Os jogos independentes são uma parte cada vez mais essencial da indústria de games, sendo uma das grandes fontes de inovação, oportunidades e perspectivas inéditas sobre mecânicas, narrativas e outros elementos fundamentais para a evolução dessa arte.

E poucas pessoas no planeta tiveram tanta chance de interagir com esse lado da indústria quanto Chris Charla, diretor do programa ID@Xbox, focado em ajudar e colaborar com desenvolvedores independentes por todo o mundo a criar os games que tanto querem fazer.

Após quase uma década e US$ 2,5 bilhões em royalties para os indies, Charla conversou com The Enemy sobre as origens do projeto, o histórico de Xbox com games independentes, os sucessos e histórias curiosas que surgiram ao chefiar esse projeto — incluindo até contos surpreendentes de devs brasileiros.

Confira abaixo:

The Enemy: Como surgiu o conceito do ID@Xbox? Isso já faz quase uma década, certo?

ID@Xbox
Xbox/Divulgação

Chris Charla: Sim, nove anos atrás! No Xbox 360, nós tínhamos o Xbox Live Arcade, e tantos jogos indie tiveram sua estreia por lá, e foi o pioneiro na distribuição digital para consoles. Era incrível, mas não tínhamos um jeito muito bom para os indies se auto-distribuírem no Xbox — na verdade não havia jeito nenhuma para os indies se auto-distribuírem — e quando esse movimento independente surgiu, lá atrás em 2007 ou 2008, ele cresceu e progrediu rapidamente.

E os desenvolvedores indie superaram a habilidade da Microsoft em ajudá-los na era do 360. Por isso, ao nos prepararmos para lançar o Xbox One, muitos de nós na companhia nos juntamos e [pensamos]: "Bom, como consertamos as coisas com os indies? Porque estamos recebendo reclamações."

Por isso partimos e falamos com mais de 50 desenvolvedores — na época parecia muito, mas hoje em dia eu penso "só 50?" — para entender o que eles gostariam de um programa de distribuição.

A realidade da situação é que devs queriam se auto-publicar, e queriam que isso fosse fácil. E nós sabíamos que se tornássemos a distribuição fácil para desenvolvedores de games, ganharíamos uma variedade incrível de conteúdo por parte dos indies e de seu cenário.

Também tínhamos a sensação, que acabou se tornando realidade, de que jogos indies seriam extremamente importantes. Isso não era apenas uma onda ou tendência, com alguns poucos chamando atenção e depois sumindo — isso seria uma forma nova de fazer jogos, de curtir jogos, e mudaria a fábrica da indústria de games.

Braid

Por causa de tudo isso, criamos um programa que tinha apenas o objetivo de facilitar para desenvolvedores quando distribuíssem seus jogos. E isso envolveu muito trabalho de um grande número de pessoas na nossa equipe para isso.

Geralmente começávamos com, se um desenvolvedor queria fazer alguma coisa, dizendo "Parece ótimo" e daí, internamente, descobrir como fazer isso no por trás das cenas. Foi uma quantidade enorme de trabalho no começo, e depois substituímos sistemas com automação, mas nosso objetivo sempre foi deixar as coisas fáceis para os desenvolvedores — e ainda é nosso objetivo com o programa.

The Enemy: Que tipos de desafios surgiram durante a implementação do programa?

Chris Charla: Muito foi no por trás das cenas do sistema de distribuição — como nossas ferramentas e sistemas foram arquitetados, e confirmando se isso funcionava para os desenvolvedores...

E, em alguns casos, sendo o lançamento de um novo console, algumas coisas não estavam prontas, por isso fazíamos as coisas manualmente para os desenvolvedores até ter uma ferramenta automatizada para isso.

Aprendemos que nossa documentação poderia ser melhorada, por isso criamos uma página especial para desenvolvedores independentes dizendo: "Ei, se essa é sua primeira vez no Xbox, leia isto antes, daí faça isso, daí faça aquilo..."

E a documentação era bem escrita, mas ela aparecia em lugares diferentes, daí para um desenvolvedor novo... não seria exatamente óbvio para onde ir. Por isso tentamos fazer coisas do tipo para tornar nem que fosse um pouquinho mais fácil para começar.

