que consegue fixar uma série de músicas de ambientação variadas, mas que mantém uma linha melancólica, que reflete o estado do próprio mundo em que você vive.

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É impressionante que um estúdio de desenvolvedores estonianos, cujo núcleo teve que se mudar para o Reino Unido por medo de uma guerra entre seu país de origem e a Rússia, tenha criado uma obra tão engajante, engraçada, trágica e poderosa como Disco Elysium.

Meu maior receio em recomendar o jogo para qualquer um é que ele só está disponível em inglês, então quem não tiver um bom entendimento da língua vai perder muito, já que é um título que precisa de atenção por parte do jogador.

De qualquer, Disco Elysium é uma revelação, que consegue atrelar um ótimo texto a um gameplay com um sistema à primeira vista simples, mas que permite situações interessantes e novas perspectivas dependendo do tipo de personagem que você moldou.

Que seu sucesso ajude a inspirar mais títulos do tipo.

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No Truce with the Furies
  • Lançamento

    15.10.2019

  • Publicadora

    ZA/UM

  • Desenvolvedora

    ZA/UM

  • Gênero

    RPG

  • Testado em

    PC

  • Plataformas

    PC PC

Nota do crítico