Filipe Pereira não começou sua carreira focado no desenvolvimento de games. Sua formação acadêmica foi em História, e só mais tarde se envolveu com jogos eletrônicos - embora a ligação historiográfica nunca tenha se perdido com o tempo.

"Fui migrando para Games bem aos poucos", disse Pereira em entrevista ao The Enemy. "Comecei na área de games mais na área acadêmica, primeiro focando em pesquisa e depois com licenciatura. Trabalhava em um grupo de pesquisa com jogos educativos, só que a gente decidiu criar uma empresa e tentar alinhar um pouco essa perspectiva da teoria, que já conhecíamos bastante, com a parte de desenvolvimento e mercado."

A experiência com jogos educativos, em particular, levou à captação de recursos via edital do governo baiano para a criação de um game focado na Guerra de Canudos, um dos conflitos que definiu o início da República do Brasil, e um massacre que reverbera na história do Nordeste.

A este ponto, porém, Filipe e alguns de seus companheiros já planejavam deixar a perspectiva de games educativos para trás - embora isso tivesse seus próprios desafios, e associações do próprio público.

"Acho que um dos principais desafios que a gente enfrenta até hoje reside na questão de que, quando a maioria das pessoas - seja público gamer ou não - quando veem jogos com temática nacional automaticamente associam a títulos que tenham um fim educacional", explica.

Com o apelo de criar um produto comercial, mas com uma pegada histórica forte, em 2017 foi criado o estúdio Aoca Game Lab - e, graças ao edital, a chance de criar um game focado não só em Canudos, mas sobre a vida no Sertão do Século XIX.

"A gente começou a beber de outras referências e saímos do local exclusivo de Canudos para abraçar o Sertão como espaço ficcional", relembra.

Árida: Backlands Awakening
Aoca Game Lab/Divulgação

E foi assim que nasceu o projeto de Árida: Backlands Awakening, jogo de sobrevivência que tem como protagonista Cícera, uma menina que, durante uma grande seca em 1896, acaba partindo em uma jornada em busca de Canudos e seu líder, Antonio Conselheiro.

Para Filipe, há algo de especial em recriar este contexto histórico e elementos em uma mídia diferente, em especial ao apresentá-la para um novo público nacional - e até internacional.

"A primeira coisa tem a ver com a natureza da própria mídia, pelo fato de ter a interação e o alto poder de imersão de viver em outros espaços, e ter empatia com outros contextos", diz. "Acho que isso coloca jogos em um lugar que basicamente nenhuma outra mídia tem."

"A segunda coisa, que está mais conectada com o tema que a gente trabalha, é o de usar jogos como espaço para ressignificar identidades mesmo. O consumo dessa área é muito conectado a produções que vêm de fora, então naturalmente as temáticas são mais de fora."

A representatividade e conexão com o público brasileiro foi um ponto importante para o produtor: "Pro brasileiro, é muito novo ver coisas suas nessa plataforma, então o sentimento ainda é de um pouco de aversão por conta disso. Estamos falando de 20, 30 anos em que consumimos muita coisa de fora."

"Especialmente para as gerações mais novas, que às vezes não tem mais tanto contato com livros como era com gerações anteriores, e as coisas acontecem em espaços interativos e digitais. Então no fim das contas é conhecer mais sobre si mesmo através de algo que você faz naturalmente."

Sertão virtual

Árida: Backlands Awakening
Aoca Game Lab/Divulgação

Para a criação do primeiro jogo, a equipe bebeu de diversas fontes em termos de gameplay, de fontes conhecidas até mais obscuras.

"The Flame and the Flood foi o primeiro jogo que influenciou a gente, e influencia até hoje na continuação do projeto", explica Filipe Pereira.

Os primeiros playtesters, entretanto, encontraram paralelos com outra série: The Legend of Zelda.

"A galera apontava e falava: 'Pô, tá uma sensação muito 3D nintendista'. E citavam jogos da época do Nintendo 64, mas em especial o Zelda. E a gente percebeu isso, de fato". O produtor diz que a comparação tem seus limites, afinal as aventuras de Link contam com bem mais ação do que a de Cícera, mas há um respeito claro pela franquia da Nintendo pela Aoca.

"A perspectiva de criação de ambientes e de histórias é algo no qual nos inspiramos muito. E também na perspectiva da franquia: o fato de ela ter se estabelecido há tanto tempo com uma mecânica central ali, mas com universos fantásticos muito distintos uns dos outros - e às vezes as mecânicas também mudam."

Árida também contou com pesquisa historiográfica, literária e cinematográfica vinda ou inspirada pelo Nordeste, mas Filipe diz que o que mais impactou o processo de pesquisa foi visitar o terreno do Sertão como um grupo.

"Tudo mundo do time é da capital, de Salvador, e não somos sertanejos. Por mais que seja uma cultura muito próxima da gente, estar lá, viver e interagir é muito diferente", declarou. "Quando se trabalha com arquitetura é uma coisa, criando casas e etc. Mas quando você tá criando um bioma, sem você ir no espaço, é uma diferença muito grande. Nosso bioma mudou completamente, as texturas, as cores das vegetações... este foi um ponto de virada muito grande."

A interação cultural também foi essencial para o processo.

Aoca Game Lab/Divulgação

"Às vezes a gente pensa muito na ida da pesquisa como uma referência só imagética, de pegar vegetação e arquitetura. Mas o contato com a cultura de lá - e fomos muito pra dentro, pra zona rural - foi um diferencial absurdo nessa parte da contação da história."

