Era o último dia de aula antes das férias do meio do ano. A tia da escola entrou na classe com um sorriso diferente. "Quero que vocês leiam um livro durante o mês de julho", anunciou. Os alunos tentaram argumentar dizendo que era férias, que eles queriam brincar, não ler. Em vão. Enquanto eles reclamavam, ela já escrevia o nome daquilo que iria estragar os dias da criançada: O Gênio do Crime , de Jõao Carlos Marinho. "Vocês vão gostar", disse ela, encerrando o assunto. Trinta dias depois, voltávamos pra escola eu, minha lancheira e meu novo brinquedo favorito: o tal livro.

Alguns anos depois, minha mãe me emprestou Feliz Ano Velho (Marcelo Rubens Paiva) e daí foi fatal. Não parei mais de virar páginas - das finas e branquíssimas da Cia. das Letras às "ralés" e apaixonantes dos paperbacks ingleses. E a coisa só piorou quando García Márquez me confundiu e me surpreendeu com a solidão de Macondo.

Ler me ajuda a entender melhor as coisas do mundo. É a desculpa perfeita pra não ter de conversar com a pessoa ao lado quando não estou afim de papo. E a literatura pop me distrai, me faz rir e chorar. Com sua linguagem rápida e original, me leva à poltrona do cinema mas não me prende às fixas seqüências dos filmes. Me leva pra longe, sem despesas nem fichamentos em alfândegas. Me dá a chance de divagar entre as linhas sem me preocupar em perder o fio da meada. É por tudo isso que vou usar esse espaço omelético pra falar de livros, sejam eles novos ou usados, meus ou emprestados.

Os garotos da Rainha

Pra começar bem, vamos falar da recente e jovem literatura britânica. Autores que por meio da música, da paternidade, do futebol, da influência estrangeira ou de relacionamentos complicados tentam dar conta do furacão de mudanças que atingiu os ingleses na última década. Os súditos da Rainha agora se permitem chegar atrasados vez ou outra, querem falar de seus sentimentos, estão aprendendo a ser pais solteiros e não ligam de chorar no meio da rua quando a princesa querida morre tragicamente. Hoje, o dia é dos escritores ingleses contemporâneos - nem sempre frios, nem sempre gentlemen .

Nick Hornby é, logicamente, o inventor desse novo personagem na literatura inglesa. Na verdade, muito antes de Hornby lançar seus livros, o novo homem inglês já estava lá. Um cara na casa dos vinte e poucos, trinta anos, andando com seu cachecol pelas ruas e pubs londrinos. Ele é maduro, sensível, emotivo e ciente de como havia ficado complicado viver os anos 90. Domingo à tarde, ele vai ao estádio. À noite, grava uma fita com as músicas preferidas para a namorada. Hornby foi o responsável por tirar esse cara da realidade e derramá-lo dentro de seus livros. Seu jeito de escrever fez com que homens (não só ingleses) se identificassem na hora com seus personagens. E, o que é mais genial, o mesmo aconteceu com mulheres mundo afora. A obra de Hornby dispensa maiores comentários, mas se você quiser saber mais sobre ela, clique aqui.

Os seguidores

Se Hornby é o pai literário dessa nova personalidade inglesa, Tony Parsons é seu melhor discípulo. O ex-jornalista da bíblia do rock NME e atual colunista do tablóide The Mirror chegou aos trinta e poucos anos cansado de falar do punk inglês e decidiu, como Hornby, tratar de sentimentos e encanações da vida moderna.

Quando o entrevistei em Londres, em setembro de 2002, ele falou de sua tese na qual os ingleses estão sim mais emotivos que nunca. " No dia em que a Lady Di morreu, vi marmanjos e menininhas chorando pelas ruas. Há dez, 15 anos, essa comoção generalizada era impensável".

