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A guerra nua e crua de Bury Me, My Love

Jogo faz você vivenciar o terror da população síria ao controlar refugiada em busca da sobrevivência

Por Nelson Alves Jr. 30.03.2020 17H09

"Quando criei a The Pixel Hunt, tinha um objetivo claro: criar e produzir jogos inspirados na realidade", explica o ex-jornalista francês e agora produtor de jogos Florent Maurin. O título inaugural do estúdio, Bury Me, My Love, termo árabe equivalente a "cuide-se bem", nasceu baseado na guerra civil da Síria, cujo início remonta a 2011.

De lá para cá, cerca de 380 mil pessoas morreram no confronto, sendo 115 mil civis, de acordo com o Observatório Sírio para os Direitos Humanos. Dos 18 milhões de habitantes, metade fugiu do país desde o início do conflito. Dentre as incontáveis histórias de refugiados, uma chamou a atenção de Maurin: dois migrantes que relataram a fuga do país via WhatsApp aos familiares. A história virou matéria do jornal Le Monde, o principal periódico da França, que reproduziu cada mensagem trocada nos meses que duraram o trajeto.

"Eu não queria fazer um videogame "normal", no qual você controlaria diretamente um migrante como uma marionete. Foi quando eu me deparei com o artigo do Le Monde e achei que isso seria uma base incrível para uma ficção interativa", explica Maurin em conversa por email com o The Enemy.

Dado o ponto de partida, a equipe desenvolveu um jogo visceral e impactante. Com base em conversas com vários refugiados sírios e documentários, a narrativa mostra os passos da expatriada Nour, que sai da cidade de Homs, localizada a 160km da capital Damasco, em busca de moradia na Europa. As decisões na viagem são tomadas em conjunto com o marido Majd via troca de mensagens instantâneas. Ele permanece na Síria para cuidar da mãe e da avó.

The Pixel Hunt/Divulgação

A aparente simplicidade se torna um terror à medida em que o jogador percebe quão nefasta a situação realmente é. Cada diálogo escancara uma realidade cruel, e suas decisões se tornam um fardo impensável, até o desfecho que equivale a um soco no estômago.

Confira a entrevista abaixo para saber mais de como este game tão chocante foi desenvolvido, seu impacto com o público (e até como ferramenta educativa) e suas chances de ganhar uma tradução em português do Brasil:

The Enemy: Bury Me, My Love foi inspirado em uma história real publicada no Le Monde. Você pode explicar exatamente como a idéia surgiu e qual era seu objetivo com o jogo?

Florent Maurin: Quando fundei a The Pixel Hunt, tinha um objetivo claro: eu queria criar e produzir jogos inspirados na realidade. Como ex-jornalista, o conceito era interessante para mim e pensei que poderia ser para outras pessoas também. Então comecei a pensar nos tópicos que seriam interessantes para um primeiro jogo independente e, é claro, a questão das migrações forçadas nas portas da Europa se destacou rapidamente. O tópico já estava em todas as notícias e eu realmente pensei que não era tão bem abordado pela grande mídia. Mais especificamente, eu acreditava que seria importante enfatizar mais que cada migrante tem sua própria história pessoal e íntima, e que eles devem ser considerados pelo que realmente são: pessoas. Mas eu não sabia para onde ir. Eu não queria fazer um videogame "normal", no qual você controlaria diretamente um migrante como uma marionete. Foi quando eu me deparei com o artigo de Lucie Soullier no Le Monde e achei que isso seria uma base incrível para uma ficção interativa.

The Enemy: O objetivo foi alcançado?

FM: Acredito que sim! Mas não cabe a mim julgar isso. O que quero dizer é que não fiz o jogo com o estado de espírito de um ativista. Eu não queria "convencer" pessoas / jogadores de nada. Não acho que seja meu lugar ou função. Existem excelentes ONGs que fazem um trabalho tremendo no terreno, esses são os verdadeiros ativistas, essas são as pessoas que realmente mudam o mundo. Meu lugar, acredito, é contar histórias, fazer com que as pessoas se importem com uma realidade que é tão fácil - e muito mais confortável - ignorar. E acho que pelo menos parcialmente conseguimos esse esforço.

The Enemy: Além do material de Le Monde, que outras pesquisas você e sua equipe fizeram para criar o jogo?

FM: Bem, a primeira e mais importante é que entramos em contato com Dana, a mulher de que trata o artigo do Le Monde. Ela imediatamente concordou em nos ajudar e, através do WhatsApp, pudemos fazer a ela todo tipo de pergunta sobre sua experiência. Ela também leu todo o roteiro do jogo e nos mandou reescrever várias partes dele. Mas também contatamos outros migrantes, lemos vários artigos, assistimos documentários, consultamos livros e até histórias em quadrinhos sobre o assunto. Em poucas palavras, tentamos reunir uma documentação tão grande e extensa quanto possível.

