O piso-rouxinol

Lian Hearn
A relva por travesseiro

Lian Hearn

O Omelete entrevistou Lian Hearn, a escritora da trilogia A Saga Otori. Ambientados numa versão fictícia do Japão feudal, os livros contam a história de Tomasu, um garoto que, após o massacre de sua aldeia, é adotado por um lorde local, Shigeru Otori. Conforme passam os meses, ele descobre que tem poderes especiais e envolve-se em rituais, crimes e conspirações. Lançado na Austrália em 2002, o primeiro volume da Saga já foi publicado em dezenas de idiomas e teve seus direitos comprados pela Universal Pictures, que pretende adaptá-lo para as telonas.

Leia aqui a nossa resenha do livro e confira abaixo o ótimo papo com Lian Hearn.

Há uma regra que diz que o escritor deve escrever sobre aquilo que conhece. Como ela se aplica a uma britânica escrevendo uma história que se passa no Japão?

Acho que escritores escrevem sobre o que lhes interessa, em vez daquilo que conhecem (se escrevessem somente sobre o que conhecem, não existiria fantasia ou ficção científica).

É verdade que hesitei muito em situar minha história no Japão, e perguntei a mim mesma: tenho o direito de fazer isso, tenho conhecimento suficiente, ou só apresentarei uma visão distorcida? Decidi, então, que a primeira coisa a fazer era aprender japonês. Depois, estudaria a história e a cultura japonesa para, em seguida, passar o máximo de tempo possível no Japão. Sempre me interessei pelo país. Então, tinha uma certa base como ponto de partida.

Eu morei no cenário em que minhas personagens habitam, e trilhei os mesmos caminhos que elas. Passei, então, a conhecer as estações e o país com que eram familiarizadas. Conheço as emoções que elas sentem - as emoções humanas imutáveis do amor e da perda, vingança e perdão, inveja e admiração.

Você disse que Takeo e Kaede surgiram em sua primeira viagem ao Japão. Quanto da história deles ficou pronta naquele primeiro momento?

Foi apenas uma noção das personagens, e a voz de Takeo. Na verdade, eu tinha os quatro protagonistas, o Sr. Otori, a Sra. Maruyama também - e o conhecimento de sua jornada, mas nenhuma idéia de como seria sua história.

Você soube imediatamente que era uma boa história para um livro, ou ainda havia dúvidas?

As personagens e a voz pareceram bem fortes e insistentes, e o cenário do Japão rural me atingiu profundamente. Mas, como disse antes, eu estava cheia de dúvidas quanto à minha capacidade de escrever tal história e fazer justiça às personagens.

Embora tenha dito que a história e os lugares saíram de sua imaginação, sem veracidade histórica, você também afirmou que muitos elementos vieram do Japão feudal. Quanto você conhecia daquela época e do ambiente quando Takeo e Kaede surgiram naquela primeira viagem?

Eu sabia o suficiente para ter consciência de que o Japão feudal era uma sociedade extremamente complexa que seria muito difícil apresentá-la num romance verdadeiramente histórico - e possivelmente tão distante que seria inacessível a um leitor ocidental. Ao escolher o formato de fantasia histórica, conquistei a liberdade de introduzir elementos que não são estritamente históricos (a herança das terras Maruyama por intermédio da linhagem feminina, por exemplo). Entretanto, como estava escrevendo sobre uma cultura que é muito forte e dinâmica, e muito importante para mim, tentei manter alguma verdade em cada invenção. A cultura Heian dos séculos X e XI tinha de fato uma influência feminina muito maior do que a guerreira que a substituiu, e as mulheres tinham menos liberdade no final do período medieval do que em seu início. Minha história é baseada no período Sengoku (Feudos Guerreiros), mais ou menos ao final do século XV, mas não foi construída para corresponder a essa época. Seria errado tentar encontrar qualquer momento histórico em minha trama, ou tentar fazer qualquer analogia com eventos reais. Por exemplo, Yaegahara não representa a batalha de Skigahara: o sufixo -hara significa planície e, portanto, está ligada à vários campos de batalha.

Você fez toda a pesquisa previamente ou escreveu um esboço da narrativa para depois buscar dados e construir seu país e personagens coadjuvantes?

Eu passei seis ou sete anos antes de começar a escrever, lendo e pesquisando e fazendo muitas anotações. Depois, pus tudo isso de lado e tentei esquecer, escrevendo a história sem nenhuma referência a esses dados, sem nenhum plano. Quando finalizei o primeiro esboço (de todos os três livros, manuscritos), fiz uma planta como um grande mapa, li minhas anotações novamente e introduzi coisas que pareciam relevantes e que enriqueceriam a história. Eu escrevo de modo instintivo, e tento sugerir uma atmosfera por meio de referências sutis.

Como você criou a "Tribo"? Ela foi baseada em uma organização real?

Algumas idéias para a Tribo vieram dos ninjas e do ninjutsu, mas tentei me afastar dos estereótipos. Eu queria fazer dela uma organização muito pragmática, que controla os pontos essenciais da produção e, portanto, da economia: vinho, produtos de soja, empréstimos e atividades criminosas. Parece ser assim que grupos como a máfia ou a yakuza operam no mundo todo. Essas organizações, é claro, são muito feudais em sua estrutura e lealdade.