E, assim como Hornby, Parsons traz essa "novidade" do dia-a-dia inglês em seu primeiro livro, que também é, em boa parte, autobiográfico. Em Pai e Filho (Man and Boy), o protagonista Harry Silver , um jovem pai, de repente, vê-se numa situação em que tem que cuidar sozinho de Pat , seu filho pequeno. Parsons enfrentou exatamente a mesma dificuldade quando sua então mulher Julie Burchill (outra ex- NME e atual colunista do The Guardian ) o abandonou quando o filho do casal era apenas uma criança.

A "loucura" da ex-mulher (a discórdia entre os dois é pública na Inglaterra) e a imensa responsabilidade que foram enfrentadas por Parsons claramente refletem em sua obra. A delicadeza e a incrível percepção da realidade com que o problema do pai-solteiro foi tratado no primeiro emocionou tanto os ingleses que a história ganhou seqüência no terceiro livro do escritor, Man and Wife - ainda inédito por aqui.

Harry está casado novamente ("minha mulher, não minha segunda mulher!") e começando a se acostumar com um outro item da chamada vida moderna, as "famílias misturadas", em que filhos de outros casamentos convivem com padrastos e madrastas. Ele agora sabe quem é Lucy Doll, a boneca favorita da filha de sua mulher. Mas não consegue engolir a idéia de seu filho ter um novo "pai", o detestável marido de sua ex-mulher: "Richard quer que meu filho ame Harry Potter, brinquedos de madeira e tofu. Mas meu filho ama Star Wars, sabres de luz de plástico e pizza". De cinema à junk food , passando por brinquedos e marcas da moda, Man and Wife é lotado de divertidas referências pop que dão ritmo à história.

O enredo do livro só escorrega um pouco quando Harry recebe uma notícia-balde-de-água-trincando que abala não só sua vida, mas também a verossimilhança da história. Nada porém que comprometa a qualidade da obra. Um deslize desculpável de Parsons em meio a toneladas de passagens que fazem você parar pra pensar porque você ama incondicionalmente alguém que procura Kylie Minogue no dial do rádio e trair quem você, diante do altar, tinha certeza que seria pra sempre. Tudo isso sem moralismos nem presunção.

Sinatra e tai chi

Entre um livro e outro, Parsons lançou One for my baby, que traz de novo um homem e sua temível crise de meia-idade. Alfie Budd, como Harry, também está desnorteado depois de perder sua mulher. Ele volta a Londres, depois de alguns anos em Hong Kong, na esperança de amenizar a dor da perda, mas percebe que está numa cidade onde não se encaixa mais. Seu pai usa bermuda de lycra e está de caso com a jovem empregada checa. Sua mãe começa a se interessar pelo jardineiro. E enquanto afoga suas mágoas na companhia de Frank Sinatra e da saudosa cerveja Tsingtao e em aulas de Tai Chi, ele encontra, na faxineira da escola de inglês em que dá aula, uma chance de, digamos, se reencontrar.

Seu quarto livro, The Family Way, será publicado na Inglaterra em julho e, como ele havia adiantado em nossa entrevista, trata da gravidez. Mais uma vez, o autor foi influenciado pela vida real. Enquanto escrevia, acompanhava de perto os ultrassons de sua segunda mulher e o nascimento de seu segundo filho. Mesmo depois dos deslizes de Man and Wife, vale a pena dar outra chance a Parsons e esperar um romance dos dilemas do homem moderno, balanceando humor, angústia e deleite. Tudo bem ao estilo de Tony Parsons, menos profundo que Hornby, mas tão empolgante quanto.

Enfim, a retaguarda

Na trilha aberta por por Nick Hornby, vêm ainda mais dois autores ingleses. O primeiro é Mike Gayle. Seu romance de estréia vendeu 200 mil cópias e ele já foi chamado de "Bridget Jones masculino". Em Dinner for two, seu último livro, o jornalista crítico de música, Dave Harding, é demitido da revista Louder e, depois de várias portas batidas, resolve aceitar o emprego de colunista de revista teen. Algo como um conselheiro pra adolescentes que não sabem se devem ou não ficar preocupadas se ele não ligar no dia seguinte. Alguém aí lembrou da época em que Zeca Camargo esteve na Capricho?! Enfim, passam-se os meses e ele acaba recebendo uma carta de uma menina que diz ser sua filha, o que, logicamente, provoca uma reviravolta em sua vida. Uma história simpática e bem escrita, mas sem a perspicácia de Hornby e o charme Parsons. O único dos cinco livros de Gayle lançado por aqui é Sr. Compromisso: Casar, ou Não Casar, Eis a Questão (Mr. Commitment). Seu próximo romance, His ‘n Hers chega às prateleiras inglesas em abril.

