[Bons conselhos]

A série Cartas a um jovem ... da Editora Campus se propõe a dar uma visão crítica de algumas profissões para iniciantes.

Em Cartas a um jovem terapeuta: reflexões para psicoterapeutas, aspirantes e curiosos, Contardo Calligaris escreve de maneira bastante diferente da sua coluna das quintas-feiras na Folha de São Paulo. No jornal, Calligaris tem buscado um tom de corretude política e conciliação, mas, no livro, arrisca mais, baseado em sua vasta experiência como analista. Cutuca, por exemplo, psicanalistas que se recusam a saber das novidades da neurociência ou que seguem cegamente as regras das instituições às quais são filiados. Calligaris sugere que é preciso um pouco de transgressão, e a abertura de mentes via arte e cultura é uma obrigação do profissional.

Cada vez mais fluido em sua escrita, o psicanalista faz um livro que pode ser lido por qualquer curioso, especialmente aqueles que se submetem à psicoterapia.

Dificuldades: a prensa do livro impede sua abertura adequada, o que torna a leitura incômoda. Isto poderia ser corrigido nas próximas edições que certamente virão.

[Ponto G]

José Manoel Bertolote é um de nossos mais renomados psiquiatras; trabalha em Genebra pela Organização Mundial da Saúde. Em suas poucas horas vagas, traduziu A história da V: abrindo a caixa de Pandora (lançado pela nova e promissora Editora DeGustar). O original de 2003 é da escritora Catherine Blackledge, uma inglesa que trabalha com jornalismo científico.

O livro se propõe a ser o mais completo tratado sobre o órgão sexual feminino. E é. A autora apresenta anatomia, fisiologia (incluindo a sexualidade, é claro), evolução biológica, mas seu foco é basicamente o aspecto cultural da representação da vagina. Sem preconceitos, atual, divertido.

Nota bem sacada na apresentação feita pelo psicanalista Sérgio Telles: ao nascer, milhões de mulheres ainda são submetidas ao corte de seus clitóris em cerimônias bárbaras com a justificativa capenga de ser um costume religioso. O curioso é que a mulher não decepada sente-se não pertencente ao grupo sexual e tem vida social igualmente amputada! O social se impondo ao sexual: pertencer é mais importante que gozar!

[Explosões recentes]

O aguardadíssimo How to dismantle an atomic bomb, novo CD de U2 chegou às lojas sob uma enormidade de críticas negativas.

A maioria esperava novidades, coisa que o grupo não trouxe. Para quê? Quando se diz que Caetano Veloso ficou chato talvez seja por sua mania de querer ensinar de tudo para todos, de representar o moderno. Sabe aquele professor careta que tenta dar uma de bacaninha e se "entchurmar"? Deu no que deu. Seu último disco passou batido, sem impacto. Esperamos dos professores alguma novidade, uma luz que Caetano não trouxe.

A turma de Bono não faz promessas. Desde Pop, U2 assumiu que almeja o sucesso, mega-shows, prêmios, a mal-falada música comercial. Não se interessa mais em protestar via música. O fato é que o conjunto nunca pode ser chamado de banal. A cada disco (All that you cant leave behind também recebeu duras críticas em seu lançamento), manda um sucesso ao Olimpo do rock.

Se desta vez não temos um Beautiful day - ainda dos maiores antidepressivos da música -, o novo CD traz promessas que certamente chegarão de fininho, fazendo bem aos ouvidos mais atentos. E tem a guitarra do The Edge...

[Velhos não tão doces e ainda bárbaros]

Com o relançamento do velho filme de Job Tom Azulay de 1977 sobre a turnê do show Doces bárbaros, nos cinemas, a Biscoito Fino, nossa mais interessante gravadora, lança o DVD Outros (doces) bárbaros filme de Andrucha Waddington de 2002.

O quarteto baiano Bethânia, Gal, Gil e Caetano estão lá, desnudos como poucas vezes. Há poucas cenas das duas apresentações do show propriamente dito. O curioso e atraente está no processo de ensaio: Gil competentíssimo na direção musical, orientando, fazendo arranjos e quase compondo em cena! Gal com cara de sono, Bethânia mal-humorada... Enfim, nenhuma novidade. Surpreende a agressividade de Caetano com os repórteres na coletiva: chega a chutar o ar em ameaça tola a quem se arrisca a perguntar da hegemonia do grupo!

Ao vivo, o show de 1976 tinha tudo que não tem aqui: espontaneidade, vontade de dizer e fundamentalmente uma honestidade ingênua. A apresentação recente teve ar de coisa encomendada, caça-níquel ou compromisso com o patrocinador, o poderoso grupo Pão de Açúcar. Não era bom e não fez sucesso.

Em Sampa os deuses, Tupã incluso, castigaram o público com uma chuva diluviana que alagou o Ibirapuera! Mas, ao contrário do show de dois anos atrás, o DVD vale a pena: bem selecionado, ângulos interessantes e excelente som. Músicos de primeiríssima linha acompanham os cantores, que sequer decoraram ou melhor redecoraram as letras. Liam-nas assim como suas entradas na partitura frente a eles.