E esses esforços renderam muito! Trabalhamos com uma equipe fantástica que trabalha com nossos parceiros todos os dias, tentando garantir que a parte de negócios seja bem tranquila, e o processo técnico também.

A outra coisa importante era garantir que o público soubesse desses games excelentes, o que era a parte divertida — colocar esses jogos no palco da E3, ou em eventos diferentes e fazer com que o mundo saiba sobre eles...

Isso era, de certa forma, o doce, a recompensa por todo o trabalho duro que fizemos para levar esses jogos para a plataformas, daí podemos celebrar com os jogadores.

The Enemy: Como foram as conversas com a chefia para estabelecer tudo isso? Foi simples ou complicado?

Chris Charla: *Rindo* Eu estou sorrindo porque...

O que geralmente acontecia era muito trabalho técnico, e quando eu mesmo e Angela Hession, que é a cofundadora do ID@Xbox íamos para reuniões — a Angela com bastante confiança, eu um pouco mais assustado — víamos essas pessoas cansadas, trabalhando para lançar esse console (isso em 2012 ou 2013) e eles falavam (grave) "O que vocês querem?"

E nós respondíamos com "Bom, somos do programa ID@Xbox e..."

E imediatamente eles falavam (animado) "Ah, os indies! Do que vocês precisam?" e era incrível! Porque todos — não todos — a maioria das pessoas que trabalham em Xbox são fãs de jogos, amam videogames.

Por isso, ao entrar e dizer "Estamos fazendo esse novo programa para indies" eles respondiam "Ah, tipo a The Behemoth?" e daí começavam a citar jogos, e falar dos seus jogos favoritos. E quando você perguntava sobre alguma ferramenta técnica, eles apoiavam com um "Com certeza!"

Castle Crashers
The Behemoth/Divulgação

Talvez isso torne a história um tanto entediante, mas o suporte que recebemos internamente foi excelente, porque as pessoas estavam animadas, como fãs, pelo conteúdo. Por isso a ideia de que eles poderiam apoiar isso via ferramentas técnicas foi muito fácil.

Era muito fácil entrar em uma sala e dizer "Queremos fazer isso para os indies" e respondiam com "Parece ótimo! Que tal se também fizermos isso e aquilo!"

Então é, o programa teve uma apoio sensacional na Microsoft desde o primeiro dia.

The Enemy: Como é o processo de seleção e curadoria do ID@Xbox — especialmente em um nível global?

Chris Charla: O processo, desde o início, é um processo global. Só há um lugar para aplicar e se juntar ao programa, nosso time é global...

Mas algo que tentamos fazer — e ainda temos muito a fazer — é tentar garantir que desenvolvedores de todo o mundo possam participar de forma igualitária. Por isso o Phil [Spencer] já foi ao Brasil, e enviamos pessoas a eventos diferentes no Brasil para falar com eles sobre o que é o programa, como se inscrever, ter seus jogos mostrados... e ficamos muito felizes em ter títulos de desenvolvedores brasileiros.

Ainda há muito trabalho a fazer, mas vemos Xbox como uma marca global. As pessoas jogam Xbox ao redor do mundo. E talento é universal, por isso a habilidade de oferecer a um produtor brasileiro um público global, podendo vender seu jogo para pessoas nos EUA, Europa ou Índia, em qualquer lugar do mundo, e isso é muito importante. [Mas] ainda há muito trabalho a fazer.

Nossos materiais de desenvolvimento só estão em inglês, então é preciso trabalhar para localizar em português e coisas do tipo — são todas coisas em que estamos trabalhando, e vamos chegar lá.

Reverie Knights Tactics

É engraçado, as pessoas às vezes perguntam "como estão as coisas depois de 9 anos?", e por um lado está ótimo: pagamos aos desenvolvedores mais de US$ 2,5 bilhões em royalties, ajudamos mais de 3 mil jogos a serem lançados, há 4 mil produtores no programa...

Mas por outro lado, eu olho e penso "por que não está em português?", sabe? *Ri* Então há muito espaço para crescer, e ser o programa verdadeiramente global que queremos que seja.

