Intromissões
Festival do Rio
[Rio/Cannes]
Quem somente ouve falar no Festival do Rio talvez não se dê conta da transformação da Cidade Maravilhosa em uma capital para os cinéfilos.
Tudo respira cinema. Até em plena areia de Copacabana montaram uma gigantesca e confortável sala. Imensos cartazes enfeitam shopping centers e postos de salvamentos na praia. Grande parte do circuito exibidor suspende sua programação normal para o lançamento de centenas de filmes, que poucos conseguem assistir e que darão o que falar nos meses seguintes. Não dá para ver tudo, mas só a possibilidade já empolga. Bom exemplo para São Paulo que tem mais e melhores cinemas...
[Efeitos colaterais do conhecimento]
Há quatro películas em cartaz que tratam da solidão, vontade de saber e escolha pelo desconhecido. Terminal traz um viajante (Tom Hanks) que tem sua cidadania suspensa uma vez que seu país natal está em guerra civil. Ele não pode sair do aeroporto de Nova York e nem entrar na América dos sonhos. O melhor de Terminal são os coadjuvantes que trocam com Hanks os segredos mais simples e a motivação poética deste comovente anti-herói. Spielberg parece não conseguir exorcizar certa dívida com o pai. Tomara que ele não se analise nunca. Os filmes são ótimos.
Colateral, de Michael Mann, traz Tom Cruise como um matador existencialista, algo niilista se quiserem. Decidido a incitar o motorista de táxi (Jamie Foxx) que o leva aos locais dos crimes a fazer escolhas na vida, o criminoso faz uma psicanálise selvagem... mas eficiente.
A vila, de M. Night Shyamalan, mostra jovens moradores de um povoado perdido no tempo e espaço que querem saber muito mais do lhe é permitido. O clima da fita é ótimo, realmente assustador, mas a conclusão, em vez de aliviar, angustia mais. Tolos os que pensam que o diretor é tolo!
A supremacia Bourne apresenta novamente o desmemoriado Matt Damon procurando juntar os cacos de sua tênue memória. Rápido demais, eficiente, algo triste... vontade de rever o primeiro.
[Responsabilidade das escolhas]
Os quatro filmes são conservadores em suas conclusões, o que reflete o quanto o cinema comercial americano ainda opta por uma suposta segurança do já conhecido.
Em Terminal, depois de muito esforço e transformação a personagem de Hanks resolve voltar à terra natal, desprezando todo o esforço de adaptação em solo estrangeiro. Em Colateral, o motorista de táxi resolve mudar sua vida, seguindo o ensinamento de Cruise, mas tudo cai na banalidade. A personagem de Foxx aprende com Cruise que pode agir e começa pela defesa/vingança algo amoroso e revigorado no final/início. Em A vila, as personagens curiosas que poderiam sair do apavorante local preferem continuar isolados no meio do nada. Em A supremacia Bourne, Matt Damon que, ao final do antecessor A identidade Bourne, optara pelo isolamento natureba não resiste e volta a ser o matador para o qual foi treinado. Moral da história: mude para ficar o mesmo.
[Porradas laterais]
Tarantino defende que o cinema foi criado para exibir sexo e violência. Está certo. Se não fossem os rígidos códigos morais impostos ao cinema na década de 1930, assistiríamos há muito tempo o que agora podemos ver em nossas televisões, especialmente os filmes pornográficos.
No começo do século XX, o cinema rapidamente caminhou para a apresentação do erotismo e de cenas violentas que ninguém fazia ou via no cotidiano. Tarantino denuncia a hipocrisia da crítica, quando o rotula de diretor que fomenta a violência. Em Kill Bill Vol. 2, que finalmente chega às nossas telas, o diretor deixa claro - assim como em todas suas obras - que violência é um problema da vida bandida. A rigor, todos os personagens de Tarantino são vilões. Até mesmo a bela Uma Thurman, que era matadora em seu passado não esmiuçado e continua neste presente amargo. Lírica a cena da morte de Bill. Nenhuma revelação aqui! Veja-se o nome do épico.
[Efeitos colaterais no teatro brasileiro]
Nada mais violento do que o fio condutor de As pequenas raposas, de Lilliam Hellman. A peça acaba de estrear no Centro Cultural Banco do Brasil do Rio de Janeiro. Beatriz Segall lidera o elenco de notáveis do palco brasileiro e sua tradução (com Marco Antônio Guerra) enxugam e abrilhantam o texto mordaz e atualíssimo.
