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História reescrita: Call of Duty, militarismo e revisionismo histórico

"Autoestrada da Morte" de Modern Warfare é só o mais novo exemplo de como a série reinventa o militarismo americano para o grande público

Por Fernando Henrique Silva 15.11.2019 12H00

Call of Duty: Modern Warfare, novo título da popular série de tiro da Activision, saiu no último 25 de outubro para PC, PS4 e Xbox One, prometendo reviver o prestígio da série e voltar aos tempos de quando a franquia entrou na temática de guerras modernas.

Como não poderia ser diferente, este lançamento trouxe alguns debates sobre propaganda militar e como o jogo representa os Estados Unidos e seu papel geopolítico no mundo.

Para aqueles que podem não recordar, esse tipo de polêmica envolvendo o jogo não é nem um pouco nova - Talvez tenha até arrefecido nos últimos anos, visto que a franquia partiu para tramas mais futuristas, apresentando até conflitos no espaço, mas o retorno a temas contemporâneos reacendeu uma velha discussão que nos revela que, mesmo com mais de uma década de distância, pouca coisa mudou.

Games e a "não-política"

Activision/Divulgação

Antes de mais nada, cabe apontar que a repercussão envolvendo o jogo começou a surgir antes mesmo de seu lançamento, quando a Infinity Ward afirmou que Call of Duty: Modern Warfare não era um "game político".

Segundo o diretor de gameplay Jacob Minkoff, embora o título aborde temas como colonialismo, independência e liberdade, o jogo não é político na interpretação deles, pois o jogo não está "[...]contando uma história que tem algo relacionado com um governo específico[...]. Então, se você perguntar se Trump está no game, não, ele não está".

Essa definição especialmente obtusa de política é necessária pois, além de existir uma crise de identidade na série — que deseja abordar temas mais complexos enquanto precisa criar situações de ação que façam o jogador se sentir badass —, os temas e representações precisam ser inofensivos ao público consumidor de espectros políticos diferentes, e ser alinhado à narrativa norte-americana, visto que as Forças Armadas e o Departamento de Defesa dos Estados Unidos sempre tiveram uma relação próxima (via The Guardian), financiando e auxiliando no desenvolvimento do jogo de guerra (algo que explicarei mais).

Mas o que repercutiu no pós-lançamento foi algo mais prevalente entre as demais polêmicas, e se refere ao revisionismo histórico que o jogo propõe ao atribuir à Rússia um crime de guerra cometido pelos EUA.

Em linhas gerais, o game reproduz um evento chamado de "Highway of Death" (ou "Autoestrada da Morte", em tradução livre), no qual tanto tropas iraquianas quanto grupos de civis, incluindo crianças, atravessavam a Autoestrada 80, que liga o Kuwait ao Iraque, para recuar do território kuwaitiano durante a primeira Guerra do Golfo, em 1991, sendo bombardeados durante a noite pela Marinha e Força Aérea dos EUA.

A ação das forças armadas americanas levou, em estimativa, à morte estimada de 800 a 1000 pessoas, entre combatentes e não-combatentes.

Staff Sgt. Dean Wagner/Reprodução

Entre as críticas sobre a forma como o jogo replica o evento de um lado, e comentaristas afirmando que o título "é uma narrativa ficcional" sem pretensões de ser fiel à realidade do outro, o que a história nos ensina é que a relação entre videogames e militarismo é muito mais profunda do que os eventos recentes da série Call of Duty, ou mesmo as intermináveis invasões militares norte-americanas no Oriente Médio e África nas últimas décadas.

As ligações do videogame com o militarismo

Como aponta o professor Sebastian Deterding no capítulo Living Room Wars (Guerras de Salas de Estar, em tradução livre) do livro Joystick Soldiers, guerra, jogos e simulações sempre estiveram interligados, e esta relação remete ao milenar jogo chinês Go. O desenvolvimento desta ligação se deu em alguns contextos específicos, indo do uso do xadrez como inspiração dos chamados wargames no final do século XVIII na Alemanha, até os jogos de tabuleiro de guerra durante a Primeira Guerra Mundial.

Segundo Deterding, porém, é durante a Guerra Fria que a separação entre os jogos comerciais e para uso militar se tornam turvos: "A lógica binária e a finalidade da guerra nuclear tornaram necessário calcular antecipadamente todas os passos e reações possíveis do inimigo, e jogos de simulação baseados na análise de sistemas e na teoria matemática dos jogos prometiam uma solução científica para essa demanda."