Por isso, por um lado estou muito feliz e orgulhoso por todo o trabalho que a equipe faz. Por outro, eu olho para a lista do que há para se fazer e só penso "há tanto que precisamos fazer", e isso é divertido, é o que faz as coisas divertidas ao ir para o trabalho: ajudar os devs e ver os jogos legais que vem por aí.

The Enemy: E o que vem por aí em termos de novidades para o programa?

Chris Charla: Eu posso falar sobre algumas coisas, e não posso falar sobre outras. A maior parte delas não é o tipo de coisa que salta aos olhos. É o tipo de coisa como: "Ah, como fazemos essa submissão ter um tempo de resposta de 5 horas, ao invés de 14 horas?"

Isso não parece muito, mas quando você está desesperado pra cumprir uma data de lançamento no último minuto, seis ou sete horas a menos pode ser muito importante.

E se pudermos reduzir um ou dois dias aqui, se pudermos simplificar um processo que leva 10 trocas de e-mail para só um e-mail... isso dá mais tempo para o desenvolvedor se dedicar ao jogo.

Então não são coisas grandes, são coisas menores. Mas um exemplo de algo maior é algo que lançamos na Game Developers Conference deste ano, que é o ID@Azure. Basicamente, temos uma série de soluções via cloud gaming por meio do Microsoft Azure — incluindo Playfab e outras coisas — e estudamos o que desenvolvedores estavam fazendo e nos perguntando, e entendemos que tínhamos a oportunidade de ajudar a prover o mesmo ecossistema que criamos para o ID@Xbox para desenvolvedores que queiram usar o Azure.

Criamos esse programa para desenvolvedores independentes, de start-ups de todas as formas e tamanhos entrar e aprender sobre cloud gaming, trabalhar com cloud gaming por meio de milhares de dólares em crédito para uso da nuvem para preparar o jogo sem precisar gastar muito dinheiro...

E este é o exemplo de um programa que surgiu unicamente por meio de feedback que recebemos dos desenvolvedores — e é um programa da Microsoft, mas não está limitado a Xbox, então devs de PlayStation, Switch, PC, iOS, Android... todos eles podem usar o ID@Azure.

The Enemy: Falando em PlayStation e Nintendo, você acha que o ID@Xbox teve algum impacto nessas companhias, mesmo sendo tecnicamente rivais da Microsoft?

Tunic

Chris Charla: Vou te dar um exemplo: nós anunciamos crossplay já faz alguns anos (nem lembro mais quando foi, a este ponto), e isso permitia você, como desenvolvedor, fazer seus jogadores de Xbox poder jogar com seus jogadores de Nintendo, de PlayStation e de PC. E isso surgiu de feedback de devs independentes, que nos falaram "Olha, precisamos de um público para esse jogo multiplayer. Por que não podemos fazer isso?"

E era uma pergunta justa, por isso trabalhamos com alguns desenvolvedores, pensamos como fazer isso, e acabamos mudando nossa política para que jogadores pudessem jogar com seus amigos de PlayStation e Nintendo.

Acho que, quando você olha não só para o que ID@Xbox está fazendo, como com Xbox em geral, tentamos fazer as coisas da perspectiva do jogador em primeiro lugar, pensando no que é melhor para eles e sabendo que, ao fazer isso, eles vão curtir jogar no Xbox, e isso via fazer com que os desenvolvedores queiram criar para Xbox.

Xbox Game Pass Ultimate

The Enemy: De que forma o Xbox Game Pass afetou a iniciativa?

Chris Charla: Tem sido uma excelente forma de mostrar seus jogos para milhões e milhões de pessoas.

Nós anunciamos que todos os nossos first-party chegariam ao Game Pass no lançamento, e na mesma época também falamos que desenvolvedores independentes e third-parties também teriam lançamentos no Game Pass. E tem sido um enorme sucesso.

Obviamente há uma relação de negócios aqui, e os desenvolvedores se beneficiam dela, mas a outra coisa que eles ganham é visibilidade: há muitas e muitas pessoas jogando o jogo no Xbox, fazendo streaming, falando sobre ele...

E isso ajuda com a visibilidade não só da versão de Xbox ou da Windows Store, como a de Steam, e de Switch, e de PlayStation — e parece ter encontrado muito sucesso.

