Os jogos de tabuleiro vivem um ótimo momento no Brasil, com mais títulos sendo publicados e uma comunidade crescente. Eric M. Lang, um dos mais conhecidos criadores de jogos analógicos da atualidade, vê o mercado brasileiro de jogos de tabuleiro cada vez mais próximo do mainstream.

Fã da Blizzard, de Dungeons & Dragons, de Magic: The Gathering e de brigadeiro, o criador de premiados jogos como Blood Rage visitou o Brasil para o evento Diversão Offline, realizado em São Paulo no último fim de semana.

Por lá, o canadense, que também já trabalhou com títulos licenciados de Game of ThronesStar WarsO Poderoso Chefão (cujo jogo chegou ao Brasil recentemente pela Galápagos Jogos) conversou com o The Enemy sobre seu processo criativo, sua paixão pelos jogos de tabuleiro e, claro, sobre o Brasil. Veja a entrevista abaixo.

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Como você se apaixonou por jogos de tabuleiro e como você começou a trabalhar com eles?

Comecei a jogar desde que sou criança. Fui criado em grande parte por minha avó, na Alemanha, então eu a visitava todo ano desde que eu tinha uns seis anos de idade. Costumávamos jogar jogos de tabuleiro o tempo todo, alguns jogos de tabuleiro populares na Alemanha, mas bem ruins.

Tem um jogo que eu costumo lembrar muito vividamente, que se chama Mensch Ärgere Dich Nicht ("não fique tão chateado", em tradução livre). É um jogo bem ruim. É tipo Parchís, só que pior. Nunca acabava, é interminavelmente frustrante, e com isso eu decidi mudá-lo um pouco. Desde pequeno, eu gostava de fazer modificações nos jogos que eu jogava - coisas do naipe de "aqui devia ter dinossauros ou robôs".

Eu joguei muita coisa. O primeiro jogo pelo qual me apaixonei foi Stratego (lançado no Brasil como Combate). Fiquei perplexo... a informação assimétrica, do oponente não saber quais são as minhas peças? Isso é incrível! Basicamente, aprendi tudo sobre dedução com aquele jogo. Ele é psicológico, cheio de drama... eu joguei esse jogo com praticamente todo mundo que eu consigo imaginar. Eu não sabia na época, mas eu tinha amigos o suficiente pra ter jogadores o suficiente, então foi uma introdução ótima (aos jogos de tabuleiro).

Depois disso, decidi que queria trabalhar com aquilo e comecei a fazer vários jogos - todos bobinhos, não funcionavam direito. Eu era jovem, gostava de esportes, então inventava esportes para jogar. Estava sempre fazendo coisas para meus amigos. Eu não consigo dizer um dia em que acordei pensando "ah, vou fazer jogos!", porque foi algo que considero ter feito por toda a minha vida.

Eric M. Lang

Lang visitou o Brasil para o evento Diversão Offline, realizado em São Paulo

Galápagos Jogos/Divulgação

E como você comeceu a produzir jogos profissionalmente?

Bem, vou seguir a definição literal de "profissionalmente", na qual eu fui pago para fazer um jogo. A primeira vez foi em 1995 ou 1996, quando fiz o desenvolvimento de um jogo de cartas colecionável de Shadowrun. Minha função era testar o jogo, mas era tão intenso... eu os conheci em um aplicativo de mensagens, por pura sorte.

Eu gosto de jogos de carta desde que Magic saiu, gostava muito, demais. Eu produzi seis ou sete jogos por conta própria, nenhum bom o suficiente para ser publicado, mas gostava muito. Quando surgiu Shadowrun, eu me agarrei à oportunidade, e dei páginas e páginas de anotações e sugestões. E o designer daquele jogo não era exatamente um designer, era um artista. Ou seja, ele estava sobrecarregado de trabalho. Daí, eu falei que poderia ajudá-lo com qualquer coisa. E com isso, ganhou um crédito como desenvolvedor - e fui pago. Depois dessa experiência, tive a certeza de que poderia seguir carreira.

