Em 1982, o mundo conheceu River Raid, até hoje visto como um dos maiores clássicos da história do Atari 2600. Com mais de um milhão de cópias vendidas, o jogo foi marcante não só por sua jogabilidade divertida, como ter elementos surpreendentemente complexos para um hardware tão limitado.

O que muitos talvez não saibam é que este é o grande feito profissional de Carol Shaw, uma figura pioneira na indústria de games, não apenas como uma das primeiras mulheres a desenvolver um jogo eletrônico, mas também pela qualidade de seus trabalhos em si.

Nascida em 1955 em Palo Alto, na Califórnia, filha de um engenheiro mecânico, Shaw tinha uma grande aptidão por matemática desde a infância, combinada com um interesse por sets de construção e ferroramas.

Incentivada pelos pais, ela se dedicou ao estudo de conhecimentos matemáticos, e ainda durante a escola começou a interagir com computadores.

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The Game Awards/Reprodução

"Era engraçado — na aula de matemática eles pediam para escrevermos um pequeno programa, e no começo eu fiquei um pouco intimidada a ir na sala de computadores, porque parecia que eram quase sempre meninos que usavam eles", disse em entrevista ao blog Vintage Computing, em 2011.

Shaw estudou na prestigiosa universidade UC Berkeley, também na Califórnia, onde acabou se dedicando às Ciências da Computação, conquistando um mestrado da instituição. Na mesma época, ela acabou chamando interesse de várias empresas, mas uma em particular parecia mais promissora para Carol: a Atari.

"Eu fui paga para jogar videogames", riu a respeito anos depois.

Apesar de ser uma das poucas mulheres no ambiente de trabalho como programadora, Shaw em geral era tratada como uma igual junto de seus colegas — embora não necessariamente pela gerência.

"Certa vez quando eu estava trabalhando no laboratório Ray Kassar, o presidente da Atari, estava fazendo um tour e disse: 'Ah, finalmente! Temos uma designer de games mulher. Ela pode fazer cartuchos sobre combinação de cores de roupas e design interior!' O que são dois assuntos que não tinha interesse nenhum em fazer", explicou. "Mais tarde, os outros caras disseram: 'Não preste atenção nele. Faça o que quiser fazer.'"

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The Game Awards/Reprodução

Shaw também era particularmente respeitada por seu conhecimento, sabendo manipular e utilizar uma das peças centrais do Atari 2600, o microprocessador 6052, como poucas pessoas na companhia.

Apesar de ter sido eclipsada por seu trabalho na Activision, Carol Shaw teve uma carreira prolífica dentro da Atari: Polo, seu primeiro jogo, foi desenvolvido logo no ano de sua contratação, em 1978, desenvolvido como material promocional para o perfume da Ralph Lauren.O game acabou não sendo lançado comercialmente, mas é possível encontrar versões jogáveis pela internet.

"Naquela época uma única pessoa faria o jogo inteiro: o código, os gráficos, os sons, a jogabilidade, a interface - tudo", declarou em 2017. "O que, se você parar e pensar a respeito, é tolo pensar que só uma pessoa seja boa em todos os aspectos do game"

Em 1980, ela finalmente viu seu primeiro jogo lançado comercialmente: 3D Tic-Tac-Toe, essencialmente uma versão tridimensional do tradicional jogo da velha. Ela seguiu com o game de damas digital Video Checkers.

Suas contribuições não pararam por aí dentro da companhia, tendo ajudado tanto nos gráficos de Othello quanto começado o trabalho inicial em Super Breakout, que acabou não completando por ter deixado a Atari no meio do desenvolvimento.

Mas o jogo que marcou história só seria feito em uma companhia totalmente diferente.

Activision e River Raid

Carol deixou a Atari em 1980, juntando-se primeiro à empresa Tandem NonStop Computing Systems, onde trabalhou por 16 meses longe da indústria de jogos eletrônicos.

