Um feitiço gerado pelas lágrimas de uma garotinha transformar seus pais em bonecos dá uma baita ideia de filme ruim da sessão da tarde, e pode causar a impressão de que It Takes Two é mais um game esquecível tentando ganhar espaço na baixa temporada de lançamentos. Mas essa impressão não poderia estar mais errada. 

O novo game de Josef Fares, o diretor de Brothers e A Way Out, insiste trazer de novo a ideia de dupla de personagens para oferecer não apenas uma das experiências cooperativas mais divertidas já criadas em um videogame, mas também um dos projetos mais ambiciosos em variedade de mecânicas e design de levels que a indústria de já viu — mesmo com uma narrativa que não é tão excepcional quanto a jogabilidade.

MECÂNICAS E LEVEL DESIGN

It Takes Two é essencialmente um jogo de plataforma, mas também é longe de ser só isso. Além da questão do co-op, seu diferencial está em como o gênero, as mecânicas e os ambientes estão em constante mudança. Em um único capítulo você e seu parceiro podem, literalmente, experimentar mais de uma dúzia de mecânicas diferentes. O game vira um shooter, um jogo de avião, de navio, de luta, hack’n slash, um rpg isométrico e mais uma série de coisas que não poderiam ser encaixadas em um gênero.

Mais interessante que isso, é ver que os desenvolvedores usaram uma filosofia de level design bem parecida com Donkey Kong Country: Tropical Freeze. O tema do local é quem dá a nota de como serão os obstáculos. Na primeira área em que o mote é aspirador, por exemplo, tem canos de aspirador, plataformas de roomba, ventoinhas que sopram e vários elementos que não se limitam a um único formato, mas exploram de um jeito criativo a ideia do momento.

Inventividade e qualidade também estão presentes nos chefes e subchefes de cada capítulo. Nem sempre você irá enfrentar alguma criatura com vida, algumas vezes o “chefe” da área será uma fuga ou um elemento que você precisa superar combinando, claramente, as mecânicas que protagonizaram aquela seção.

Já falando em influências, o legado da Nintendo é mais que evidente em It Takes Two — mesmo que, ironicamente, o jogo não tenha uma versão para Switch. Em vários momentos é possível ver Donkey Kong, Splatoon, Zelda, Mario e outras grandes franquias da empresa sendo homenageadas em mapas que lembram as miniaturas gigantes de Querida, Encolhi as Crianças.

EXPLORAÇÃO

It Takes Two sabe balancear os seus capítulos para não causar uma experiência maçante ou repetitiva. O jogo tem mapas abertos enormes, perfeitos para uma extensa exploração que pode te ocupar por horas, mas também acerta nas fases mais lineares que te colocam no eixo certo da narrativa. 

E, sim, existem MUITOS easter-eggs em It Takes Two. Mesmo nos mapas menores, você vai precisar olhar em todos os cantos para encontrar referências a outros jogos de Josef Fare, filmes e também de outras franquias famosas que não vou citar para não dar spoilers. E se os mapas pequenos já são um show de referências, as áreas abertas são um paraíso para os jogadores curiosos, mesmo que nem tudo renda alguma conquista.

Esse alto grau de interatividade rende outro ponto muito divertido do gameplay: você pode inúmeras vezes sacanear o seu companheiro de jogo. Seja nas mecânicas, quando você simplesmente pode desativar uma plataforma e fazer o seu amigo cair; seja nas interações de cenário, em que você pode ativar um liquidificador e triturar seu amigo “na esportiva”, por exemplo.

Tela de mini games pode ser acessada no menu principal do jogo

E essa “inimizade” pode ficar ainda mais divertida com os mini games espalhados pelos mapas. Cada atividade coloca Cody e May frente a frente em uma competição diferente, de tiro ao alvo a corridas e competições rítmicas. Você ainda pode acessar esses minigames no menu do jogo, que também traz um placar dos resultados, o que faz It Takes Two virar um grande party game depois de ser zerado. E precisamos mencionar aqui o placar oficial da run do The Enemy, já que o Dias ganhou só 6 dos 25 minigames do jogo.

MULTIPLAYER

Não existe um número limitado de vidas ou grandes penalidades para mortes em It Takes Two. Você morre e renasce em poucos segundos. Bom, exceto nos momentos em que os dois morrem ao mesmo tempo, aí é preciso voltar ao checkpoint. 

Enquanto o jogo não é punitivo nesse aspecto e os inimigos e obstáculos não são muito difíceis, o desafio está em justamente realizar tudo em sincronia com seu parceiro. Abrir portas, levantar plataformas, preparar passagens… Tudo pede boa comunicação e sinergia para executar a ação no timing certo. É também por isso que a tela é sempre dividida, seja no multiplayer local ou no online. Em alguns momentos é indispensável ver o que seu amigo está fazendo do outro lado para que você consiga ajudar ele. Lembrando que o jogo não tem campanha single-player.

Vale mencionar que o game não tem um matchmaking para o online, então você precisa convidar alguém específico. E com o Passe de Amigo, apenas um jogador precisa comprar o jogo e mandar o convite para seu companheiro no online. Para a comunicação por voz, que é fundamental, existe um chat de voz integrado, que começa a funcionar assim que um aceita o convite do outro. Mas, é claro, que você também pode usar o sistema de parties da PSN, Xbox Live ou mesmo outros aplicativos como o Discord.  

