[Dona Olga]

Talvez existam poucos que suportem ler alguma linha a mais sobre Olga, o filme. A maioria dos críticos malhou, ressaltando os bons aspectos técnicos, mas abominando diálogos e as aproximações excessivas da câmera. O fato é que Olga se transformou em fenômeno, perpetuando o impacto do livro de Fernando Morais. Para que perder tempo cobrando realidade do cinema que sempre nos confunde com sua ficção? O que importa é que o filme ainda provoca discussão, é assistido e esta é a função da arte. Revistas sérias publicam artigos comparando história com filme. Até a filha de Prestes e Olga saiu da toca. Os dez anos de dedicação e pesquisa da vida de Olga Benário pela produtora e roteirista Rita Buzzar estão na tela. Quem se interessar, no mínimo, fica mais sabido.

[Realidade prometida]

Promessas de um novo mundo amolece os mais duros corações. O premiado documentário (Promises no título original) tem sido exibido na GNT. O filme acompanha sete crianças judias e palestinas que não moram a mais de dez minutos de distância, mas vivem em mundos diversos. A proposta dos realizadores é clara: aproximar as crianças. Para tanto, deixa-as falar e mostrar seu dia-a-dia, mas também emitir opiniões sobre o conflito palestino-judaico. As crianças são fabulosas, lindas e inteligentes. Mas não é isto que cativa o espectador. A possibilidade crescente do encontro traz uma expectativa semelhante à de quando assistimos a qualquer filme de ficção. O encontro é amoroso e a separação - inevitável - traz lágrimas mais verdadeiras, pois se trata de um documentário. Programa emocionante e obrigatório.

[Realidade cumprida]

Se Promessas de um novo mundo dá pistas para um esclarecimento da história e possíveis soluções para a violência em Israel, Alba Zaluan conta tudo sobre nossa violenta realidade em Integração perversa (FGV editora). O livro é um tratado sobre a violência no Brasil, fugindo dos estereótipos como pobreza-gera-crime. A autora, pela via antropológica, lembra que o Brasil, desde sua descoberta, foi visto como um país dominado pelo mal - cultura indígena a ser catequizada. Isto se perpetuou em religiões africanas de esquerda, gerando a reação pentecostal - nós somos do bem. Zaluan está certa que a violência pode ser resultado da luta entre bem e mal encampada pelas religiões. Também lembra o traço de virilidade do brasileiro que é estimulado a agir com agressividade. Depois, fala da cultura do prazer fácil e do hedonismo provocado pela alteração de consciência das drogas. Precisa mais?

[Caos]

Efeito borboleta foi desprezado pelo público e pela crítica americana, mas, desde as pré-estréias brasileiras, o boca-a-boca fez o sucesso do filme e provoca debate. Efeito borboleta trata da violência e do trauma. Há certa visão determinista, ou seja, ninguém consegue mudar o destino. Mesmo assim, a trama ao gosto de Brilho eterno de uma mente sem lembrança mexe com idas e vindas do passado que pode modificar fatos, mas não o sentido da história. A idéia é que a violência sempre provoca um efeito desorganizador e deletério. Não há retorno. Podem se substituir personagens, mas o resultado é o mesmo. O aviso é claro: é melhor prevenir.

[Don Caos]

Don Carlo é uma das óperas mais requintadas de Verdi. Trama complexa e música sublime. Gabriel Villela, o encenador, mais uma vez quis tornar barroca uma ópera que pede limpidez em sua encenação. O diretor inventou, complicou, viu o que ninguém viu e destruiu o que parecia impossível. Não vale dizer que só música e canto bastam. Cenários confusos, direção de cena existente somente para o coro e delírios interpretativos afastam o mais disponível espectador do que acontece no palco. A idéia era mostrar uma violência que Villela enxergou a mais. Desnecessária, pois ela já está bastante explícita na ópera que ficou desfigurada.

O belíssimo filme Callas, de Franco Zeffirelli recém lançado em DVD mostra que o mundo do personalismo operístico terminou com a morte da diva. As melhores produções de ópera ocorrem na Europa, sempre ousadas, com visões diferentes, mas de criação coletiva. Não se aposta mais tudo em um diretor, ou maestro, ou cantor.

O insuportável e indesculpável na pretensão mineiro-tupiniquim é que a história não estava lá. Nisto a maior falha: não há teatro, o diretor não nos conta nada e atrapalha o que seria simples.

[A volta de Piaf]

Graças à insistente Biscoito Fino, nossa melhor gravadora, Bibi Ferreira canta Piaf atualiza o sucesso da peça e faz recordar o que a atriz e diretora arranjou com o inesquecível Flávio Rangel para a tradução brasileira do musical Piaf. A encenação original da Broadway era seca, depressiva, embora forte. Rangel e Bibi transformaram a cantora em personagem integradora, voz da liberdade, com belas versões das canções originais francesas. A atualização da peça via CD prova como podemos ser bons adaptadores de textos estrangeiros, assim como a impressionante montagem de Os sete afluentes do Rio Ota que ainda está no Teatro Hilton.

[A tradução do imperialismo]

Arsênico e alfazema (CCBB São Paulo), nova montagem traduzida e dirigida pelo incansável e brilhante Alexandre Reinecke, faz uma revisão da clássica peça americana de Joseph Kesselring, filmada por Frank Capra em 1944. O texto é uma alegoria do poder norte-americano após a Segunda Guerra Mundial. Duas velhinhas aparentemente inocentes atraem solitários à sua casa-pensão para envenená-los sem a menor cerimônia. Há malucos de sobra e a encenação beira o surreal. A jovem heroína - Bárbara Paz - que entra e sai pela janela para um terreno de cemitério dá bem a idéia da inteligente extravagância! A violência tem várias facetas e uma delas pode ser a doçura. Arsênico e alfazema mostra como podemos nos enganar com a aparência, mesmo que a intenção seja evidente. As velhinhas (Ana Lúcia Torre e Denise Weinberg, sempre ótimas) nada escondem, acham tudo muito divertido, mas ninguém acredita que são capazes de tamanha atrocidade. Lições de sutileza... Impossível não rir com Ary França, nada sutil, mas hilário.

Reinecke, ao contrário de seu colega famoso, Villela, sabe contar histórias.

[O corpo do grupo]

Ganha alguns dias de leveza quem assiste ao novo espetáculo do grupo Corpo, duas obras com a coreografia de Rodrigo Pederneiras: a remontagem de Nazareth (1993) e o novo Lecuona. Os dois Ernestos - o brasileiro Nazareth e o cubano Lecuona - proporcionam uma enormidade criativa e a certeza que, com Débora Colker, estamos no melhor dos mundos de corpos dançantes. Tudo dá certo: música, cenário, vestuário e delicadeza, espantando qualquer violência e propondo o sublime via arte. Adeus violência, bem vindo ao belo.