Sempre que é levantada uma discussão sobre o cenário feminino de Esports, diversas pessoas se reúnem para dar suas opiniões. Ao longo dos debates, muitas dessas pessoas acabam repetindo certas falas que são vistas constantemente por quem frequenta esse tipo de discussão. O motivo pelos quais estas opiniões altamente controversas continuam sendo repetidas são os mais diversos: desde a ignorância do interlocutor até a legítima vontade de desvalorizar e apagar a existência de mulheres que já jogam ou que desejam jogar profissionalmente. 

Esse tipo de atitude é perigosa para a comunidade feminina como um todo porque as inverdades tendem a ser muito mais aceitas e compartilhadas que a verdade propriamente dita. Principalmente tratando-se de uma minoria frequentemente rejeitada e atacada dentro do meio dos Esports. Como a desinformação se combate com informação, o texto de hoje foi escrito no intuito de desmistificar alguns conceitos que são amplamente compartilhados na comunidade como verdades absolutas e, muitas vezes, não são.

Imagem: GirlGamer/BBL

“Mulheres não jogam”

Essa aqui é a mais clássica de todas, né? A ideia de que as mulheres não jogam e que os nicks ‘femininos’ encontrados dentro dos games são propriedade de homens que os utilizam para “farmar presentinhos” (outra falácia, inclusive) é amplamente divulgada pela internet, mesmo que comprovadamente não seja verdadehá pelo menos cinco anos. Segundo a Pesquisa Game Brasil (PGB), desde 2016, as mulheres representam mais de 50% do público gamer do país.

“Mulheres só jogam Mobile Games”

Dizer que mulheres só jogam em mobile é uma atitude duplamente mal intencionada: reproduz a ideia de que tais jogos não são considerados “jogos de verdade” e, consequentemente, que as mulheres não são “gamers de verdade”. E eu trago uma notícia bombástica para você: a sua tia que é nível 897 no Candy Crush e joga no celular é tão gamer quanto você que tem mais de 200 partidas no LoL. 

O mercado de mobile é um dos mais promissores atualmente, e alguns jogos também possuem cenário profissional, tendo como exemplo o Call Of Duty Mobile e o Free Fire, que chegam a oferecer até R$2,4 milhões em premiação. Além disso, segundo a PGB 2021, a maioria dos gamers do paísprefere jogar em smartphones (41,1%), sendo as mulheres 62,2% desse público. Embora esse número possa parecer alto, os consoles e PC não ficam muito atrás,atingindo cerca de 40% da preferência feminina cada. 

Imagem: PGB 2021

“Não existe mulher high elo”

A não ser que você tenha pagado alguma agência para realizar uma rigorosa pesquisa de público com todos os jogadores considerados “high elo” em todos os Esports existentes, eu não afirmaria isso com tanta certeza. É importante lembrar que o meio gamer não é lá muito receptivo a mulheres e que muitas delas, na intenção de evitar xingamentos e assédio, colocam nicks vistos como “masculinos” procurando se camuflar, além de optarem por não falar no chat de voz, quando existente. Juntando essas questões ao fato de que as desenvolvedoras de jogos não divulgam suas pesquisas de público, é muito difícil afirmar o gênero dos jogadores que se encontram nas melhores colocações do ranking de jogos até que eles se tornem pessoas públicas, coisa que muitos optam por não fazer.

Além disso, temos muitos exemplos de mulheres de elo alto nos mais diversos Esports. Começando pelo LoL, podemos citar Liz, Yatsu, Harumi, Lawi e Ariel, que estrearam no primeiro split do CBLOL Academy. No Free Fire, temos a Tami, que venceu a LBFF 3 pela SS Esports.No VALORANT, temos a Gamelanders Purple e a INTZ Angels, ambas equipes femininas. A jogadora de CS:GOShowliana foi, recentemente, contratada para atuar pela Dignitas, time norte americano… Não faltam provas para mostrar que esse argumento é furado.

“O cenário feminino cria segregação”

Showliana, do CS:GO, atuando pela paiN no GirlGamer Festival

Foto: Matheus Legolas/BBL

Sob uma ótica minimalista, eu também já interpretei que o cenário feminino cria segregação. Afinal, estamos separando as mulheres dos demais jogadores, certo?

