Children of Morta narra a trajetória de uma família. Os Bergsons possuem uma lendária linhagem de heróis, protetores das terras de Morta. A casa em que os principais acontecimentos se desenrolam abriga três gerações da parentada, com destaque ao relacionamento entre eles. Ir além disso seria estragar as surpresas que a jogatina oferece. E são boas, pode acreditar.

A história da produção de Children of Morta se assemelha a de muitos outros projetos: um grupo de amigos que se reúne para criar um jogo, descobre que não tem dinheiro, cria um financiamento coletivo, arrecada a grana e consegue tirar a ideia da prancheta. O sucesso, porém, difere a cria do estúdio Dead Mage do restante.

Afinal, o que esse RPG de ação roguelike (gênero em que os estágios são gerados aleatoriamente a cada nova partida) tem de tão especial que o tornou aclamado entre a crítica, chegou a praticamente todas as plataformas, ganhou destaque no GamePass (o Netflix de jogos da Microsoft) e levou a produtora a anunciar uma série de expansões, a maioria gratuita, para os próximos meses?

Numa palavra: esmero.

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Dead Mage/Divulgação

Basta bater o olho para perceber que há um tempero extra ali. A pixel art refinada destaca-se com uma iluminação dinâmica muito comum em jogos 3D, mas raríssima nos 2D. A fluidez nos movimentos existe porque foi feita à mão, não por padrão computadorizado. Todos os seis personagens disponíveis mantém o mesmo equilíbrio nos combates e, acima de tudo, são divertidos de usar. Tudo somado a uma história contada de maneira inédita em títulos roguelike, duas características difíceis de serem conciliadas.

E a razão é fácil de entender: com estágios gerados fortuitamente e diversos personagens controláveis, fica difícil contar uma história linear sem que haja repetições constantes. "Esse foi o nosso maior desafio", explica Amir Fassihi, CEO da Dead Mage, em conversa com o The Enemy. "Tivemos que criar nossa própria noção de progresso."

A criativa solução foi apelidada de "tempo de Bergson" pela equipe de 14 membros que trabalha remotamente, cada um em sua própria casa. Fassihi explica que "o tempo de Bergson é um parâmetro importante para o gerenciamento da história saber que tipo de evento mostrar ao jogador. Esse sistema de tempo considera os acontecimentos anteriores, a progressão do usuário e alguns outros fatores."

De tudo o que havia sido planejado inicialmente no jogo, somente o modo cooperativo precisou ser postergado, prevista para 2020 em forma de atualização gratuita, juntamente de outras novidades: A primeira delas, chamada Shrine of Challenge, já está disponível e adiciona a dificuldade difícil e cerca de 20 novos itens; Na sequência, embora sem datas precisas, virão Setting Sun Inn, que adiciona o modo New Game+; Random Encounter, para partidas com objetivos aleatórios; In the Bergsons' House, que apresenta um novo personagem; The Fellowship Sanctuary, o tão esperado modo online cooperativo; Temple of the Endless, opção para enfrentar ondas de adversários; e The Treasure, inclusão de mais de 30 encantos, graças divinas e relíquias.

Por último, o estúdio lançará a expansão paga The Uncharted Lands, que amplia a história dos Bergsons, apresenta um novo personagem controlável, além de mais inimigos e um chefe inédito.

No papo a seguir, Fassihi fala sobre uma possível sequência de Children of Morta, as ideias originais que precisaram ser cortadas na produção, o sistema criado para contar a história em um roguelike e mais.

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Dead Mage/Divulgação

The Enemy: Antes de mais nada, você poderia dizer como surgiu a ideia sobre o jogo? Como [ou em que momento] se decidiu ter um grupo de personagens controláveis ​​em vez de apenas um?

Amir Fassihi: Decidimos fazer um jogo roguelike com muitos personagens praticamente desde o começo. Inicialmente nem todos eram membros da família, estávamos pensando em ter várias personalidades com diferentes estilos, tipo cavaleiros, ninjas, anões etc. Queríamos fazer um roguelike porque acreditávamos que era uma boa escolha para um time pequeno e pensei que o jogo pudesse ser bem dimensionado sem a necessidade de adicionar muito conteúdo.

The Enemy: O estilo artístico é atraente, mas para a perspectiva de uma pessoa não especializada, é difícil entender por que é tão diferente de outros jogos de pixel art. Você pode explicar?

AF: Uma razão pode ser que a resolução dos planos de fundo em Children of Morta seja maior do que os habituais jogos de pixel art, há mais detalhes. A paleta de cores usada para adicionar sombreamento, as luzes dinâmicas, as animações de quadros em alta definição são provavelmente outros motivos pelos quais a aparência o diferencia tanto.

The Enemy: Além disso, a iluminação é impressionante e é outro destaque em comparação a outros jogos de pixel art. O que o torna tão diferente?

AF: Usamos luzes dinâmicas que não são comuns em jogos de pixel art. Foi algo experimental que decidimos tentar. Uma vez que percebemos que essa técnica poderia melhorar o visual, adicionamos o processo ao nosso organograma. Também usamos alguns efeitos pós-processamento para aprimorar ainda mais o visual.

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Dead Mage/Divulgação

The Enemy: A história dos Bergsons é o principal mote do jogo. Como você resolveu o problema de ser um roguelike e ao mesmo tempo ser focado pela narrativa?