"Foi muito curioso porque a gente viu personagens do jogo, que a gente já havia criado, quando fomos para lá. Fisicamente, muito parecidos", explica. "Isso foi bom para gente porque viu que estávamos em um caminho legal, mas ao mesmo tempo foi fundamental para rever algumas coisas"

O processo de criação e desenvolvimento do jogo em si também passou por seus percalços, e vários aprendizados.

"Acho que tem a ver muito com maturidade, e digo isso em um sentido técnico, de você às vezes querer colocar tudo o que acha interessante, e no fim das contas não ter experiência de dizer: 'Isso vai. Isso não vai'."

Ascensão dos Bravos

Após o lançamento do primeiro Árida, em 2019, a equipe passou um bom tempo refinando a experiência com base em retornos e opiniões de jogadores. Agora, eles trabalham na sequência, intitulada Rise of the Brave, que está previsto para o segundo semestre de 2021.

De acordo com Filipe Pereira, enquanto o primeiro jogo trazia um foco significativo na narrativa e elementos de sobrevivência, o novo Árida promete implementar novas mecânicas centrais, embora mantendo o foco no que os desenvolvedores consideram seu principal ponto forte.

"Pesamos mais na parte do sistema - é um jogo que tem um ciclo de dia e noite, as mecânicas de crafting são mais aprofundadas - mas sempre mantendo essa linha-mestre dos jogos da Aoca, que é a pegada de storytelling, é nosso ponto forte como empresa."

Rise of the Brave também parece trazer uma estética e estilo mais sombrios do que seu predecessor. Filipe diz que é uma decisão deliberada.

Árida: Rise of the Brave
Aoca Game Lab/Divulgação

"Foi bem consciente da nossa parte fazer uma coisa mais lúdica com o primeiro, porque entendíamos que era a carta de apresentação do projeto e da empresa, de nós como desenvolvedores", declara. "Esse segundo já é sobre você, enquanto uma menina de 13 anos, andando sozinha no Sertão buscando um lugar que é Canudos, então não podemos romantizar isso."

O segundo também promete refinar e trazer mais qualidade de vida ao jogador, com a inclusão de um mapa e um crafting melhor e mais elaborado.

Para ajudar com este processo, recentemente a Aoca Game Lab também passou a contar com um parceiro significativo nessa empreitada: o Google

Black Founders Fund

A conexão com o Google surgiu de uma maneira inesperada, já que de acordo com Filipe há um certo "limbo" entre startups e estúdios de games.

"A galera do audiovisual não abraça tanto; a galera de start-ups não enxerga tanto a lógica de games - pela própria visibilidade do setor", explica. "A gente não estava tão conectado assim com o ambiente de startups. Isso aconteceu muito recentemente, coisa de um ano pra cá."

Graças à iniciativa Vale do Dendê, a Aoca encontrou mais pontos de contato com o Google. Para ajudar ainda mais, Iago Silva dos Santos, amigo de Filipe e idealizador da startup de entregas Traz Favela, recomendou ao grupo se aplicar para o programa Black Founders Fund, o primeiro fundo de investimento do Google for Startups no Brasil.

Google/Divulgação

A associação com uma das maiores empresas trouxe uma série de benefícios para os desenvolvedores.

"A primeira coisa é a visibilidade. É um parceiro de um nível absurdamente grande, global, e isso nos deu uma visibilidade muito interessante, que a gente sente das pequenas às grandes coisas: desde os contatos do LinkedIn, que é mais restrito, até o próprio ecossistema de startups daqui, com o qual não estávamos tão inseridos"

Mais do que isso, a parceria também ofereceu uma série de ferramentas para a equipe, desde uma página especial para o jogo até suporte técnico no YouTube, passando por entender melhor qual é o público-alvo do estúdio via Google Analytics, que também ajuda na estratégia de marketing do game.

"Uma coisa é fazer jogo. Outra coisa é vender jogo. Parece que são coisas iguais, mas são coisas estupidamente distintas."

E, é claro, o orçamento extra certamente ajuda com o desenvolvimento em si.

"A gente trabalha sempre com um orçamento muito limitado", comentou Filipe Pereira. "Queremos colocar mais música? Não tem grana. Quer colocar mais vozes? Não tem grana. Precisa contratar um modelador? Não tem grana."

"Isso já apaga um incêndio muito interessante pra gente."

Criação em tempos de Covid

Árida: Rise of the Brave
Aoca Game Lab/Divulgação

Em maio de 2020, Filipe falou sobre as dificuldades de desenvolvimento de games em meio ao período da pandemia de COVID-19.

Nesta nova entrevista, ele também citou mais sobre o período de adaptação, e até as vantagens encontradas nesta situação difícil.

Um dos maiores problemas, de acordo com ele, foi trabalhar longe do equipamento nos laboratórios da UNEB (Universidade do Estado da Bahia).

"100% do time não tinha uma máquina boa o suficiente para fazer o que fazíamos lá, então só aí temos uma dificuldade que já é impeditiva."

Os primeiros seis meses foram marcados por vários problemas de entregas e atrasos. A partir de outubro, porém, a linha de produção clicou ao ponto de ser possível até seguir em frente desta forma após as coisas voltarem ao normal (ou o mais próximo disso):

"Hoje em dia a gente já considera, inclusive, permanecer assim. O que também é interessante para ter, eventualmente, desenvolvedores de outros centros e tudo mais."