Os guerreiros japoneses são bastante populares, embora seu estilo de vida fosse de violência e dominação. O que a atraiu para eles a fim de que construísse personagens como Iida e Arai?

O período Sengoku, quando os guerreiros japoneses estavam lutando uns contra os outros por anos, foi, também, uma era de incríveis avanços na arte e na cultura. Suponho que esse contraste tenha me fascinado. E vemos guerreiros em muitas partes do mundo no século XXI, não somente em países onde a lei é extremamente frágil, mas também nos gabinetes dos países mais desenvolvidos.

Quanto há de realidade em Shigeru, um senhor não violento numa época de violência?

Shigeru decepa a cabeça de um homem e ataca outro na cena de abertura do primeiro volume, e passa o resto da história planejando o assassinato de seu inimigo. Está longe de ser considerado de não-violento. Todavia, como ele mesmo diz, nunca matou um homem desarmado, nem por prazer. A violência humana - o modo de encará-la, e controlá-la - é um dos temas centrais do livro. Há muitas histórias na literatura japonesa sobre guerreiros que foram vencidos pelo remorso de seus feitos e se afastaram do mundo, partindo para os templos. Assim como todas as línguas humanas, o japonês tem palavras para compaixão, piedade, desejo por justiça e paz. Essas qualidades podem ser encontradas mesmo em tempos violentos.

Kaede é uma mulher forte, determinada a ter poder, muito diferente da imagem das delicadas mulheres japonesas a que estamos acostumados. Como você decidiu lhe dar essas características?

Essa é uma imagem enganosa e banal. Eu queria escrever sobre personagens femininas fortes que tivessem maior semelhança às japonesas que conheço. Kaede foi negligenciada e mal tratada como refém, mas o resultado positivo disso é que aprendeu a pensar por si mesma e tomar conta da própria vida. Tanto em Kaede como em Takeo, eu estava interessada em escrever sobre personagens que são feridos pelos aspectos brutais de sua sociedade, que lhes diz é dessa maneira que um homem deve ser, é dessa maneira que uma mulher deve ser. Eles reconhecem um no outro a recusa a essa idéia. Por isso, sentem-se atraídos.

Trilogias parecem bem populares hoje em dia. Como você decidiu que precisaria de uma para contar sua história?

Não foi tanto uma decisão, foi mais um acidente. A história formou-se naturalmente em três partes.

Que tipo de reação você sentiu entre os japoneses? Temeu ser uma estrangeira que utilizava o país e a cultura deles para escrever sua história e ser mal interpretada?

Tive uma reação muito positiva dos meus amigos que leram os livros. E uma editora japonesa está trabalhando na sua tradução. Como disse antes, eu senti um medo considerável, mas fui encorajada pelo fato dos japoneses serem grandes assimiladores de outras culturas, e os resultados desse cruzamento são, freqüentemente maravilhosos: os filmes de Kurosawa são um exemplo óbvio. Espero que meu esforço seja, de maneira muito menor, tão maravilhoso quanto isso, e seja visto como a resposta de uma artista, uma escritora, a uma cultura pela qual sinto grande admiração e afeição.

Por que sentiu necessidade de usar um pseudônimo?

Eu quis fazer uma distinção clara entre esses livros e meus trabalhos anteriores. E, tenho de confessar, essa é uma coisa muito japonesa: mudar o nome para indicar um novo começo, um novo empreendimento na vida. Também foi uma homenagem a Lafcadio Hearn, o escritor que foi ao Japão no século XIX. Hearn significa garça, um dos símbolos chave do livro. Lian é um apelido de infância.

Foi dito que você não queria o tipo de celebridade que cerca J. K. Rowling. Você se preocupa em ficar famosa demais com o sucesso de seu livro?

É emocionante que meus livros estejam sendo lidos em todo o mundo, mas a fama não me interessa. Eu evito qualquer coisa que me afaste do ato de escrever e escrevo melhor num lugar bem isolado onde sou quase desconhecida. Sou muito discreta sobre o que escrevo e não quero ter minha atenção desviada. Acho que falar sobre minha obra me distrai muito. Por isso, não dou muitas entrevistas. (Felizmente, não acho que, algum dia, serei tão famosa quanto J.K.Rowling!)

O que podemos esperar do volume final da história de Takeo e Kaede?

Não sei se posso responder: o terceiro livro está pronto e prestes a ser impresso. Ele será publicado na Austrália e nos Estados Unidos em junho e a seguir em outros países. É o meu favorito entre os três volumes.

A Universal adquiriu os direitos de filmagem de O Piso-Rouxinol (leia aqui). Como você se sente quanto à possibilidade de ver suas personagens tomando a imagem de atores?

Acho que nunca imaginei que um de meus livros seria comprado por um estúdio de Hollywood e por um produtor famoso. Estou empolgada para ver o que farão com a trama, como vão transformá-la em filme, mas, também, apreensiva pelas personagens não serem como eu as imaginei, e que a essência da história não se traduza bem em película.