Ao bater os olhos em Bright Memory, é difícil não se impressionar. Parte da leva de títulos que figuraram na apresentação Inside Xbox focada em títulos do Xbox Series X, o jogo de tiro em primeira pessoa (da expressão em inglês first person shooter, ou FPS), devidamente localizado para o português, mescla ideias de Bulletstorm e Shadow Warrior com uma pitada de futurismo para criar algo, pra dizer o mínimo, de cair o queixo.

Além de rodar em 4K, Bright Memory faz uso de Ray Tracing, tecnologia que começa a ganhar força atualmente em jogos de PC e será nativa tanto no PlayStation 5 quanto no Xbox Series X. Com cerca de 200 mil cópias vendidas desde o lançamento em março, Bright Memory se destaca pelo visual, fluidez nos combates, inventividade na trama e, acima de tudo, pelo fato de ter sido criado por uma única pessoa — que sequer sabe programar.

Do ensino médio em 2011 a desenvolvedor de um dos maiores sucessos no Steam em 2020, a trajetória meteórica do chinês Xiancheng Zeng aconteceu por acaso e sem planejamento algum.

Autodidata, se interessou por design gráfico ainda moleque. Aluno meia-boca no colégio, seu passatempo predileto era fuçar na Unreal, o motor-gráfico da Epic Games responsável por inúmeras das atuais produções multimilionárias - entre elas, Final Fantasy VII Remake e Gears 5.

Xiancheng Zeng

Xiancheng Zeng

Arquivo pessoal

Assim que terminou o colégio, resolveu estudar animação 2D até que, por absoluta paixão, conseguiu vaga num curso técnico em 3D. No período de três anos em que durou a formação, Zeng investiu o tempo livre depois do trabalho para criar seu primeiro jogo-teste: WarStorm. Um FPS lançado gratuitamente com clara inspiração em Call of Duty, outra de suas paixões.

"Sou fã de Call of Duty e do gênero FPS, mas eles são meio difíceis de serem encontrados na China, então resolvi criar o meu próprio (jogo)", explica em conversa com o The Enemy. "Quando me formei aos 18 anos, um conhecido me indicou para uma vaga em um estúdio chinês de jogos. Embora tenha me dado certa experiência, a metodologia da empresa era totalmente diferente do desenvolvimento de jogos independentes. Ali eu era parte de uma equipe. Um ano depois eu fui para a [desenvolvedora] Seasun, onde pude aprender mais sobre a Unreal".

E à medida que se aprofundava no uso da ferramenta, Zeng resolveu desenterrar uma ideia que havia tido anos antes. "Ainda no colégio, durante uma conversa despretensiosa com meus amigos, comentei sobre como seria transportar uma pessoa de uma realidade extremamente futurista para mil anos no passado, mantendo todo o conhecimento tecnológico numa era praticamente medieval", explica. "Eles adoraram e isso serviu de estímulo para eu tentar algo."

Sem programar?

É bem claro que o foco do sujeito sempre foi na área visual. Programação nunca foi a praia dele, e continua não sendo. Aí fica a dúvida: como ele fez o jogo sem escrever uma linha de código sequer?

A solução está na própria Unreal. Segundo Zeng nos explica, há uma espécie de atalho na ferramenta chamada Blueprints. De forma básica, essa função oferece parâmetros pré-determinados para algumas funções do processo. "Os Blueprints permitem criar a lógica do jogo sem que o desenvolvedor conheça programação. Você só precisa saber o básico, como variáveis ​​de ponto flutuante, variáveis ​​booleanas, vetores etc.", descreve o desenvolvedor. O termo booleano remete ao inglês George Boole, cujo livro The Mathematical Analysis of Logic, de 1847, introduziu o conceito de lógica.

"Basicamente, os Blueprints oferecem um painel visual. Se você deseja implementar lógica para disparar armas, por exemplo, a ferramenta te dá uma chave com essa função, assim como para efeitos dos tiros, danos e assim por diante, até você ter um pacote completo da arma. Se isso precisasse ser feito por programação levaria um tempo enorme e exigiria uma quantidade imensa de código", explica o artista.

Bright Memory
Divulgação

De pouco em pouco, mesmo que sem pretensões, ele passou a mostrar o projeto às pessoas. Um vídeo aqui, um teste ali. "Todas as melhorias que fiz foram com base na opinião dos jogadores. A cada novo material que eu divulgava, o pessoal tinha uma reação que eu filtrava e usava para avançar no desenvolvimento", conta. O processo era tão mequetrefe que ele se envolveu numa treta num dado momento.

Nas frequentes pesquisas online que fazia, Zeng caiu num site de assets (arquivos diversos, como texturas, itens de cenário etc) que não deixava claro nem a origem, nem os detentores dos direitos autorais. Bem, como já deve imaginar, é óbvio que o material tinha dono. "Quando criei a primeira demo de Bright Memory, baixei vários arquivos de um site que não mencionava se poderiam ser usados ​​comercialmente. Eu entendi mal e pensei que eles estavam disponíveis gratuitamente. Então, fui contactado pelos detentores dos direitos autorais originais. Removi esses modelos infratores imediatamente e resolvi o mal-entendido com eles." 

Bright Memory Infinite
Divulgação

Com o problema resolvido, o projeto, que havia começado em 2015, enfim estava quase pronto. Em 2019, Bright Memory ganha uma versão de acesso antecipado no Steam. Até aquele momento, Zeng planejava um jogo em episódios. A perspectiva de venda, segundo ele, era quase nula, por isso o que pintasse de dinheiro seria não apenas bem-vindo, mas revertido no que restava da produção. "Na semana do acesso antecipado eu praticamente não dormi, tamanha ansiedade. Estava morrendo de medo de análises negativas", confessa. 

O artista prometeu a si mesmo que, se conseguisse vender 50 mil cópias, largaria o emprego para se dedicar integralmente ao jogo. Vendeu 200 mil. "Estou muito feliz com a popularidade de Bright Memory, mas não iludido com as críticas positivas. Tenho trabalhado para melhorar a qualidade geral do jogo", pondera.

Bright Memory Infinite
Divulgação

Nova geração de consoles

Da ideia inicial de episódios, Zeng resolveu mudar o foco e lançar um jogo completo ainda em 2020. E não se preocupe se você comprou a "primeira parte do jogo". Ele diz que o agora chamado Bright Memory: Infinite será disponibilizado sem custos extras a quem pagou pela atual versão. Além disso, a produção tem planos de chegar aos consoles de nova geração, previstos para o final do ano.

O mais impressionante é que tudo permanece sendo feito somente por ele. "Terceirizei alguns dos modelos em 3D, mas todo o restante continua sendo feito só por mim. Embora (a distribuidora Playism) não tenha divulgado uma data precisa, a ideia é concluir tudo até dezembro. Estou concentrado na versão de PC, mas a portabilidade para os consoles anda em paralelo", completa.