Com o desenvolvimento tecnológico, gráficos 3D e maior capacidade de processamento, novas formas de simulação foram desenvolvidas e experiências criadas em bases militares foram transformadas em produtos de entretenimento.

Um dos movimentos do exército mais estudados pela academia foi o bem-sucedido jogo America's Army, lançado em 2002 e que serviu como ferramenta de treinamento e recrutamento militar. Roger Stahl, professor do Departamento de Comunicação da Universidade da Geórgia, ainda afirma que game foi um dos experimentos de recrutamento mais bem-sucedido na história do exército norte-americano.

Propaganda de America's Army erguido durante a E3 2006

Rob Fahey/Divulgação

Segundo Randy Nichols em seu capítulo Target Acquired(Alvo na Mira, em tradução livre), também do livro Joystick Soldiers, o exército sempre utilizou jogos para treinar soldados, como o famoso caso de Doom e outros jogos como Full Spectrum Warrior e Operation Flashpoint, seria questão de tempo até que a instituição produzisse seu próprio jogo.

O que parece escapar alguns críticos atuais é que a estratégia de recrutamento do exército americano mudou após o 11 de Setembro, assim como seu discurso sobre a ameaça terrorista e o perigo que o povo norte-americano supostamente estaria correndo no mundo do século XXI.

É o que explica o professor do Departamento de Ciência Política da Universidade de Québec, Frédérick Gagnon, em seu artigo "Invading Your Hearts and Minds": Call of Duty and the (Re)Writing of Militarism in U.S. Digital Games and Popular Culture ("Invadindo Seus Corações e Mentes": Call of Duty e a (Re)Visão do Militarismo em Jogos Digitais e Cultura Popular dos EUA, em tradução livre), ao investigar como o agora clássico Call of Duty 4: Modern Warfare alimentou os "medos, ansiedades e inseguranças" que fizeram e fazem parte do discurso vigente nos EUA.

Esses temores foram reforçados durante anos pelo governo de George W. Bush, que afirmava constantemente a presença de "centenas de terroristas" que não hesitariam em lançar bombas nucleares nos EUA, e que era um dever do país policiar o mundo e levar democracia a estes territórios.

Anos depois, sabemos bem qual foi o resultado dessas invasões "justificadas" ao Iraque e Afeganistão.

O deserto do real

Jogos como Call of Duty exercem um importante papel em borrar os limites entre realidade e representação. A proximidade entre guerras virtuais e conflitos reais vai de encontro às ideias do filósofo Jean Baudrillard que, entre suas contribuições, defende que a pós-modernidade se caracteriza pela indefinição entre real e virtual, uma perda do referencial original que resulta no simulacro, ou seja, a simulação que substitui o real. Isso se torna mais evidente ao compararmos que, enquanto os aparatos tecnológicos utilizados pelo exército para realizar operações são hardwares de videogames como controles de Xbox 360 (via Kotaku), nós executamos as mesmas ações simuladas em nossas TVs e monitores.

Veja, por exemplo, uma das fases do Modern Warfare original, onde é preciso neutralizar inimigos via um avião AC-130. Conforme o próprio diretor do game, Jason West, comentou na época: "Meu veículo favorito em Call of Duty 4 [...] é o AC-130 Spectre Gunship porque, quero dizer, quando você vê esses vídeos na web [de operações do exército], eles se parecem com isso. Quero dizer, você está no avião militar... você sabe ... usando os canhões ... aniquilando qualquer coisa em seu caminho".

A diferença entre a simulação de uma guerra e a guerra real está cada vez mais turva e promete se intensificar, como vimos recentemente com a Microsoft fechando um acorde de 480 milhões de dólares na venda de 100 mil óculos de realidade aumentada HoloLens para treinamento e combate do exército norte-americano, sob protesto de funcionários.

A inclusão de óculos de realidade aumentada no equipamento de soldados pode alterar significativamente a relação deles com a guerra, como já foi apontado anos atrás no uso de drones em ataques aéreos (via The Guardian), que são realizados remotamente através de uma interface muito parecida com um videogame.