AF: Este foi o nosso maior desafio. A história tem duas partes. Os eventos narrativos e os processuais abrangentes fixos. Não podíamos confiar na progressão de nível, como na maioria dos jogos, para controlar o desenrolar da história. Tivemos que criar nossa própria noção de progresso. Em Children of Morta, um sistema de tempo especial precisa ser a entrada para os eventos da história principal. Esse sistema de tempo considera os eventos anteriores, a progressão do jogador em uma masmorra processual e alguns outros fatores. Nós chamamos de "tempo de Bergson". A maioria dos eventos principais do arco da história acontece na casa. Você os vê quando seu personagem é derrotado na masmorra e retorna ao ambiente familiar. O tempo de Bergson é um parâmetro importante para o gerenciamento da história saber que tipo de evento mostrar ao jogador. A outra categoria de narrativa, os eventos processuais, geralmente estão espalhados nas masmorras ou serão mostrados na casa. Algumas são aleatórias, outras, ligadas a ambientes especiais e outras a determinados eventos.

The Enemy: Como os personagens foram criados? Toda a família de uma só vez ou cada membro surgiu à medida em que a história foi escrita?

AF: Quando surgiu a ideia de uma família, quase todos os personagens foram criados em um dia. Nossos artistas foram em frente e criaram esboços para diferentes membros que essa família poderia ter e foi praticamente o que acabou sendo usado no jogo final.

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Dead Mage/Divulgação

The Enemy: Imagino que durante o desenvolvimento de um jogo muitas ideias surjam e, por necessidade, várias sejam cortadas. Você pode dizer algo que foi cortado, mesmo que sentisse pena?

AF: Exatamente. Tínhamos muitas ideias que não podiam entrar no jogo, por várias razões. Às vezes, porque provavam não ser interessantes o suficiente, às vezes porque tinham conflitos com outras ideias ou sistemas no jogo e às vezes por limitações de produção. Uma dessas ideias foi um sistema de cozimento para Mary, a mãe da família. Tivemos algumas considerações para que ela tivesse um papel ativo em casa, como preparar várias refeições para sua família. Isso também teve efeitos na mecânica. Chegamos a criar protótipos dessa ideia, mas não dispomos de tempo ou recursos para garantir que pudesse ser um sistema polido o suficiente para se encaixar bem com todo o resto do jogo.

The Enemy: Posso estar errado, mas criar pixel art é mais difícil do que a arte "tradicional", especialmente com animações fluidas. Quanto tempo levou para desenvolver cada personagem? Anda nesse tema, quais problemas surgiram no processo e como os resolveu?

AF: Bem, isso realmente depende da resolução da animação. No nosso caso, pensamos que a pixel art facilitaria nossas vidas, mas acabou que também tem seus próprios desafios. Às vezes, você pode usar animação 2D esquelética para jogos. Nesses casos, o animador cria apenas quadros-chave e o restante do movimento é gerado pelo computador. Para pixel art, todos os quadros precisam ser desenhados à mão pelo animador, não é possível obter ajuda da máquina para fornecer os quadros intermediários para animações. Isso leva muito tempo. Além disso, outro desafio é que você não pode fornecer variações facilmente para os personagens, por exemplo, se seu personagem é animado com uma espada e você quer que ele empunhe outra arma, todos os quadros precisam ser refeitos e você não pode simplesmente anexar um novo equipamento ao recurso de animação anterior, como é o padrão de desenvolvimento em todas as animações esqueléticas.

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Dead Mage/Divulgação

The Enemy: De um modo geral, jogos com mais de um personagem dificilmente os têm de maneira equilibrada. Você conseguiu manter todos equilibrados e, o que é mais interessante, divertidos de controlar. Como foi o processo de aprimorar as habilidades, mantendo um combate intenso, preciso e funcional para todos os membros da família?

AF: Este foi um baita desafio para nós. Uma grande parte disso foi garantir que tanto os personagens corpo-a-corpo quanto os de longo alcance fossem equilibrados e que nenhum dos dois fosse mais fácil ou mais difícil de jogar. Nossos designers gastaram muito tempo balanceando o jogo e isso ainda continua sendo feito até hoje após o lançamento. Uma coisa que foi surpreendente para nós mesmos foi o fato de percebermos que pessoas diferentes mencionavam personagens diferentes como seu predileto e, erroneamente, acreditavam que era mais forte que o resto. Isso mostrou que o jogo é equilibrado e eles têm esse sentimento por causa de seus estilos de jogo.

The Enemy: Você anunciou uma série de conteúdo gratuito para o jogo. Você decidiu criar esse conteúdo desde o início da produção ou foi algo que pensou após o lançamento do jogo?

AF: A maior parte desse conteúdo foi planejada após o lançamento do jogo. A exceção é o multiplayer online. Tínhamos planos de lançá-lo no primeiro dia, mas devido aos muitos desafios que enfrentamos, decidimos adiá-lo para depois do lançamento, para que tenhamos tempo suficiente para aperfeiçoá-lo e garantir ótima experiência para jogar cooperativamente com seu amigo pela internet. Uma experiência que realmente agregue valor à partida.

The Enemy: O estúdio está trabalhando em um novo jogo chamado Tale of Ronin, mas considerando o sucesso de Children of Morta, você pensa em uma sequência?

AF: Ainda não temos planos para isso, mas a equipe está pronta para essa possibilidade.