No último dia 06 de outubro, o jogador profissional Chung "Blitzchung" Ng Wai foi punido com um banimento temporário pela Blizzard por se manifestar a favor dos protestos em Hong Kong durante a transmissão do torneio Hearthstone Grandmasters.

O episódio provocou uma enorme crise de imagem para a empresa, que já envolveu funcionários, a apropriação de Mei, de Overwatch, como símbolo pelos manifestantes (via Polygon), e deixou a própria BlizzCon na mira de protestos. Em meio à polêmica, a Riot Games também endureceu suas normas em relação à manifestações políticas em seus eventos alegando, assim como a Blizzard, que tal medida visa proteger seu público de diversos credos e culturas de possíveis ofensas.

A conclusão mais provável é que o banimento dos chamados "assuntos sensíveis" pelas grandes empresas de games seja motivado pelo aspecto financeiro: permitir as manifestações pró-Hong Kong é correr o risco de se indispor com a China, um mercado enorme e cada vez mais influente na indústria.

Mas a escolha de palavras chama a atenção: a regra usada para justificar o banimento se refere à proibição de qualquer ato considerado "abusivo, insultuoso, zombador ou perturbador", e os comunicados ressaltam a ideia de manter o foco nos jogos. O discurso predominante na indústria é que games e política não se misturam, e que trazer esses temas à tona é apenas uma perturbação da paz da comunidade, um ato de indisciplina e de desvio de foco.

As mensagens oficiais de grandes empresas de esports, porém, não são os únicos lugares em que uma separação rígida entre videogames e política é defendida.

Games e escapismo

Há um posicionamento recorrente entre gamers que se mobilizam contra um suposto "sequestro" dos jogos digitais para pautas políticas, principalmente quando surgem debates sobre inclusão e diversidade nos games: "mantenha a política longe dos jogos" foi uma frase repetida durante todo o Gamergate, por exemplo.

Existe uma crença de que games são "neutros", mesmo quando eles abordam temas claramente políticos como guerras, e que a repetição de estereótipos deixe claro que existe uma ideologia ditando quais representações são mais ou menos aceitáveis. Para que essa suposta neutralidade seja mantida como uma questão "natural" nos jogos digitais, é preciso um esforço coletivo enorme envolvendo indústria e público para afastar qualquer reflexão crítica que questione a artificialidade de tudo isso.

Como escreveu Oscar Wilde: Ser natural é a mais difícil das poses.

Em seu livro Die Tryin': Videogames, Masculinity, Culture, o pesquisador Derek A. Burrill analisa a resistência da comunidade gamer em discutir assuntos políticos como um esforço para manter os videogames isolados de questões que podem tocar em tensões e fragilidades dos consumidores, já que os jogos seriam um espaço escapista em que os jogadores poderiam exercer suas fantasias de poder sem os problemas sociais que enfrentam no dia a dia. É uma questão que dialoga diretamente com a percepção de serem discriminados e isolados socialmente, e que precisam defender o "mundo gamer" como o único espaço em que são plenamente aceitos.

As grandes empresas de games acompanham o público neste sentido, tanto como estratégia publicitária de se colocarem como acolhedoras aos gamers quanto pelo medo de serem vítimas de movimentos de assédio como o Gamergate, e posicionamentos como os da Blizzard e da Riot são exemplos disso. A manutenção da fantasia da neutralidade política tem sido usada como defesa desse status escapista dos games e em momentos em que os mesmos são acusados de incitarem violência e vícios, com argumentos como "são só jogos".

Instrumentalização política das comunidades gamers

Recentemente, porém, ficou mais difícil acreditar que os jogos digitais são um território neutro para a política, apesar de todos os esforços neste sentido. Com a centralidade das redes sociais nos processos eleitorais dos últimos anos, comunidades e influencers gamers passaram a se destacar nesse cenário, e as fronteiras entre os temas ficaram mais diluídas. E o mais curioso é que esse movimento foi impulsionado justamente pela ideia de que o mundo dos games deve ser politicamente neutro.