Errado.

Para que a gente possa entender que o cenário feminino não segrega ninguém, é necessário compreender, primeiro, que as mulheres já são naturalmente excluídas do cenário misto, e essa exclusão acontece de diversas maneiras, vindo desde a misoginia em sua forma mais pura até a utilização de algumas das falácias (como a de que não existe mulher high elo, por exemplo) para justificar a ausência dessas mulheres no cenário misto. Além do clássico “mulher tem TPM”, que deixa subentendido que somos mais difíceis de lidar e, por isso, não seríamos boas aquisições para um time de Esports.

Partindo desse ponto de vista, fica mais fácil de entender que, na verdade, o cenário feminino cria um espaço seguro e confortável para que as mulheres possam jogar competitivamente. Outra coisa muito importante de ser lembrada é que a existência de um cenário feminino não implica na criação de um cenário masculino: o cenário misto continua sendo misto e, em tese, aberto à mulheres. Sendo assim, elas podem transitar tranquilamente entre os dois quando quiserem. 

“As mulheres preferem jogar campeonatos femininos”

VALORANT Game Changers é uma iniciativa da Riot Games para dar mais oportunidades no VALORANT

Imagem: Riot Games

Também reproduzido como a ideia de que as mulheres estão acomodadas no cenário feminino, é uma das falácias mais sem sentido que existem por um simples motivo: a lógica. Começando pelo fato de que a oferta de campeonatos femininos é bem inferior à de campeonatos mistos, com exceção, talvez, do VALORANT. Além disso, a premiação dos campeonatos femininos também costuma ser inferior. Tomando como exemplo o IEM Katowice 2019,a premiação do Major masculino totalizava US$1 milhão, enquanto a do torneio feminino era cerca de5% desse valor, US$50 mil. 

Sendo assim, realmente não existem motivos para os times femininos atuarem unicamente no seu próprio cenário. Inclusive, as equipes de VALORANT da Gamelanders Purple e INTZ Angelsparticiparam da última seletiva do VCT Challengers, embora não tenham conseguido a classificação para os playoffs.

INTZ Angels, equipe feminina de VALORANT

Imagem: INTZ

“Se os times masculinos treinarem com os femininos, o nível vai cair”

De todas as falácias reproduzidas neste artigo, acredito que a mais tendenciosa e infundada seja a ideia de que se os times masculinos treinarem contra os femininos, o nível dos campeonatos irá cair. Simplesmente porque não se desaprende conceitos tendo contato com outras pessoas. O jogador do seu time não vai desaprender a dar headshot se jogar com um time feminino, não vai esquecer a posição da smoke, não vai começar a errar o last hit na catapulta. 

É compreensível que os times masculinos não queiram treinar com os femininos porque elas podem não apresentar um desafio pela possível diferença de nível entre as equipes, mas o nível de um time só se melhora treinando. Se os times de níveis mais altos não quiserem jogar contra os times de níveis mais baixos, estes irão ficar estagnados no mesmo lugar para sempre. 

Dizer que um time masculino vai perder algo treinando com times femininos é, no mínimo, ser ignorante. É o equivalente a tirar uma nota baixa e colocar a culpa no seu amigo que não estudou. É como não conseguir subir de elo e dizer que isso acontece porque o seu time só te afunda. Soa como uma mentira muito mal contada pra mascarar o desinteresse desses times em treinar com mulheres e, consequentemente, em ajudá-las a evoluir e construir um cenário melhor para todos.

Por fim, não é feio que uma mulher prefira jogar em mobile. Muito menos que ela seja low elo. Não é errado as mulheres possuírem o cenário feminino para poder lançá-las como jogadoras, quando todas as outras portas estão fechadas. Feio é uma pessoa utilizar qualquer um desses argumentos furados para dizer que as mulheres merecem menos.

Dignitas, equipe campeã do IEM Katowice 2019 feminino

Imagem: Reprodução IEM

Juliana "Moondded" Alonso entusiasta de Esports desde 2013. Fundou a Sakuras Esports, em 2018, e depois disso não parou mais de falar e lutar pelo cenário feminino e pelas mulheres nos Esports. Você pode acompanhar mais sobre ela em @moondded nas redes sociais.