Jogos frustrantes são complicados. Em um tempo no qual experiências casuais tomam cada vez mais espaço no mercado, sempre que algo difícil como Dark Souls, The Witness ou o último mundo de Mario + Rabbids: Kingdom Battle aparece, há sempre o risco de os desenvolvedores apostarem as fichas de forma errada na dificuldade e criarem algo injusto. Em 2017, ninguém correu tanto esse risco como o Studio MDHR, criador do cruel Cuphead.

A ideia é simples: há 28 chefões e algumas fases de plataforma. Você é o Cuphead, um menino com cabeça de xícara capaz de atirar projéteis de seu dedo. Vá lá e derrote todos os inimigos deste belíssimo universo trazido à vida com uma arte feita à mão que reproduz o estilo de desenhos dos anos 1930, como as grandes obras de Max Fleischer. Você pode sofrer dano duas vezes durante uma luta, mas o terceiro golpe é fatal (a não ser, é claro, que você tenha adquirido pontos de HP adicionais).

Você vai morrer. Vai morrer sempre, morrer inúmeras vezes, morrer até cansar

Então vamos tirar isso do caminho: você vai morrer. Vai morrer sempre, morrer inúmeras vezes, morrer até cansar. E então, como diversos jogos difíceis, vai aprender que a morte faz parte do ciclo de aprendizado e parar de vê-la como uma falha, e sim apenas outro degrau. Ao colocar batalhas difíceis logo nos primeiros minutos do jogo, o Studio MDHR deixa claro suas intenções de fazer você passar pelo matadouro. Mas ser difícil não é nem uma qualidade nem um defeito. Como você usa a dificuldade é o que faz a diferença.

Cuphead vai te render aproximadamente 8 horas de gameplay até você completá-lo, mas apenas 40 minutos desse tempo serão necessários para derrotar os chefões à sua frente. Cada batalha no jogo dura aproximadamente 1 minuto (e alguns segundos), então suas tentativas de sucesso, juntas, devem somar para algo perto de meia hora de jogatina (já as falhas vão rapidamente se transformar em horas). E são os minutos mais angustiantes e tensos que eu tive esse ano - com exceção do inferno que é Hellblade. São minutos, apenas. Bolsões de intensidade dentro dessa longa e árdua jornada.

Não escute as comparações com Dark Souls. Lá, a dificuldade é como uma dança complexa que muda de ritmo constantemente, aumentando e diminuindo com o tempo. Aqui, ela é puro caos controlado, ganhando intensidade constantemente até o clímax. Quando as lutas contra chefões começam, seus reflexos passam a ser testados repetidamente até que você derrote o inimigo. E como os confrontos são curtos (assim como sua vida), morrer vai ser uma boa ferramenta de aprendizado. As mecânicas aqui são simples. Você pode atirar, trocar o tipo de tiro, usar especiais, deslizar e pular - um "pulo duplo" acontece quando você dá parry em um elemento do cenário que sempre é apresentado na cor rosa.

Aqui, a dificuldade é puro caos controlado, ganhando intensidade constantemente até o clímax

A chave para o sucesso de Cuphead está na forma como os desenvolvedores misturam essas mecânicas. O Studio MDHR tomou uma decisão difícil e corajosa. Realmente, dominar uma fase e conhecer um chefão de Cuphead será pouco útil quando você entrar na fase seguinte. Sim, você terá dominado mais os controles e seus reflexos podem estar mais afiados, mas o desafio a seguir provavelmente vai te forçar a usar todas as suas habilidades com uma combinação, sequência e forma diferentes.

Essa foi a maneira com a qual o estúdio conseguiu construir uma experiência que pega uma jogabilidade simples e a desenvolve ao máximo num ambiente de alta dificuldade, e eles acertam em cheio. A forma como cada chefão acomoda as mecânicas é sempre diferente, então nunca há um sentimento de repetição ou tédio. A cada inimigo (ou fase de plataforma), Cuphead se reinventa quase que por completo. Admito que preferiria algo que me ensinasse e me tornasse um jogador melhor com o tempo. Em Cuphead, eu sempre sentia que estava começando a escalar uma montanha do zero, especialmente nas últimas batalhas, no qual a curva de dificuldade sobe mais rápido do que a temperatura no Rio de Janeiro nos primeiros meses do ano. Mas é difícil crucificar o Studio MDHR por essa decisão, já que ela torna o jogo surpreendentemente acessível.