Em seu livro Kill All Normies: Online Culture Wars From 4Chan And Tumblr To Trump And The Alt-Right, Angela Nagle faz uma análise da ascensão da extrema direita estadunidense, que resultou na eleição de Donald Trump, a partir da mobilização online de grupos inicialmente distantes da política, como gamers e criadores de memes.

Nagle argumenta que a estratégia de abordagem mais comum para esses grupos é o uso de teorias conspiratórias que afirmam que toda tentativa de trazer o debate de questões políticas e sociais para os jogos digitais fazem parte de uma guerra cultural que visa a manipulação dessa mídia para a difusão de mensagens políticas, destruindo assim as fantasias escapistas que deixariam os jogos divertidos.

Embora seja contraditório ver que a preocupação em torno dessa suposta conspiração acabou resultando justamente no que ela queria evitar, o uso de comunidades gamers para a propaganda política, é fato que funcionou, e não só nos Estados Unidos.

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O presidente Jair Bolsonaro jogando um jogo de PlayStation VR

Jair Bolsonaro/Reprodução

A pesquisa "Quem são e no que acreditam os eleitores de Jair Bolsonaro", publicada em 2018 e desenvolvida pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo sob a supervisão da professora Isabela Oliveira Kalil, traz 16 perfis de apoiadores típicos do atual presidente, alinhado ideologicamente a Donald Trump, entre eles um nomeado "Nerds, gamers, hackers e haters".

Segundo a pesquisa: "[...] esse grupo foi um dos principais responsáveis por disseminar a imagem de Bolsonaro em sua pré-campanha, o que contribuiu consideravelmente para sua atual 'popularidade'. A figura em particular construída pelos nerds, gamers e hackers conservadores compreende a do 'bolsomito', lapidada a partir da produção, majoritariamente nas redes sociais, de memes centrados no candidato, geralmente acompanhados por um tom jocoso e provocador".

O estudo ainda destaca a importância dos movimentos de cyberbullying, como o Gamergate, para manter a mobilização política sempre ativa em torno de um inimigo comum.

A economia de atenção predominante nas redes sociais, cujos algoritmos geralmente favorecem conteúdos polêmicos e com alto índice de engajamento, acaba por beneficiar também esse tipo de uso político dos espaços gamer atraindo influenciadores a princípio focados em jogos para produção de conteúdo político e a mobilização de ataques virtuais. Com todas essas questões,está cada vez mais difícil para a indústria de games se esquivar de encarar o mundo político de frente.

O videogame como espaço de debate

Funcionários da Blizzard protestando contra ações da empresa

A crise gerada pelo posicionamento da Blizzard no caso de Blitzchung, assun como as reflexões sobre o papel da fantasia de neutralidade política dos games nos processos eleitorais recentes, mostram que continuar a ignorar a posição dos jogos digitais como mídia participante do seu contexto social é uma abordagem insustentável, principalmente com a importância que as redes sociais têm no mercado de games. A indústria precisará encontrar caminhos melhores para lidar com as complexidades políticas de seu tempo que o silenciamento de tudo que possa ser "sensível".

Embora alguns temas políticos acabem ganhando algum espaço no mainstream ocasionalmente (sempre enfrentando muita resistência dos movimentos conspiratórios já citados aqui), as melhores estratégias de articulação têm sido feita às margens, principalmente por desenvolvedores independentes ligados ao ativismo político. No Brasil, por exemplo,o desenvolvedor e pesquisador Pedro Paiva defende a inserção do videogame no espaço público, um conceito que ele chama de "fliperatmosfera". Existe também um movimento entre criadores de conteúdo em contextualizar mais as reflexões e críticas ao videogame, gerando conversas a partir dos conflitos que muitas vezes a indústria tenta evitar a qualquer custo.

Embora não exista caminho fácil, já que o tema continuará gerando resistência e ocasionais crises, as abordagens mais bem sucedidas no momento passam pela coletivização dos espaços dedicados aos jogos, a ideia de que a construção de um debate conjunto é mais importante do que proteger as sensibilidades individuais do público. O caminho parece ser entender o gamer como cidadão antes de consumidor.