E pra completar o time, Mark Barrowcliffe, com seus dois livros já no mercado brasileiro: A namorada nº 44 de Harry Chess e Infidelidade de Stewart Dagman, Pai de 1º Viagem. O estilo do autor é um pouco mais apimentado do que o dos citados acima. Algo muito mais físico e/ou sexual que sentimental. Harry Chess, por exemplo, é um (mais um!) homem na casa dos trinta anos que depois de 43 tentativas frustadas parece ter encontrado o amor de sua vida. O problema é que ele não foi o único que encontrou em Alice a mulher ideal. A disputa é previsível, assim como boa parte da história. Barrowcliffe também está com livro no forno, Lucky Dog, pra junho.

Na praia com os ingleses

Mesmo com as derrapadas de Gayle e Barrowcliffe, os quatro autores são leituras deliciosas. Além de distrair, Parsons e Hornby ainda traduzem o mundo moderno pra gente. Mas há quem solte o verbo em cima deles, dizendo que tudo não passa de "literatura de praia". O que, para os ingleses, que lêem o tempo todo e têm pedras no lugar de areia na praia, pode ser um pouco ofensivo. Pra nós, é diversão garantida.

 

Um pouco mais de Nick Hornby

Nick Hornby virou sucesso absoluto no Reino Unido quando lançou, em 1992, um livro semi-autobiográfico em que contava suas lembranças como um torcedor fanático do Arsenal. Febre de Bola tem o futebol como pano de fundo, mas trata também de obsessões e suas conseqüências. A obra, que dominou a lista dos mais vendidos por seis meses, fala ainda de homens que têm de encarar a hora de ser maduro, mas não sabem direito como fazer isso.

Esse dilema também atinge o protagonista do segundo livro de Hornby, Alta Fidelidade. Rob, ao ser abandonado pela namorada de longa data, vê-se pensando no rumo que sua vida tomou e, sem deixar de lado as listas dos top 5 (melhores músicas para se ouvir numa segunda, melhores meios de transporte ultrapassados, etc.), percebe que precisa tomar uma - séria - decisão sobre seu futuro. Aqui, o futebol é trocado pela música e, mais uma vez, fica fácil se identificar com o personagem, sendo que a leitura é sempre permeada por um: "Putz, eu também adoro essa música, que sempre me lembra aquela namorada..."

O terceiro livro, Um gande garoto (About a Boy), traz o próprio Hornby um pouco mais maduro, com uma dose menor de humor e outra maior de sensibilidade. Marcus é um garoto-problema de 12 anos. Will (quase impossível dissociá-lo da imagem Hugh Grant depois do filme baseado no livro) também pode ser considerado como tal, com a diferença que tem 36 anos. A improvável amizade entre os dois faz refletir sobre quem são na realidade os verdadeiros "desajustados".

O ápice do autor chega em 2001, com o lançamento de Como ser legal (How to be good). A tradução do título para o português não faz jus ao enredo do livro em que Hornby, - agora, pela primeira vez, se colocando no lugar de uma mulher - mostra a trajetória de uma médica que tenta descobrir se ela é realmente uma pessoa BOA, não LEGAL.

No ano passado, Hornby voltou às suas raízes autobiográficas e escreveu 31 Songs - ainda inédito por aqui -, em que repassa sua lista de música favoritas com resenhas nada tradicionais.

Leia mais:

Como ser legal
Alta fidelidade - o filme
Um grande garoto - filme e livro
31 songs


Mariana Della Barba é editora do site Sampacentro, especializado no Centro de São Paulo