E você seguiu uma carreira bem prolífica.

Bem... Foi difícil no começo, mas foi o primeiro trabaho como desenvolvedor.

Você joga jogos de carta desde Magic. Você diria que esta é sua maior inspiração?

Tenho três grandes inspiração. A primeira é Dungeons & Dragons. Joguei a segunda edição. Lembro da primeira vez que joguei, um amigo me trouxe para a casa dele, e falou para testarmos este jogo. Fizemos a sessão mais tradicional possível: "vocês estão em um bar, um cara suspeito entra. O que vocês fazem?". Eu perguntei: "quais são as minhas opções?", e o mestre respondeu: "O que você quiser". Eu retruquei: "Qualquer coisa? Posso sair do bar, pular do pier direto no oceano?". E ele disse que sim. Eu pulei e meu personagem morreu, mas eu fiquei totalmente perplexo. Foi uma experiência incrível. Isso me tornou um jogador.

Magic me tornou um desenvolvedor de jogos. Jogo desde o dia em que saiu, ele me deixou boiquiaberto, da melhor maneira que um jogo pode deixar. Magic mudou os jogos para sempre. E com apenas um mês comecei a fazer meus próprios jogos de cartas.

A outra inspiração são MMORPGs. Eu diria World of Warcraft, mas começou de verdade com Ultima Online. Foi o primeiro jogo MMO gráfico que quis fazer, e me deu vontade de desenvolver video games com mundos enormes, épicos. Mas a razão pela qual digo WoW, é porque a Blizzard meio que corre nas minhas veias. O jeito como eles constroem seus jogos, a paixão que eles tem, o senso de humor, e como eles sabem criar mundos, e como eles colocam a própria personalidade, são polidos e acessíveis. Apesar de Ultima Online me abrir para o mundo dos video games, foi WoW que me fez pensar que isso pode ser acessível para todos.

Já que estamos nesse assunto de jogos digitais e analógicos, quais diferenças você apontaria no processo de fazer cada um desses tipos de jogo?

Bem... tudo. Jogos são jogos. Diversão é diversão. Isso não muda. Mas no fim das contas, um jogo digital, a não ser que você esteja jogando títulos com multiplayer local forte, como um Mario Party ou um Smash Bros, video games são experiências tecnicamente solitárias. Mesmo jogando com outras pessoas, você está interagindo primariamente com uma máquina de Turing com o nome do seu amigo. O que é legal, mas a experiência é mais "completa", com som, luz, cores, gráficos. É um consumo de entretenimento mais passivo.

Jogos de tabuleiro são o oposto. Eles não são completos. Nós fazemos 50% deles, e os outros 50% vem de quem joga. Você produz uma caixa de ferramentas para os jogadores entreterem a si mesmos e uns aos outros. Para mim, é mais arriscado produzir um jogo de tabuleiro de sucesso do que um video game de sucesso, porque o processo de testes é totalmente diferente. É como dia e noite. No videogame, você tem mineração de dados perfeita, pode fazer testes A-B o momento que quiser. Você pode criar patches para corrigir o que está errado. Nos jogos de tabuleiro, dá para fazer isso também, mas o processo é muito mais longo. Você depende muito mais de psicologia e observação na hora de fazer jogos de tabuleiro.

No fim das contas, ambos são incríveis, mas os jogos analógicos são minha casa.

Sua carreira conta com muitos trabalhos em obras originais, mas também tem muitos títulos licenciados. Quais são as diferenças entre fazer esses dois tipos de jogo, e os desafios?

Fazer sua própria obra é arriscado. É quase como escrever um livro. Você compartilha parte de si com o mundo. Você não pode esconder nada, e está contando uma história por meio de gameplay para todo mundo. É incrível, você tem reconhecimento, mas isso é arriscado. Tento trabalhar o mínimo possível com jogos originais, porque quando os faço, sempre dou tudo de mim.