Muitas pessoas podem arriscar uma vez, mas quando os desenvolvedores voltam e dizem "Ok, vamos de novo. Vamos colocar um segundo jogo no Game Pass". E depois um terceiro. Quarto. Quinto. Para a gente isso é evidência de que está funcionando para eles — sabemos que está funcionando para jogadores, por ser um excelente valor.

E porque os desenvolvedores estão nos perguntando e estão animados para participar várias vezes, é uma boa validação externa de que está funcionando para eles.

The Enemy: Lembra de algum triunfo em particular do ID@Xbox em todos esses anos?

Chris Charla: *Ri* Sim, o primeiro jogo sendo lançado foi um grande triunfo.

Honestamente, às vezes eu recebo e-mails de um desenvolvedor que está lançado seu primeiro jogo em um console, e está fazendo isso via ID@Xbox. Como um ex-desenvolvedor de jogos, eu sei o quão difícil é fazer um jogo.

Quando eu era um desenvolvedor, nós lutávamos para arranjar um kit de desenvolvimento. Fazíamos jogos de Game Boy e falávamos "nós podemos fazer um jogo para consoles, só precisamos de um devkit!" e era doloroso ouvir as pessoas dizer não para você.

E agora, fazer parte de um programa em que nosso trabalho é dizer sim, e mandar um kit de desenvolvimento para as pessoas sem custo adicional, daí receber um e-mail dizendo: "Isso significa tanto para mim, eu sempre quis fazer um jogo de Xbox" e "Agora minha mãe pode baixar esse jogo."

Para mim isso — independente de vendas, e tudo mais — esses são os e-mails que realmente me afetam. Eu gosto de ver os relatórios de vendas, e eles são incríveis, e adoro aprovar os royalties e ver o quanto de dinheiro os devs estão ganhando, porque é esse sucesso financeiro que permite que eles façam a arte que eles amam.

Mas ouvir de um desenvolvedor iniciante que começou em Xbox é a melhor coisa.

The Enemy: Do outro lado, há alguma memória particularmente ruim, ou algo que vocês poderiam ter feito melhor, nesse período?

Chris Charla: *Rindo* Com certeza!

Estou rindo porque tivemos muito sucesso, o que é ótimo, mas das 8 horas em que estamos trabalhando, não passamos um minuto conversando sobre os sucessos. Passamos essas horas falando "Qual é a próxima? Como podemos melhorar?" e coisas do tipo.

Já falei como gostaria que todos os nossos materiais de desenvolvimento e comunicações de negócios estivessem em português, e todas as outras línguas — essas coisas que poderíamos melhorar é no que pensamos o tempo todo.

É divertido fazer essas entrevistas porque você pode fazer uma pausa e pensar nos sucessos e bilhões de dólares que os devs ganharam e tudo mais, mas no dia a dia o que geralmente pensamos é no que é preciso fazer melhor.

The Enemy: Tendo uma perspectiva privilegiada, o que você espera do futuro para o cenário de jogos indie?

Chris Charla: Acho que algo incrível sobre jogos indie é que eles continuam a nos surpreender.

E a cada vez que você acha que viu todas as surpresas possíveis, uma nova aparece. E o futuro do ID@Xbox é ver mais delas surgirem.

Eu sei que tem um jogo de um estúdio brasileiro chamado Aspire: Ina's Tale, um ótimo sidescroller. Os desenvolvedores encontraram um poeta de 70 anos em um café o incluíram na equipe.

E agora temos um homem de 70 anos, um poeta, trabalhando no seu primeiro jogo. Essas são as histórias surpreendentes que continuam surgindo com estúdios indie.

Seja com um Cuphead ou RPG Time: The Legend of Wright, que é um jogo que acabou de sair do Japão e tem uma perspectiva aérea focada em um aluno da terceira série desenhando um RPG no seu caderno, e ganhando vida — isso é o tipo de coisa que você não consegue imaginar, e que torna o trabalho tão sensacional: nosso time trabalha para ajudar esses criadores, e podemos ver os frutos disso com jogos incríveis que nunca veríamos [do contrário].

E vê-los fazer parte de Xbox é um sentimento fantástico.