Por muito pouco, quase ficamos sem duas das melhores aventuras da série Ace Attorney.

Ao longo de duas décadas, a série de aventuras advocatícias da Capcom provou a força e a criatividade de seu conceito original: o jogador deve investigar pistas, interrogar caricatas testemunhas e defender a inocência de seus clientes em um mundo em que acusados são vistos como culpados até que se prove o contrário.

Mais recentemente, em 2015 – no 3DS, e apenas no Japão – The Great Ace Attorney provou, com uma singela mudança de perspectiva, que a franquia ainda tem muito de valor a oferecer.

The Great Ace Attorney Chronicles é a compilação de dois jogos que voltam os olhos para o passado deste universo, com um novo protagonista. O pacote é ideal para iniciantes por começar com uma história ‘do zero’, e para todos os demais por ter um clímax que rivaliza os pontos mais altos da trilogia original.

Divulgação/Capcom

Um antepassado de Phoenix Wright, Ryunosuke Naruhodo é um jovem estudante de direito no Japão da virada do século XX. Jogadores o conhecem no momento em que ele é acusado por um crime que não cometeu, e então passam a acompanhar sua trajetória de jovem tímido a figura essencial para a formação do sistema judiciário japonês moderno.

A jornada de Ryunosuke se assemelha muito à de Phoenix, até mesmo passando por detalhes como a relação entre os personagens e seus respectivos mentores. Mas o jogo sabe disso, e brinca constantemente com as expectativas dos fãs para criar grandes surpresas.

Vivendo entre o Japão da era Meiji e a Grã-Bretanha Vitoriana, Ryunosuke apresenta uma perspectiva inédita para Ace Attorney. Este é o ponto mais forte dos jogos: a construção do cenário na virada entre os séculos XIX e XX foi feita com muito esmero e atenção aos detalhes, escapando de anacronismos.

O triunfo desse aspecto de Great Ace Attorney é sentido na maneira como os mistérios são resolvidos. No lugar de imagens de câmeras de segurança e exames de DNA, o jogo oferece alternativas que condizem com a época retratada. Assim, o jogador precisa sempre tentar habitar a pele de Ryunosuke – “como é que um advogado japonês que ainda não conhece o conceito de queijo veria uma situação dessas?” – para encaixar as peças do quebra-cabeça.

De maneira similar, o cuidado com a construção do passado do universo de Ace Attorney também tem reflexos surpreendentes na história. A maneira abertamente racista e desrespeitosa com a qual os personagens britânicos tratam os japoneses, por exemplo, me deixou um pouco atordoado. Mas é algo coeso, e que fortalece a narrativa.

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Entre suas duas ‘metades,’ The Great Ace Attorney tem dez casos e dezenas de horas de jogo. Não cabe a mim entrar nos detalhes de nenhum deles, já que o prazer oferecido pela série está justamente na descoberta dos mistérios. Basta dizer que eles seguem uma curva ascendente de complexidade e nível de envolvimento emocional, culminando com alguns dos meus momentos favoritos em toda a franquia.

A estrutura do jogo é familiar para a série, mas conta com diferenças que obrigam os jogadores veteranos a pensarem de maneiras um pouco diferentes.

Nos trechos de investigação, Ryunosuke é auxiliado pelo irritante, porém envolvente Herlock Sholmes. Não deixe o “s” itinerante te enganar: é ele mesmo que você está pensando.

Sholmes é essencial para a narrativa por conta da inclusão das cenas de ‘Joint Reasoning,’ nas quais o investigador e o protagonista se auxiliam em uma espécie de dança de deduções. Dessas cenas surgem novas e importantes evidências a respeito de testemunhas e suspeitos.

Na hora de colocar seu conhecimento de um caso à prova no tribunal, o jogador tem a oportunidade de analisar todas as testemunhas de uma só vez – algo inédito para a série. É preciso prestar atenção não apenas ao que está sendo dito por uma testemunha, mas também às reações de suas vizinhas. A camada adicional de complexidade não é volumosa o suficiente para tornar Great Ace Attorney mais difícil do que títulos anteriores, mas é uma adição bem-vinda capaz de tornar os julgamentos mais emocionantes e dinâmicos.

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Em termos de conveniências, The Great Ace Attorney Chronicles é a melhor oferta da série até hoje. DLCs dos originais de 3DS já estão inclusos no pacote básico, assim como vídeos promocionais e outros extras que prolongam a experiência básica da aventura. Comodidades como opções de avanço automático dos diálogos e de ajuste de velocidade permitem ao jogador aproveitar a história com mais conforto.

Há até mesmo um ‘Story Mode,’ no qual as escolhas certas são feitas automaticamente para que a trama seja aproveitada como uma visual novel clássica. A ressalva: muitos dos melhores diálogos ocorrem quando o jogador faz uma escolha errada, e este modo pula todos eles.

A apresentação visual de Great Ace Attorney também é a mais impressionante da série, com uma quantidade surpreendente de animações únicas e cutscenes que dão vida aos peculiares personagens que Ryunosuke encontra no caminho.

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Mas nada disso importa para quem não é fluente em inglês. Mais narrativa interativa do que videogame, Ace Attorney cobra o domínio do idioma para que jogadores consigam desvendar os mistérios e curtir todo o humor injetado nas conversas. Infelizmente, The Great Ace Attorney Chronicles ainda não foi o primeiro jogo da série a ser traduzido oficialmente para o português do Brasil.

Para aqueles que não têm isso como um impedimento, The Great Ace Attorney Chronicles é essencial. A jornada de Ryunosuke é envolvente, emocionante e absurdamente criativa – daquelas que deixam você órfão quando acabam.

O jogo tem versões para Nintendo Switch, PlayStation 4 e PC.

Nota do crítico