ATENÇÃO: ESTE ARTIGO CONTÉM SPOILERS DO PRIMEIRO BAYONETTA

Recentemente, Bayonetta comemorou 10 anos. O jogo de hack ‘n’ slash desenvolvido pela PlatinumGames e distribuído pela Sega havia sido lançado em outubro de 2009 no Japão, mas só chegou ao restante no mundo a partir de janeiro de 2010.

Independente da data de sua chegada definitiva ao mundo dos videogames, desde o início a personagem que dá nome ao jogo esteve imersa em polêmicas - a maioria delas envolvendo sua aparência desproporcional e, principalmente, a forma com que expressa sua sexualidade.

Em tecnicidade, o game Bayonetta não só esbanja carisma, elegância e fluidez, como ainda impacta os jogadores com a precisão dos comandos e a imensa variedade de golpes, armas e mecânicas nos combates. Todos esses elementos combinados (entre si e com comandos bem distribuídos no joystick), geram uma experiência de gameplay bastante satisfatória, e por que não dizer, prazerosa.

De maneira geral, tanto o game quanto a personagem principal instigam essa sensação de prazer. Pegue, por exemplo, os principais inimigos de Bayonetta, que são seres angelicais: eles representam a castidade, a disciplina e o controle. E a narrativa vela essas subtemáticas com a hipocrisia de um poder sumariamente patriarcal, cuja simbologia e mitologia é baseada, logicamente, no Vaticano.

Imagem oficial de Bayonetta
PlatinumGames/Reprodução

Por outro lado, Bayonetta vem como uma figura mortalmente sexualizada que está acima disso: ela é uma bruxa que controla demônios com seus cabelos, e ela é (a princípio) extremamente vulgar, exibida e cafona. Além disso, a personagem se delicia ao penalizar e finalizar os anjos usando de fetiches sadomasoquistas.

Dentro desse contexto, sua sexualidade é libertadora, embora o olhar masculino do criador do game coloque a personagem em poses sugestivas e closes em suas partes íntimas praticamente o tempo todo.

A excessividade, nesse ponto, mais atrapalha do que ajuda a disseminar a mensagem.

E se levarmos em conta a objetificação das personagens femininas para além de Bayonetta - especialmente nos anos 80 e 90 - a sexualização da personagem ganha um espectro ainda mais conflitante, pois, ao mesmo tempo em que temos uma protagonista que passa de objeto sexualizado para sujeito sexualizado - e aqui, há uma grande diferença -; ainda assim, Bayonetta é uma boneca virtual escopofílica.

Afinal, vale lembrar que ela foi desenhada por uma mulher (Mari Shimazaki, mais conhecida como Shimako), mas dirigida por uma visão masculina (Hideki Kamiya) e entregue para um público que, em sua grande maioria, é heteronormativa.

Imagem oficial de Bayonetta
PlatinumGames/Reprodução

Corroborando com essa questão, Georgia Parker, graduada em Sociologia da Universidade de Londres; pontua bem como a sexualidade feminina é “industrializada” em seu artigo, intitulado Como a sexualização das mulheres na cultura ocidental alterou a definição e a capacidade de atingir o poder sexual feminino?.

Ela diz: “As personas sexuais das mulheres são comoditizadas, comercializadas, vendidas e empacotadas em revistas, filmes, cirurgias e moda. No entanto, essa identidade sexual não é construída para o prazer feminino ou para a liberação sexual. Ele foi desenvolvido exclusivamente para satisfazer a fantasia erótica masculina, sexualmente agressiva e construída de forma social”.

Objetificação versus empoderamento

Antes de continuar, vale relembrar estas duas palavras tão citadas internet a fora e como elas se encaixam no contexto de Bayonetta. Afinal, repetindo: a personagem passa de “objeto sexualizado para sujeito sexualizado”. Mas o que isso quer dizer?

Andrea Bartz escreveu um artigo para a Marie Claire intitulado “Algumas vezes eu exploro minha sexualidade e não me arrependo”. Em seu texto, a autora levanta a questão da objetificação.

Imagem oficial de Bayonetta
PlatinumGames/Reprodução

“‘Mas você está se objetificando!’, eu consigo ouvir a indignação daqui e, com isso, a indicação de que não posso esperar ser levada a sério se eu estiver maquiada e usando um vestido apertado”, argumenta a autora.