Os jogos licenciados são difíceis, porque são mais técnicos, mas você pode canalizar o seu lado fã na hora de produzí-los. Para mim, um jogo licenciado é mais linear. Consigo ver todos os passos, do começo ao fim. Já um jogo original, é mais livre. E é algo que depende muito mais de um processo de tentativa e erro.

Você já veio ao Brasil várias vezes, e deve ter visto nos últimos anos um movimento crescente de jogos analógicos.

É um mercado mais maduro, sim.

Mas como você vê o crescimento do mercado, e onde ele pode chegar?

Minha experiência com o mercado brasileiro é parecida com a do italiano. Vocês são muito apaixonados e gostam de jogos profundamente. Eu nunca vi isso em lugar nenhum a não ser a Itália. Acho que, agora, por causa da economia brasileira, o preço é uma questão muito mais importante.

Produzir especificamente para o Brasil pode ser mais desafiador, o que gosto, mas acho que a proximidade dos jogos de tabuleiro com o mainstream estão em um cenário similar ao dos Estados Unidos nos anos 1980, no qual as pessoas só jogavam os jogos muito tradicionais, como Monopoly, e elas nem gostavam tanto assim. Os jogos de tabuleiro ainda são vistos como um hobby complicado.

Então, sinto-me um pouco nostálgico ao vir aqui e ver este mesmo cenário. Mas essa divisão está diminuindo em uma velocidade muito maior do que nos EUA. Aqui há mais crossovers entre jogos de tabuleiro com o mainstream, parcialmente porque nossos jogos são muito melhores hoje em dia. Acho que há uma grande oportunidade aqui para surgir aquele jogo que vira a porta de entrada, e muda tudo, como Colonizadores de Catan foi para a Alemanha.

Não acho que um jogo como Catan vai ser o responsável pela abertura do mercado aqui no Brasil, vai ser algo diferente. Eu noto que brasileiros gostam muito de jogos em que há "schadenfreude" (o prazer de ver outras pessoas sofrerem). O brasileiro ama jogos que deem a oportunidade de reencenar seu amor pelo esporte. Acho que é algo que pode acontecer por aqui.

Como vocês estão no mesmo ponto em que os EUA estavam nos anos 1980, não sei se vocês continuar no caminho do mercado americano ou trilharão algo completamente diferente. Não sei. E isso é incrível.

Como você acredita que será o futuro dos jogos de tabuleiro, nos próximos cinco ou dez anos?

Olha... Se você me perguntasse isso há cinco anos, eu teria uma resposta bem detalhada. Agora, eu não sei. Não faço a menor ideia. Jogos sociais e tablueiros não vão mudar. O desejo de interagir, cara-a-cara, regras, turnos, condições de vitória... acho que isso não vai mudar. Acho que parte significativa do mercado vai ficar distraída com realidade virtual ou aumentada, mas deve virar um nicho.

Também acho que a integração digital, com aplicativos, vai ser nicho também. Não deve ser algo que vai tomar tudo. Mas o que acho que vai acontecer é que teremos pequenos avanços - nada do porte de Magic, que mudou completamente o jeito como jogamos. Os jogos estão mais codificados do que antes. Acho que o espaço para mudanças em larga escala é menor, e com isso o nível de qualidade vai aumentar.
Provavelmente teremos uma contração do mercado. Atualmente, ele cresce de 15 a 20% por ano. O número de jogos aumentou 100%. Publicamos 3500 jogos em 2017. Isso é insano. O mercado não vai dar conta de suprir isso tudo. O número de jogos publicados vai diminuir, porque as editoras vão se consolidar ou fechar. Mas isso não é uma bolha. A demanda não é artificial, e com isso os jogos ficarão cada vez mais sofisticados. Mas eu não tenho certeza, e por isso estou bem empolgado.

Como desenvolvedor, há muito espaço para surgir algo novo - e quero fazer parte disso.