O grande mérito de um jogo carregado pela trama está na capacidade de puxar o jogador para o universo proposto pelos criadores. E o quanto você consegue ficar imerso naquele mundo depende, obviamente, da trama, mas também de como você interage com esse mundo, de que ferramentas o jogo te oferece. Em geral é simples: no direcional você anda, os botões abrem portas, desferem golpes, convocam entidades demoníacas (nos meus jogos preferidos, pelo menos). Outra maneira de envolver o jogador com seu personagem é oferecer opções de diálogo, customização do personagem etc.

No caso de Heavy Rain, essa operação é elevada a um novo patamar. A ideia dos criadores é que cada decisão tomada, cada diálogo escolhido ou caminho trilhado conduziria o jogo a um desfecho diferente. Mais que isso: ao controlar absolutamente todas as ações e movimentos dos personagens (desde escovar os dentes e fazer a barba a investigar um cadáver, dirigir, lutar), o jogador estabeleceria uma ligação, digamos, emocional com o personagem que outros jogos não permitem. Ou seja: ao tomar a decisão consciente, no início do jogo, de brincar com seu filho – e controlar a brincadeira por uma série de quick-time-events --, em vez de trabalhar ou ficar deitado na grama, uma cena posterior com o mesmo filho pode causar mais ou menos impacto, por exemplo.

Heavy Rain

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Não é a primeira vez que a Quantic Dreams, produtora de Heavy Rain, tenta atingir esse efeito. O jogo anterior, Fahrenheit (ou Indigo Prophecy, na versão americana censurada), permitia um grau bem similar de controle mas, na segunda metade, dava uma escorregada brutal na trama. No caso de Heavy Rain, isso não acontece, e tirando alguns momentos de vergonha alheia do roteirista, a história vai bem até o final. Não dá para contar muito sem estragar, mas basicamente você controla quatro personagens que, de uma maneira ou de outra, estão ligados a um a um assassino em série, o Origami Killer. A ação vai se alternando entre eles e, a partir de um certo ponto do jogo, o que você faz em uma das partes começa a interferir com as outras, tornando cada passada pelo jogo uma experiência diferente.

A experiência toda, no geral, é muito bem sucedida. Os controles, por exemplo, se adequam à dificuldade da ação que você deseja realizar, o que de certa forma intensifica o processo de imersão. Para abrir uma porta, basta uma meia-lua. Pegar um objeto, toque para cima. Já subir um morro enlameado exige uma combinação de botões mais esotérica, e o mesmo vale para escalar uma cerca. As lutas podem ficar bem complicadas: sequências de botões que vão pulando na tela, num ritmo que às vezes pende para a demência. Pior: é possível morrer em diversas dessas cenas e, uma vez morto, o personagem realmente não volta mais, a morte é incorporada à trama e bola pra frente. Isso dá um sentimento de urgência para o jogo, além de, numa nota pessoal, impossibilitar a pratica do tabagismo durante a partida, visto que nunca se sabe quando um comando vai aparecer na tela, colocando tudo a perder.

A trama ajuda. Não obstante as referidas passagens de vergonha alheia, e talvez por conta do esquema de controles, alguns momentos carregam uma tensão incomum a jogos de suspense e terror. Nos seus melhores momentos, Heavy Rain realmente estabelece uma conexão forte entre jogador e personagem, o que torna algumas decisões particularmente difíceis. Quando você sabe que a atitude de um personagem vai influenciar a vida do outro, é uma negociação muito dura para decidir qual dos dois privilegiar. Ao mesmo tempo, por diversas vezes me senti impelido a tomar certas decisões que, enquanto batiam com a personalidade que fui conferindo ao personagem, certamente não carregariam a história para algum tipo de conclusão feliz.

Não que o jogo passe sem problemas. Os controles, por exemplo, podem se tornar excessivos e, depois de algumas horas abrindo todas as portas, todos os armários, pegando manualmente todos os objetos, fiquei meio de saco cheio. Há inúmeros problemas gráficos, o que nem me incomoda muito, mas enfim, quem se liga nisso vai reparar. Nas partidas que joguei, a grande questão acabou sendo o esquema de vários finais. Embora alguns deles sejam realmente sombrios, surpreendentes ou simplesmente horríveis, um dos caminhos leva a um final Scooby Doo muito desastrado e fora de tom, que ainda por cima deixa os outros com um leve cheiro de Game Over. Acho que trai um pouco o espírito do jogo e, se a proposta de Heavy Rain fosse seguida à risca, cada final traria um sentimento próprio de conclusão, sem que houvesse um melhor ou pior do que o outro.

Nota do crítico