“Isso é um grande equívoco sobre a sexualidade feminina: as pessoas se enganam e acham que a linha que separa objetificação e empoderamento está nos olhos de quem vê. Mas, na verdade, está nos olhos do sujeito: é você quem decide se está sendo objetificado ou empoderado”

Assim como ela fez em seu texto, também deixarei indicada uma tirinha desenhada por Ronnie Ritchie (feita para o site Everyday Feminist) que explica bem a diferença entre objetificação e empoderamento.

Por fim, novamente citando Georgia Parker, em seu artigo ela também levanta pontos como a objetificação e o empoderamento; citando movimentos como a terceira onda do feminismo, que, segundo ela, é uma espécie de “novo [tipo de] feminismo mais expansivo e acolhedor”.

Em seu texto, Parker aborda como as feministas da terceira onda “adotam uma conotação liberal de que a liberdade sexual é um direito fundamental para alcançar a libertação dos corpos das mulheres, que são explorados e dominados por instituições patriarcais, como pornografia e indústrias de beleza” - o que conversa perfeitamente com Bayonetta, nesse contexto.

Imagem oficial de Bayonetta
PlatinumGames/Reprodução

Uma das diferenças, porém, é que a personagem usa sumariamente a sexualização a seu favor, como uma de suas principais armas.

Sexualidade como principal arma

Subjetivamente, a maneira como Bayonetta lida com os inimigos, por meio de sexo e violência, é uma alusão vaga ao tropo da viúva negra, a femme fatale clássica (um estereótipo muito bem representado na obra Carmen, de Prosper Mérimée, por exemplo).

Usar a feminilidade e sexualidade como arma concede, de um certo ângulo, uma sensação de libertação e empoderamento; afinal, Bayonetta tem total controle de suas ações e, sobretudo, de seu corpo. Sua autoconfiança, na realidade, é sua maior arma.

Junte esse elemento ao contexto da realidade em que Bayonetta vive - uma sociedade governada por seres angelicais majoritariamente masculinos, pudicos -; e sua autoconfiança e o controle sobre sua mente e corpo a influenciam ao ponto de que todas as armas e golpes que ela executa se tornam propositalmente eróticas.

Imagem oficial de Bayonetta
PlatinumGames/Reprodução

Os ataques finalizadores que os demônios invocados por Bayonetta usam nos anjos maiores (nos momentos chamados apropriadamente de “Clímax”), são, em sua grande maioria, alusões sexuais. Formatos fálicos, sadomasoquismo, movimentos de penetração: são vários os paralelos utilizados pelas monstruosidades demoníacas para flagelar os seres angelicais.

Também é importante apontar que Bayonetta não cede aos padrões de beleza heteronormativos, apesar de suas medidas serem exacerbadas. Sim, ela tem seios fartos e pernas grandes, cabelos longos e até mesmo uma pinta no queixo para fazer alusão a um dos grandes ícones sexy da história, Marilyn Monroe.

Contudo, se analisada mais de perto, as proporções de Bayonetta são bizarras: ela não se parece em nada com uma mulher que a sociedade consideraria comum, e está longe de ser uma modelo - ainda que tenha uma cintura relativamente fina.

Ainda assim, seu corpo não a desqualifica de ser uma heroína empoderada e, por que não dizer, radical, que alcança um novo nível de protagonista forte e bruta (ou bad-ass, como costumam chamar por aí). E que ela não seja a única, tomara.

Contraponto masculino

Imagem oficial de Bayonetta
PlatinumGames/Reprodução

Ao mesmo tempo, Bayonetta não tem um correspondente masculino, uma cara metade. Ao invés disso, ela brinca com os sentimentos dos homens, os usa para satisfazer suas vontades sem nenhum pudor; e em combate, ela é bruta e mortal, usando de provocações e violência erótica para lidar com os inimigos.

O jornalista Luka, por exemplo, representa de uma certa forma o jogador: ele é obcecado por Bayonetta e, namoradeiro que só ele (fazendo alusão a outras garotas retiradas diretamente de jogos da Capcom, inclusive), flerta incessantemente com a bruxa.