Beatriz faz Regina, uma aristocrata ascendente da sociedade sulista dos Estados Unidos, na virada do século XX. Alpinista social, tem como maior sonho morar na chic Chicago, e sua determinação a faz passar por cima do marido em doença terminal - Sérgio Britto, sempre ótimo - dos irmãos desonestos e ambiciosos e da frágil filha. O final aponta para uma comparação atual com o governo republicano norte-americano, tornando claro que o capitalismo selvagem como se entende atualmente começou ali.
Assim como vemos no cinema americano, o teatro de Lilliam Hellman já ensinava que suas personagens ousavam para mudar, mas preferiam a vida conservadora.
[A fonte de Michael Moore]
O cineasta de Fahrenheit 11 de setembro poderia ter aprendido tudo com Hellman.
As pequenas raposas é um tratado sobre a ambição e seu mais cruel desenlace. O texto trabalha com uma guerra de palavras entre os protagonistas da mesma família. Resultado: a vitória do mais forte não garante o sucesso de sua empreitada. Vejam e comprovem.
Há muito tempo não se via no teatro brasileiro uma produção tão caprichada, sob a direção de Naum Alves de Souza. Quem não puder agüentar a espera para São Paulo (se a peça vier), vá correndo ao Rio de Janeiro.
Atenção à energia de Beatriz Segall, impossível desgrudar os olhos dela em cena. Alguns críticos apontaram a dessemelhança da interpretação com a clássica fita com Bete Davis. Aí reside a grandeza desta estrela magna dos nossos palcos.
[Olho no olho do amor]
O mesmo sucesso de São Paulo se repetiu no Rio de Janeiro.
Os pianistas Martha Argerich e Nelson Freire fizeram levitar o público que compareceu às disputadíssimas récitas. Perfeições à parte, o que assistimos é a mais pura constatação de um casamento que dura mais de quarenta anos.
Quem viu o documentário de João Moreira Salles percebeu que Nelson e Martha se respeitam em suas diferenças e preferem transformar a difícil e badalada vida de concertista no mais banal encontro, seja para discutir produtos de limpeza, seja para executar a mais sublime peça para piano. No palco pianistas demonstram com seu ofício que o segredo de uma longa convivência está no respeito pelas diferenças - são pianistas de técnicas diferentes, dizem os críticos - no olhar cúmplice que abre um átimo para a próxima nota. Que soa perfeita!
[Maricotinha e Maricotona]
Maria Bethânia e Bibi Ferreira com novos DVDs na praça. Biscoito finíssimo!
Bibi fez em janeiro no Rio um show sobre Piaf, a personagem que canta e interpreta há mais de vinte anos. Ver esta dama, esta atriz, diretora, cantora, poeta em cena é um privilégio ímpar, lustra nossa cultura esta maravilhosa senhora no alto de seus 83 anos!!! Que energia, que fôlego... impossível não chorar e rir depois do que nos ensina: "eu não tenho a pretensão da eternidade" - afirma no making of.
Bethânia está feliz e faz todo mundo feliz com isto. Seu DVD Brasileirinho é delicioso, bem humorado, chiquérrimo com convidados como o poeta Ferreira Gular, a atriz Denise Stoklos, grupo Uakti e Tira Poeira e ainda Miúcha e Nana Caimmy... todos enfim que participaram da gravação do CD homônimo. Divertido, comovente, bem dirigido por Bia Lessa.
Ambos os DVDs com produção de primeiríssima que, para serem ultra-plus, só faltou o widescreen anamórfico. Imagem e som DTS perfeitos.
Elogios sempre aos engenheiros e mixadores de som brasileiros: o melhor que já ouvimos em DVDs de shows.
[A medula da MPB]
Medulla é o novo trabalho de Björk, a mais brasileira das vanguardistas do mundo.
Cada vez mais, a islandesa aproxima-se do Brasil, seja por suas visitas com o marido multimídia (Matthew Barney que tem filmes exibidos na Pinacoteca de São Paulo), seja por suas declarações reconhecendo Elis Regina como uma de suas maiores influências. (Grandes) diferenças à parte, Björk decide pelo canto e melodia fazendo - como sempre - um trabalho estranhamente belo.
Mas quem quiser conferir sua musa compre já a cópia cristalina do melhor disco da história da MPB, o remasterizado Elis & Tom. O disco comemora trinta anos e não há concorrentes. Se puder escolher leve o DVD áudio, mixado em DTS e Dolby Digital para a ilha deserta em caso de naufrágio... mas não esqueça do mais moderno aparelho de reprodução, pois o trabalho da Trama discos e do ex de Elis, César Camargo Mariano, merecem o investimento.
"Nossas vidas não contêm um minuto, um só, que deva passar sem nos deixar qualquer ventura!"
Antonio e Cleópatra
Shakespeare.