Existe, entretanto, um problema claro na dificuldade. No primeiro momento, Cuphead pode ser jogado no Simples ou Regular (entenda-os como médio e difícil), mas em um determinado momento há uma mensagem de que se você não terminar as fases no Regular, não poderá prosseguir até o final. Eu entendo que o Studio MDHR quer apresentar um desafio para os jogadores e forçá-los a encarar os chefões com toda sua força, mas a partir do momento em que o Simples é uma opção, os desenvolvedores estão dizendo que aquela é uma forma válida de jogar. Punir quem escolhe esse caminho com uma parede e forçá-los a jogar inúmeras batalhas novamente é, ao meu ver, o maior erro do jogo.

As fases de plataformas seguem o mesmo princípio que os chefões. Elas não tem um design muito inspirado, especialmente no começo, mas encontram um ritmo interessante e apresentam o mesmo tipo de desafio. Você pode conhecer as mecânicas, mas será necessário mais do que só experiência para terminá-las. Reflexos, improviso e especialmente a capacidade de se adaptar serão seus maiores aliados contra os inimigos deste jogo. Estes níveis, junto com os Mausoléus - áreas que te ajudam a dominar o parry - servem pra quebrar o ritmo dos encontros com chefes e oferecerem algo diferente e muitas vezes renovador.

As mecânicas de Cuphead são como ovos. Você rapidamente se familiariza com elas, e fazer o básico é tranquilo. Um ovo frito dificilmente é um desafio. Mas conforme os omeletes, bolos e ovos cozidos vão surgindo, você precisará usar o seu conhecimento em receitas diferentes. Felizmente, isso significa que sempre haverá um gosto diferente para provar. E ao contrário das minhas aventuras na cozinha, o resultado final é sempre gostoso. Derrotar um chefão ou chegar ao fim de uma fase são exatamente o tipo de experiência catártica que você torce pra ter.

E se o gameplay ajuda Cuphead a se manter novo, a inacreditável apresentação vai sempre toná-lo atraente. Eu digo "apresentação" porque limitar o elogio aos gráficos do jogo é quase uma ofensa. Eles são lindos à primeira vista e ainda mais impressionantes em movimentação, mas o Studio MDHR vai além. Os inimigos e heróis, seja na animação usada para seus movimentos, seja no design de seu visual, são sempre únicos e detalhados. O cenário, especialmente quando populado por personagens, são vivos e muitas vezes caóticos.

É ridículo o quão parecido com um desenho animado esse jogo é, mas o que permite essa impressão também está na forma como os diálogos são escritos, na própria premissa da história - o quão apropriada e clássica é uma trama de luta contra o diabo? - e especialmente no design de som. A trilha sonora carrega as lutas contra chefões com músicas que, eu tenho certeza, você ouviria no rádio se viajasse no tempo para o Kentucky em 1932. E o que falar então dos efeitos sonoros, seja dos ataques, dos golpes levados ou das falas de alguns personagens? Cuphead captura uma época como pouquíssimos games conseguiram.

O único momento onde isso trai o jogo é no cooperativo. O que deveria ser uma arma para encarar as fases mais difícil acaba virando mais um obstáculo. O estilo de arte, outrora a maior qualidade de Cuphead, fica caótico demais quando dois jogadores estão se movendo na tela. E como os chefões não perdoam nenhum erro, isso pode resultar em derrotas frustrantes.

Mas quando tudo funciona em Cuphead, esse é um espetáculo digno de ser testemunhado e jogado. Com uma dificuldade que reflete perfeitamente a violência única dos desenhos que dão vida aos visuais e sons da experiência, o longo e aguardado jogo do Studio MDHR se posiciona como uma das jornadas mais estressantes e únicas disponíveis no mercado. Mesmo que você quebre um ou outro controle, vale adicioná-lo ao seu currículo.

Cuphead está disponível no Xbox One e PC. O jogo foi testado num notebook Avell com processador Intel i5, por meio do Xbox Play Anywhere. Clique no nome das plataformas para conferir o preço na versão digital.

Nota do crítico