NARRATIVA E PERSONAGENS

Porém, se It Takes Two é impecável em jogabilidade, não dá pra dizer a mesma coisa sobre a narrativa. Fares tentou vender It Takes Two como um “game de comédia romântica” e, de fato, existem alguns momentos em que ele soa como tal, mas a trama nem sempre funciona. 

O roteiro até tenta ser Pixar, mas acaba trazendo um tom talvez um pouco bobo demais para uma história que talvez pedisse um pouco mais de humor ácido e cinismo. Cody e May são um casal que está prestes a se separar. Sua filha, Rose, pede ajuda a um “livro mágico do amor” e cria sem querer um feitiço que transforma os dois em bonecos presos em uma gincana terapêutica com o tal livro, o Dr. Hakim. Mas a relação de gato e rato dos protagonistas e a persona do livro falante rendem alguns momentos engraçados de vergonha alheia e a história não tem medo de criar algumas situações absurdas e viradas mórbidas que marcam sua passagem por It Takes Two.

Enquanto os atores dos personagens principais fazem um ótimo trabalho — especialmente a Annabelle Dowler que interpreta a Rose de um jeito impecável —, o texto nem sempre ajuda. Sem contar o Dr. Hakim que pode soar irritante em vários trechos. Vale dizer que It Takes Two tem menus e legendas em português do Brasil. Então, pra quem não fala inglês, dá pra acompanhar tudo sem problema.

ARTE E SOM

Já a direção de arte é outro ponto forte do jogo e foi extremamente competente para conseguir acompanhar a diversidade de mecânicas e cenários. Todos os cenários são muito variados, detalhados e com várias ideias bacanas de objetos da vida real se transformando em parte do mapa. Cada capítulo tem várias áreas e cada área é única e explora de um jeito único o tema central. 

Mas a arte não é só boba e infantil. Em certos capítulos podemos experimentar desde ambientes fofinhos feitos de almofadas e bichinhos até fases psicodélicas dentro de um caleidoscópio. 

Agora, quando o assunto é som, de forma geral, a música do jogo não tem nada de muito especial, apesar de ser competente e variada. Às vezes ela é mais aventuresca e às vezes ela tá super ligada ao tema da área. Tem um capítulo inteiro que é sobre música que é simplesmente incrível e é onde o design de som brilha com mecânicas e elementos do cenário conversando musicalmente entre si.

No PS5, o jogo roda a 60 quadros, 4K, tem HDR e carrega mais rápido, enquanto o PS4 também aproveita a beleza dos cenários feitos pela Hazelight. Uma oportunidade perdida, contudo, foi não oferecer recursos no DualSense. It Takes Two e todas as suas mecânicas teriam sido um prato cheio para o feedback háptico e gatilhos adaptáveis do novo controle. O jogo também poderia explorar mais a vibração dos controles, que aparece muito pouco durante a jornada de Cody e May.

DESENVOLVIMENTO

It Takes Two é o terceiro jogo do diretor Josef Fares. Enquanto o último projeto, A Way Out, já pedia constante cooperação entre dois jogadores e trazia mini games, a jogabilidade era mais engessada, cheia de quick time events. A aventura de Cody e May é uma evolução imensa em praticamente todos os aspectos.

É muito impressionante ver o que uma equipe tão enxuta conseguiu fazer com It Takes Two em apenas três anos. De acordo com Fares, o estúdio Hazelight ainda é um time pequeno com cerca de 60 desenvolvedores, mas os créditos finais mostram centenas de pessoas trabalhando em aspectos executivos e administrativos. 

Cortesia da EA, que publica e financia o jogo, mas de quem Fares fala coisas positivas, enfatizamndo que ele pôde fazer o que quis e com todo o apoio. Claramente ambos saíram ganhando. A Hazelight com um jogo completamente não convencional e autoral e a EA, que ganhou até agora seu melhor game para o portfólio EA Originals. É claro que A Way Out sendo um jogo pequeno ter vendido mais de 3 milhões e meio de unidades deve ter ajudado.

Em It Takes Two, a variedade é a regra e não a exceção. Antes de você sequer ter a chance de se cansar de alguma coisa, o game te entrega algo novo pra brincar e explorar. O jogo não quer ter uma progressão mais difícil e complicada, ele quer ser cada vez mais e mais criativo. A quantidade de mecânicas, cenários, puzzles e ideias mirabolantes contidas nessa campanha de aproximadamente 15 horas são de fazer inveja até mesmo pra Nintendo, que é dona desse legado. É uma produção tão ambiciosa quanto a de muitos jogos AAA de estúdios grandes. 

Diálogos melhores poderiam tornar a história muito mais convincente e interessante, mas existem sim momentos divertidos e que dão uma aquecida no coração na trama. Os personagens lá têm seu charme e carisma. E, convenhamos, as histórias de Super Mario não são nenhum Cidadão Kane.

  • Lançamento

    26.03.2021

  • Publicadora

    Electronic Arts

  • Desenvolvedora

    Hazelight Studio

  • Censura

    12 anos

  • Gênero

    Plataforma

  • Testado em

    PlayStation 5

  • Plataformas

    PlayStation 4 Xbox One PC

Nota do crítico