Ao estudar História, é comum dizer que devemos “conhecê-la para não repetí-la”. Aprender com acertos e erros do passado é fundamental não apenas para aprimorar o presente, mas para construir um futuro melhor. Não poderia ser mais apropriado que, como integrante de uma saga de ficção cujas aventuras se baseiam na história da humanidade, Assassin’s Creed Valhalla tenha levado esse aforismo ao pé da letra.

Depois de se converter de forma inusitada (mas bem-sucedida) como um RPG de ação com Assassin’s Creed Origins, em 2017, a franquia da Ubisoft viu a atual fórmula ser aprimorada com elementos de fantasia em Assassin’s Creed Odyssey, no ano seguinte, e agora chega a sua versão definitiva ao inaugurar a entrada da eterna disputa entre assassinos e templários em outro terreno fértil da cultura pop: a era dos vikings, igualmente atraente em suas raízes históricas e influências mitológicas.

O cenário da vez são os quatro reinos Anglo-Saxões (Mércia, nglia Oriental, Nortúmbria e Wessex), hoje parte da Inglaterra, mas, no século XIX, objeto de disputa entre os saxões cristãos e a ocupação de uma coalizão de clãs nórdicos que entrou para a história como o Grande Exército Viking - ou, na versão dos ingleses, o Grande Exército Pagão. É o mesmo período histórico no qual se debruçam séries recentes como Vikings e The Last Kingdom.

É neste contexto que entra em cena o/a protagonista Eivor (que pode ser homem ou mulher, em uma escolha que pode ser trocada pelo jogador a qualquer momento). Acolhido pelo Clã do Corvo após o brutal assassinato de seus pais, Eivor deseja se vingar do autor do crime, o cruel Kjotve. O viking obtém sucesso, mas sua vitória se dá em um complicado processo de pacificação da Noruega no qual ele e seu irmão e melhor amigo, Sigurd, se veem esvaziados de poder após a aliança de seu pai, Styrbjorn, com o Harald, primeiro rei da Noruega.

Sem um trono para ocupar, Sigurd e Eivor são impelidos a seguir o mesmo caminho de vários compatriotas: atravessar o Mar do Norte e tentar a sorte nos quatro reinos saxões, onde os vikings, liderados pelos filhos do lendário Ragnar Lothbrok, já marcam presença decisiva.

História

Esse espírito colonizador dá o tom de Assassin’s Creed Valhalla em quase todos os seus aspectos, sobretudo no gameplay (mais sobre isso adiante). Na parte da história, sua contribuição principal se dá na necessidade do Clã do Corvo forjar alianças com líderes dos territórios saxões, de modo a garantir a estabilidade e segurança em um território desconhecido.

Ao longo de sua saga para firmar amizades e pactos através da Inglaterra, Eivor se depara com figuras históricas do período, como Halfdan, Ubba e Ivar, o Desossado - todos filhos de Ragnar -, além de nomes importantíssimos do lado saxão, como o rei Alfredo, o Grande. Com um período histórico distante do presente e menos documentado do que outras eras de Assassin’s Creed, Valhalla aproveita o século IX inglês para tomar as devidas liberdades criativas em relação ao material histórico no qual se baseia para fazer uma aventura marcante.

Assassin's Creed Valhalla
Divulgação/Ubisoft

É claro que não seria um Assassin’s Creed sem uma boa dose de drama familiar. Neste ponto, Valhalla segue o mesmo caminho de seus antecessores em estilo RPG, em uma trama que vai semeando desavenças entre Eivor e Sigurd, com escolhas que ficam a cargo do jogador.

Um ponto vital para o nascimento de uma rixa entre os irmãos é a misteriosa figura de Basim, um membro dos Ocultos que Sigurd conhece em suas viagens pela Europa e que serve de elo entre Eivor e a ordem que, dois séculos depois, se transforma nos assassinos de Altair no primeiro Assassin’s Creed. Ao lado de seu discípulo, Hytham, Basim confia a você a tarefa de eliminar os membros da ordem dos Anciões (que se transformam nos Templários) em território saxão.