Logo, porém, ela retornou, desta vez na Activision, na época um estúdio formado por antigos desenvolvedores de jogos da Atari insatisfeitos por sua falta de créditos e reconhecimento em suas próprias obras.

Shaw entrou para a empresa no início de 1982, e logo pensou em fazer algo diferente do que seus projetos anteriores: um jogo de ação.

"River Raid na verdade foi inspirado por um jogo para fliperamas chamado Scramble", explicou ao Vintage Computing. "Era um jogo de espaço. Então fui falar com Al Miller [cofundador da Activision] e disse: 'Estou pensando em um fazer um jogo de espaço.'"

"Ele falou 'Há jogos de espaço demais. Pense em algo diferente.'"

A ideia de uma tela que se move verticalmente surgiu como forma de não desperdiçar pixels com a movimentação do veículo, com a câmera aérea escondendo parte deste movimento. A ambientação, por outro lado, surgiu durante uma epifania ao analisar os aspectos técnicos.

"[...] se você não mudar [o campo de jogo] do nada no meio de uma linha, então pode ou ter a metade da esquerda da tela idêntica à da direita, ou fazer da parte esquerda um espelho da metade da direita", explicou. "Eu estava rabiscando no papel gráfico e pensei: 'Ah, eu poderia fazer uma imagem espelhada, para que pareça um rio com ilhas no meio'. Foi daí que bolei a ideia de que seria um rio."

Um dos grandes diferenciais de River Raid, e que existe graças à habilidade de programação de Carol, está em seus mapas, que eram muito mais coesos do que outros títulos com algoritmos procedurais do Atari 2600.

"Só havia 4 kilobytes de ROM, então você não tinha espaço para guardar muitos gráficos, por isso eu só tinha gráficos das várias transições entre um rio de certa largura mudando para um novo com outra dimensão", explicou em mais detalhes. "Era dividido em seções de 32 linhas, e usei um gerador de número pseudoaleatório para decidir qual seria a próxima largura."

"Então basicamente, você faz algumas mudanças e uma adição ou algo do tipo e gera o próximo número pseudoaleatório, e isso decide como a próxima parte do rio vai ficar."

Curiosamente, a ideia original de River Raid era de que o jogador controlasse um barco, não um avião - o que explica porque, incompreensivelmente, o veículo explode ao encostar nas beiradas do rio.

Sucesso, aposentadoria antecipada e legado

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Wikimedia/Reprodução

River Raid foi um sucesso estrondoso, mudando totalmente o rumo da vida e carreira de Carol Shaw. De que forma?

"Acho que me deu o dinheiro para poder me aposentar mais cedo."

O game superou um milhão de unidades vendidas, e para comemorar a desenvolvedora recebeu um cartucho de platina do jogo, que ela mantém orgulhosamente até hoje.

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The Game Awards/Reprodução

Após o sucesso inicial, ela trabalhou em mais duas versões do jogo, uma para o sucessor do 2600, o Atari 5200, e outro para o computador pessoal Atari 800.

Logo depois, ela tentou a sorte em uma plataforma completamente diferente, o Intellivision, com o jogo Happy Trails.

Depois disso, porém, seu caminho na indústria de games chegou ao fim. Shaw deixou a Activision e voltou para a Tandem, onde trabalhou de 1984 a 1990, antes de outro emprego na Xerox com o marido, Ralph Merkle, e finalmente uma aposentadoria antecipada.

Shaw ainda se manteve ativa, em geral com trabalhos voluntários ou até empregos de meio período, mas com um ritmo muito menos exaustivo do que quando trabalhava em grandes empresas.

Seu impacto no mundo dos games, porém, não foi esquecido, tendo recebido o prêmio Industry Icon no Game Awards 2017, e abrindo caminho junto de outras veteranas da Atari , como Donna Bailey (Centipede) e Carla Meninsky (Warlords para mulheres na indústria.