The Pixel Hunt/Divulgação

The Enemy: Segundo você mesmo, jogos inspirados na realidade visam, entre outros aspectos, gerar empatia no jogador em relação a situações limítrofes. Isso funciona ou ainda é uma utopia?

FM: Mais uma vez, não cabe a mim afirmar nada. Mas eu estaria inclinado a acreditar nisso, porque A) os jogos podem ser máquinas de histórias e nós humanos simpatizamos muito com as histórias, e B) a mecânica de jogo pode ser usada para transmitir emoções e estados mentais específicos. Por exemplo, vários jogadores me disseram que o fato de BMML ser configurado para ser reproduzida em tempo real funcionava muito bem, porque quando eles esbarravam em momentos em que não recebiam notícias da Nour por muito tempo, ficavam muito preocupados. Até a irmã de Dana, que viveu a mesma situação que o personagem principal do jogo, disse que se sentia superpreocupada. Portanto, se alguém que realmente esteve no barco de um contrabandista, temendo por sua vida, pode ser movido por um jogo sobre o assunto, acredito que qualquer um pode.

The Enemy: Quão madura é a indústria de jogos para absorver jogos como o seu? E quando digo a indústria, quero dizer não apenas quem produz, mas também quem consome.

FM: Hmmm, reunimos muitos prêmios e indicações, então eu diria que acredito que a indústria anseia por jogos como o BMML. As pessoas que fazem jogos estão muito interessadas em histórias que ultrapassam os limites do meio. E acho que foi isso que a BMML modestamente tentou fazer. Sobre o público, ainda é complicado alcançar um grande público, porque acho que para a grande maioria das pessoas (e não estou falando apenas de jogadores aqui), os jogos estão associados a uma diversão trivial e irracional. Então, quando você se deparar com algo chamado "Bury Me, My Love", e sua premissa é contar a história de um migrante sírio, entendo muito bem que você pode se sentir um pouco inquieto. Mas ainda assim, todas as plataformas se misturam, graças a vendas e operações como essa, acredito que mais de 100 mil pessoas o jogaram desde o final de 2017. Nada mal!

The Pixel Hunt/Divulgação

The Enemy: Na sua opinião, qual seria a evolução natural dos jogos inspirados na realidade?

FM: Eu ainda estou pensando sobre isso! Nosso próximo jogo, por exemplo, não é sobre notícias. É sobre uma mulher que vive o dia mais importante de sua vida e tenta não estragar as coisas. No entanto, para mim, ainda é um jogo inspirado na realidade, porque discute questões muito reais, como a busca da felicidade e a maneira como as pessoas superam os traumas. Eu acho que, como literatura ou cinema, os jogos podem nos ajudar a progredir na vida, expondo-nos às experiências de vida de outras pessoas, que são complementares às nossas. E espero ver mais jogos tentarem fazer isso no futuro!

The Pixel Hunt/Divulgação

The Enemy: Qual é a possibilidade de jogos como Bury Me, My Love, Through the Darkest of Times ou This War of Mine tornarem-se material educacional nas escolas? Ou são coisas diferentes e não devem ser misturadas?

FM: Sei que alguns professores usam o BMML na escola e acho ótimo! Eu não sei muito sobre de que maneira isso é feito, no entanto. O que posso dizer é que não projetamos o jogo com esse uso em mente, mas certamente não tenho nada contra.

The Enemy: É muito caro traduzir um jogo? De um modo geral, como você decide em quais idiomas o jogo será lançado: trata-se apenas do dinheiro envolvido ou do mercado a que se destina? Eu pergunto porque, especificamente no Brasil, existe uma enorme barreira chamada inglês. Cerca de 5% da população entende o idioma e menos de 3% é fluente. Este não é um problema seu ou de qualquer outro desenvolvedor, mas de anos de negligência por parte de nossas autoridades públicas. Por outro lado, com 211 milhões de consumidores em potencial, qual seria a maneira de tornar jogos como o seu acessíveis aqui?

The Pixel Hunt/Divulgação

FM: Sim, é supercaro traduzir um jogo. BMML tem 115 mil palavras. Se você deseja pagar um tradutor adequadamente, deve fornecer pelo menos dez centavos de euro por palavra (e isso é para iniciantes, porque tradutores experientes recebem de 12 a 15 centavos de euro por palavra). Portanto, o orçamento é de pelo menos 11.500 € por idioma - e isso inclui apenas a própria tradução, não a integração ou qualquer outra coisa. Por isso, tivemos que fazer uma escolha e, como nosso principal objetivo eram nossos concidadãos europeus, seguimos com as cinco línguas mais faladas da Europa. É triste que o português não estivesse entre eles, mas não temos dinheiro suficiente para fazer mais idiomas.

Bury Me My Love está disponível para PC, iOS, Android e Nintendo Switch.