E isso é apenas uma das inúmeras sagas que Assassin’s Creed Valhalla tem para contar. Fora da simulação histórica, temos também a conclusão do arco vivido por Layla Hassan, protagonista do presente introduzida à série em Origins. Seguindo também um movimento iniciado por Odyssey de incorporar aspectos mitológicos à série, há uma terceira linha narrativa protagonizada pelos deuses de Asgard, em um elo tênue com a história dos Isu, os seres que precedem a raça humana no universo de Assassin’s Creed.

Assassin's Creed Valhalla
Divulgação/Ubisoft

Quando você enumera tudo de uma vez, parece muito confuso, mas a Ubisoft faz um trabalho competente em colocar todas essas histórias em ordem. A ideia de ter um protagonista no presente vivendo as vidas de seus antepassados, legado dos primeiros jogos, foi retomada em Assassin’s Creed Origins, e Valhalla vem para fechar esse arco narrativo do presente.

De forma surpreendente, a Ubisoft consegue entrelaçar todas essas histórias apresentadas ao jogador - a jornada Eivor, as lutas de Layla, e até mesmo as sagas dos deuses nórdicos - de forma muito natural, com um desfecho impactante que introduz um novo paradigma para a era do presente em Assassin’s Creed.

Nessa linha narrativa tantas vezes confusa e tantas vezes tratada com desdém pela Ubisoft, Valhalla traz o trabalho mais interessante da série nesse aspecto desde a era Ezio Auditore, escrita pelos criadores originais da franquia no final dos anos 2000.

Missões e mundo

Assassin's Creed Valhalla
Divulgação/Ubisoft

Na maior parte do tempo, no entanto, é Eivor quem vai te guiar pela trama, e aqui entram algumas das melhores soluções da Ubisoft para esta versão de Assassin’s Creed: a maneira como o jogo lida com a descoberta de seu mapa, dos personagens e das histórias que o habitam. Valhalla consegue alguns progressos significativos em fazer o jogador se sentir menos intimidado pela enorme quantidade de conteúdo - algo que Origins e Odyssey, por exemplo, não fazem tão bem.

O primeiro truque, por incrível que pareça, é bem bobo: o jogo “oculta” o que está no mapa com pontinhos luminosos, em vez de entregar logo de cara o que há naquele ícone a centenas de metros de distância. Você precisa ir até lá para descobrir qual tipo de tesouro está escondido, ou se há algum artefato a ser coletado, o que incentiva muito a exploração do mundo, que por sinal é deslumbrante, especialmente nos consoles de nova geração (testamos o jogo em um Xbox Series X).

As melhores adições, no entanto, estão em eventos do mundo, que, a exemplo dos encontros aleatórios nas estradas de Red Dead Redemption 2, são histórias curtíssimas e quase sempre prazerosas com NPCs, micro missões que não tomam muito tempo e trazem experiências inusitadas, criativas e engraçadas.

Assassin's Creed Valhalla
Divulgação/Ubisoft

Ainda neste ponto, o design e o roteiro das missões de Valhalla é, sem sombra de dúvidas, um dos melhores que a série já teve nos últimos anos. Cada um dos 20 territórios disponíveis para aliança no jogo corresponde a um “arco”, em uma história relativamente fechada cuja conclusão agrega a trama geral do protagonista.

Com essa estrutura, as histórias fechadas das inúmeras regiões dos quatro reinos saxões apresentam inúmeras particularidades, como as curiosas enrascadas de Eivor em um festival pagão de Gloucestershire, uma investigação para descobrir quem é o traidor em um potencial clã aliado em Cambridge, ou até mesmo uma saga para separar um infeliz casal real em Essex.