A desconexão entre o soldado e suas ações em terra certamente garante mais segurança, porém retira qualquer traço de humanidade existente do outro lado da tela, higienizando conflitos e oferecendo uma experiência dessensibilizada, que não reconhece os horrores da guerra, em um processo muito semelhante ao que jogos como Call of Duty reproduzem.

Reescrevendo a história

Gagnon, em seu artigo, argumenta que a série Call of Duty reescreve a história usando o conceito de "geopolítica de tabloide", que ficou popular após o 11 de setembro: um modo de gerar significados e verdades sobre política nacional e internacional com conceitos sensacionalistas e especulativos que se sustentam na construção de imagens de medo e destruição da sociedade como a conhecemos.

Neste sentido, as tramas do game reforçam o discurso governamental de que os EUA estão em guerra contra os "centenas de terroristas" espalhados pelo mundo. Isso fica evidente em como ele representa as nações e população do Oriente Médio – terroristas e governos ditatoriais –, colocando o jogador para lutar em territórios destruídos e completamente desprovidos de uma população civil, contribuindo para a ideia de que "lá só existem terroristas".

Além disso, o game também representa a Rússia como "patrocinadores do terrorismo" e, na figura do vilão Imran Zakhaev, mostra que os russos seriam capazes de recomeçar uma guerra nuclear contra os EUA. Modern Warfare 2, lançado em 2009, intensifica esta narrativa e apresenta uma trama na qual a população russa é convencida de que um ataque terrorista foi liderado por um agente dos EUA, apoiando assim um ataque em solo norte-americano. O maior temor criado pelo discurso cultural se torna realidade dentro do jogo.

Activision/Reprodução

As questões envolvendo videogames e guerra vão além dos tópicos abordados neste texto, mas o que busquei evidenciar é que esta relação não surgiu nesta década — nem mesmo neste milênio — e que não é novidade para Call of Duty reproduzir um discurso pró-militarismo. Talvez a crise política que estamos vivenciando por todo o mundo nos deixe mais alerta a velhos movimentos ou talvez a polêmica com a Autoestrada da Morte teria sido igual em 2007.

No entanto, o importante é ressaltar que revisionismo não é a única forma com a qual a série da Activision exalta um ideal de soldado dos EUA, mas ela também reproduz uma visão de guerra higienizada, onde as consequências do conflito se limitam a inimigos sem nome mortos ou uma tela preta com frases fora de contexto de figuras famosas. Não existe o horror de como um corpo se despedaça ao ser explodido, os civis mortos durante conflitos, o caos humanitário decorrente das ocupações e migrações em massa, e muito menos os danos psicológicos que soldados são submetidos ao terem de lidar com amigos mortos, medo constante da morte e atrocidades que cometem em nome do Estado.

Call of Duty é uma simulação, uma fantasia de um soldado imortal e ideal que se infiltra em nosso imaginário. Mas não tome esse texto como algo alarmista ou mesmo conspiratório. Modern Warfare é apenas um dos elementos culturais que permeiam nosso dia a dia e reproduzem tal discurso, ele não é capaz de mudar o que pensamos sozinho, no entanto ele tem um papel dentro do discurso vigente que coloca o "Ocidente" – ou seja lá o que isso signifique – em risco de ser destruído por inimigos externos. Isso resultou em candidatos eleitos apoiados numa retórica xenófoba e ultranacionalista não apenas nos EUA, mas também no Brasil e Europa.

A franquia talvez tenha o potencial de fazer você "amar a bomba" e abraçar o militarismo mas, como afirma o professor de Estudos Étnicos Comparados e Estudos Americanos David Leonard, cabe aos educadores, escolas e – principalmente – jogadores a "pensar em maneiras de usar videogames como meios de ensinar, desestabilizar e elucidar a forma pela qual os jogos empregam e implantam conceitos raciais, de gênero e nacionalidade, muitas vezes reforçando ideias dominantes e de status quo".

É claro que jogamos principalmente porque é divertido, pelo entretenimento após um longo dia de trabalho ou estudo. Porém, é preciso pensar criticamente sobre os games para que possamos analisar os discursos reproduzidos nestes objetos, e poder apontar as implicações no nosso dia a dia cada vez mais permeado por signos militares e a naturalização da violência do Estado, promovida por líderes políticos e presente nas ruas, jornais, TV, cinema e (sim) videogames, permitindo que a população seja capaz de lutar por uma realidade mais pacífica, onde guerras, invasões e genocídios possam existir apenas na ficção.