Momento hilário: Bethânia, embriagada no avião de volta ao Rio, rindo com o copo de cerveja na mão, leve e solta... Lembrava até a turma de 1976...

[Mínimo e sublime]

30 anos.

MPB especial de 1973 traz em DVD um dos programas mais reprisados da televisão brasileira. Foi pouco. Ensaio foi um marco.

Produzido por Fernando Faro para a TV Cultura, a apresentação do artista era intermediada por uma entrevista em que a pergunta nunca era escutada pelo espectador. A sacada, genial, fazia funcionar nossa cabeça para costurar depoimento, música e a tal suposta pergunta.

Este especial de Elis Regina é uma obra-prima. A cantora explode em sua maturidade como artista e cidadã comum. Nunca foge de sua história e nos ensina sobre nossa própria história via música. É difícil deixar de comparar com o meio artístico atual em que adolescência e rebeldia tardia tola predominam. Ao que assistimos é uma mulher e não uma garota que não quer crescer para o público. Vai-se a ingenuidade dos tempos, mas a ironia atual e o "tudo é possível" certamente tornaram superficiais as reflexões de nossos talentos.

[Explosões antigas]

20 anos.

É a idade do texto de Angels in America, que agora sai completíssimo em DVD pela Warner, depois de recentemente ser exibido em capítulos pela HBO e dirigido por Mike Nichols.

Compre.

De mudanças históricas efetivas, apenas a AIDS foi segurada pelos coquetéis.

A peça originalmente encenada na Broadway trata do surgimento desta doença e de suas repercussões na sociedade americana por alguns de seus representantes: negros, judeus, protestantes, mórmons. O ponto de vista é político. A escolha do autor é pela simpatia ao partido democrata, repúdio ao republicano e apoio aos negros e homossexuais. A AIDS é vista como um sinal divino que provocará o fim da hipocrisia. Um dos protagonistas, representantes da linhagem tradicional de protestantes brancos americanos é gay e está à morte (Justin Kirk, fantástico). Em meio a crises de diarréia e o abandono de seu amante que não suporta o convívio com a doença, ele é convocado a ser o profeta dos novos tempos.

A primeira parte da saga (O milênio se aproxima) termina com o anúncio do implacável anjo - feito de forma esplêndida por Emma Thompson - para que o "iluminado" Kirk pare de se lamentar e se responsabilize por sua doença e pelo anúncio à sociedade das mudanças dos tempos.

[Religião inútil]

Na segunda parte (Perestroika), o anjo retorna para explicar suas intenções. A atmosfera onírica da primeira parte dá lugar a um intenso debate entre os protagonistas sobre a situação atual da sociedade.

O texto é implacável quanto à responsabilidade pelos atos das personagens. O namorado de Kirk, judeu típico de Nova York, quer se aproximar novamente do amante, mas não é perdoado por tê-lo largado. Seu novo amante é um advogado mórmon (Patrick Wilson) que trabalha para Roy Cohn (Al Pacino), a única personagem da peça que realmente existiu. Foi um conhecido promotor que ajudou a mandar o casal Rosenberg para a cadeira elétrica por suposta espionagem favorecendo a antiga União Soviética.

Tanto o mórmon - homossexual não assumido que inferniza a vida da esposa que se droga - como Cohn (que morre de AIDS, mas nunca assume a homossexualidade) não são poupados pela fúria da caneta de Tony Kushner, o autor da obra. Da mesma maneira, nenhuma religião oferece conforto para os novos tempos. Meryl Streep faz a mãe do mórmon, uma típica representante desta religião, mas que se transforma pela rica experiência humana que Nova York pode proporcionar. Só há uma saída para as sofridas personagens: reciclar-se como material humano e formar novos grupos, novas famílias.

Angels in America foi feito para a TV à cabo, mas poderia ser exibido no cinema. Tem o formato das grandes telas. Junto com Kill Bill Volume 2 e Brilho eterno de uma mente sem lembranças, os melhores do ano.

Já dissemos lá em cima, repita-se: compre! É imperdível.

[Uma fábula sublime]

Em récita recente, poucos afortunados viram e escutaram Orfeo, de Cláudio Monteverdi, considerada a primeira ópera da história.

Musicalmente muito interessante, a transposição do maestro Abel Rocha para a Banda Sinfônica com alguma das melhores vozes brasileiras do momento. Paulo Szot, nosso melhor barítono e Celine Imbért, magnífica, dominaram o competente elenco.

Tanto estardalhaço ao esfarrapado Lohengrin do Municipal e quase não se notou este preciosíssimo espetáculo. Numa única noite de novembro quem esteve no Sérgio Cardoso pôde testemunhar o resultado positivo de uma direção segura, planejada e discreta da programação deste teatro. Viva Vicente Amato Filho, que surge só por sua competência e deixa a extravagância aos outros.

"As águias deixam que os passarinhos cantem,
sem nenhuma preocupação com seu trinado
alegre, certas de que com a sombra de suas
asas poderão reduzi-los ao silêncio


"
Titus Andronicus

Shakespeare