Gameplay

Assassin's Creed Valhalla
Divulgação/Ubisoft

No centro do mapa e de sua saga pela Inglaterra, está Ravensthorpe, o local que seu clã decide ocupar para viver. Além de forjar alianças, você também precisa evoluir o local, transformando-o em uma vila. Para isso, além de completar a história, é preciso pilhar outras regiões (em especial igrejas e abadias, como os vikings fizeram na vida real), e obter recursos necessários para construir as casas e lojas de seu vilarejo.

É nessa dinâmica que reside a principal novidade de gameplay de Valhalla: a possibilidade de velejar pela Inglaterra ao lado de um grupo de aliados, que você pode convocar para invadir e saquear bases inimigas. Ao aportar em território hostil, seus guerreiros te acompanham em batalha, auxiliando nas lutas com soldados inimigos. (Há, também, a tradicional opção furtiva).

A adição de NPCs aliados que podem te acompanhar em batalhas é positiva, mas pouco faz (e, em alguns casos, até atrapalha) para tornar o combate de Valhalla interessante. Assim como Kassandra e Alexios em Odyssey, Eivor é praticamente um super-humano, e à medida que ele/ela vai ficando mais forte, com pontos de habilidade ou ataques especiais aprendidos com livros no mapa, não há inimigo que possa te fazer frente, mesmo os chefes, muito cedo na história.

Assassin's Creed Valhalla
Divulgação/Ubisoft

Nesse sentido, os combates de Valhalla deixam de ser um desafio logo nas primeiras horas, o que fez essas atividades se tornarem, em alguns momentos, intervalos tediosos entre os momentos que eu queria ver da história. As animações de luta são bonitas e a quantidade de armas é variada o suficiente para te encorajar a testar novos estilos de jogo, mas combater simplesmente está alguns degraus abaixo das demais atividades do game.

Falando nas atividades, é preciso ressaltar também o tamanho de Valhalla, e sua quantidade imensa de coisas para fazer. É difícil ficar entediado na Inglaterra do século XIX: além da história principal, com a conquista de alianças, há também a expansão de seu vilarejo, a busca pelos integrantes da Ordem dos Anciões, o misterioso arco no mundo dos deuses em Asgard, além de uma série de tipos de itens a serem coletados para diferentes NPCs, e tipos diferentes de minigames (que, aliás, figuram entre os melhores que joguei em 2020, como o jogo de dados Orlog).

Assassin’s Creed Valhalla é um jogo para ser jogado com calma, e que vai levar um bom tempo para ser finalizado, o que é até facilitado pela estrutura narrativa blocada proposta pela Ubisoft. Levei quase 80 horas para terminar o jogo - o dobro de AC Origins, por exemplo -, e ainda ficou muita coisa opcional para fazer.

Assassin's Creed Valhalla
Divulgação/Ubisoft

O jogo, inclusive, tem uma certa dificuldade em dizer quando acaba. Após a finalização da história, ainda há um território a ser conquistado, e só então uma mensagem aparece no canto da tela congratulando o jogador, o que mitiga um pouco do impacto dos eventos que pertencem, oficialmente, à conclusão da história.

Para finalizar, vale ressaltar a localização de Assassin’s Creed Valhalla, que, a exemplo de vários outros jogos da Ubisoft, tem dublagem, legendas e menus em português do Brasil. Embora a qualidade esteja no mesmo nível de outros games AAA lançados no país, a tradução de Valhalla teve desafios particulares na hora dos repentes, ou flyting, um mini-game em que você deve responder a insultos de seu oponente com rimas e métricas específicas.

***

Assassin's Creed Valhalla
Divulgação/Ubisoft

Assassin’s Creed Valhalla é a versão definitiva da saga dos assassinos em sua recente fase como RPG. O jogo aprimora boa parte dos elementos que foram apresentados em Origins e Odyssey, e cativa com uma boa história, bons personagens e, mais uma vez, uma ótima recriação de um período histórico, ainda que tropece um pouco na parte da ação. É um ótimo encerramento de ciclo para uma série que soube aprender com o próprio passado, e continua firme rumo ao futuro.

Nota do crítico