Ela parece corresponder, mas na verdade, eles estão em vibrações diferentes: Luka fica totalmente desconectado da realidade quando se trata de Bayonetta, enxergando e fantasiando sobre a mulher, enquanto ela está mais focada em cuidar dele, em uma relação quase edipiana, como bem apontado pela professora assistente Amanda Phillips em seu artigo "Castrando o olhar hétero masculino sobre Bayonetta (ou abrindo oportunidade para um novo!)" no site Gamer Trouble. Ele sempre termina insatisfeito, mas cheio de esperanças em relação à bruxa.

Sua relação com Luka, afinal, não é o foco. E tudo corrobora no fim das contas com uma das grandes temáticas dentro da narrativa do game: a maternidade, e, especialmente, a fraternidade. As bruxas do Clã Umbra e a amizade de Bayonetta com Jeanne simbolizam isso muito bem.

Além disso, Bayonetta brinca com alguns outros tropos famosos. Ao longo do game, a vemos nos papéis da “criança, mãe e santa”, por exemplo. Embora essa idealização seja de origem bíblica (também conhecida como as “Três Faces de Eva”), as fases implicam que a feminilidade é muito mais complexa e cheia de mensagens do que aparenta; casando perfeitamente com a protagonista do game e suas múltiplas facetas.

Imagem oficial de Bayonetta
PlatinumGames/Reprodução

Durona e sensível

Outro tropo famoso com o qual o jogo brinca é o do Romantismo versus Iluminismo: basicamente o lado da luz é o masculino contra as trevas, que são representadas pelo feminino - ou ainda, a razão contra a emoção, de maneira simplificada.

O uso do tropo, ainda que de maneira subjetiva, sugere que a subversão feminina, os sentimentos, a sexualidade e a diversão são os maiores e mais poderosos recursos a serem usados contra o patriarcado e seu conservadorismo, ordem, opressão e repressão.

Por sinal, a vulnerabilidade de Bayonetta quase sempre vem à tona nos momentos em que sua maternidade e fraternidade estão em cheque. E curiosamente, são nessas partes que a personagem verdadeiramente brilha e se constrói.

Sua relação com Jeanne, a princípio, é problemática, mas as camadas de sua história juntas - a amizade e a rivalidade como bruxas e não como mulheres; e principalmente, todos os perigos que passaram com a extinção do Clã Umbra - tudo vai sendo revelado aos poucos e então todas as peças se encaixam. O mesmo vale para a pequena Cereza, a criança que Bayonetta precisa proteger durante boa parte de sua jornada.

Imagem oficial de Bayonetta
PlatinumGames/Reprodução

Quando acontece a grande revelação de que Bayonetta é, na verdade, a própria Cereza no passado, a grande mensagem é que a protagonista está ensinando ela mesma como cuidar de si, e que, independente das dificuldades, será possível vencer todas futuramente.

(Apenas para contextualizar, essa parte da Cereza = Bayonetta envolve um grande plano do vilão, Balder, e uma espécie de viagem no tempo, mas isso é assunto para outro artigo).

Toda a relação de Bayonetta e de Cereza faz completo sentido: sua progressão técnica e o crescente afeto entre a mulher e a criança, tudo é voltado para ela e unicamente ela, e não para outro personagem. E essa mensagem é simples e absolutamente empoderadora.

Sem querer ou não, a execução é o que conta

Vale apontar que, muito provavelmente, os desenvolvedores não estavam pensando em todas essas idealizações, tropos, mensagens e representações quando Bayonetta foi projetado. 

Imagem oficial de Bayonetta
PlatinumGames/Reprodução

A liberdade e a sexualização feminina não é exatamente um assunto que os produtores querem mirar quando estão desenvolvendo um título de videogame. De forma generalizada, o principal argumento de um desenvolvimento de game envolve a diversão do consumidor e claro, o dinheiro gerado para as empresas - como bem apontado por Georgia Parker no artigo citado anteriormente neste artigo.

Todavia, mesmo que tenha sido sem querer (ou não), a execução de Bayonetta e todos os pormenores entendíveis nas entrelinhas, seja no texto, no visual ou nos elementos mais técnicos - como jogabilidade, mecânicas, narrativa, combate, trilha sonora, etc. -; passam uma mensagem fortalecedora para a figura feminina dentro e fora dos videogames.

Além disso, a concepção de Bayonetta, como personagem e como figura feminina, gerou e ainda gera debates; o que é importantíssimo para que a indústria se mobilize, para bem ou para mal.