Demorou algum tempo para que a "Fase Dois" da remodelada coluna Game Ovo ficasse pronta. Desta vez, porém, não vamos jogar a culpa no excesso de trabalho, no trânsito, no aquecimento global ou coisa do tipo. A coluna levou algum tempo pra sair porque foi até Montreal, no Canadá, para iniciar a série das prometidas discussões sobre videogames e seu impacto na arte, indústria e cultura.

Estivemos na bela cidade francófona para uma visita ao estúdio da Electronic Arts local. Se você não sabe, o país da América do Norte é um dos mais importantes pólos de desenvolvimento de jogos eletrônicos do planeta. A EA Montreal, porém, é relativamente recente. Seu primeiro game foi Boogie, seguido pelo mais importante Army of Two, um jogo de tiro colaborativo. Agora, o estúdio está em expansão e em breve embarcará em novo produto, ainda secreto.

Fomos recebidos por lá por Matt Turner - co-produtor de Army of Two - na "popcorn room" (sala da pipoca), outrora um espaço para reuniões que foi transformado em sala de game, com poltronas confortáveis, dois monitores de alta definição com 50 polegadas cada, som surround e todos os consoles existentes ligados a eles. Sim, um verdadeiro paraíso.

Egresso da TV, Matt começou nossa longa conversa (foram três horas de jogatina e muito papo) dizendo que não sentiu muita diferença em sua mudança de mídia. "O negócio é mais ou menos o mesmo, solucionar problemas. A indústria é muito diferente, mas o gerenciamento da equipe e opinões é essencialmente idêntico". E não tem como não ser mesmo. Conforme os games ficam mais e mais elaborados e caros para serem feitos vão assumindo status de verdadeiros blockbusters.

Expliquei ao nosso anfitrião, enquanto ele preparava uma partida - cooperativa, claro - de Army of Two, a intenção da coluna Game Ovo: Discutir aspectos menos técnicos e mais criativos e mercadológicos dos videogames. "A indústria está evoluindo muito em todos esses sentidos", empolgou-se. "Pare pra pensar no que os games eram e no que são hoje. Usemos como exemplo Grand Theft Auto IV [que havia saído naquela semana]. É um salto. É um jogo centrado em um personagem, uma forma de arte totalmente nova, um tremendo avanço. Você precisa desenvolver o personagem e ao mesmo tempo dar espaço para que o jogador também o desenvolva".

E a própria EA parece estar fazendo isso com Dead Space - ou ao menos o discurso está corretíssimo. A cada vez que ouvimos falar do jogo palavras como "roteiro", "arte" e "narrativa" surgem. Os games estão aprendendo, finalmente, a se estabelecerem como narrativa não-linear interativa e começando a tatear as fronteiras dessa mídia. "Sem dúvida, coisas que não eram tão relevantes no nosso negócio agora são centrais no desenvolvimento de novos games. Roteiristas estão contratados full time e têm pela frente um desafio duplo, criar algo tão interessante quanto um filme mas que ao mesmo tempo tenha um conjunto de regras diferente, mais dinâmicas e inserindo o elemento da interatividade. Há uns anos o roteirista era terciário, hoje é peça crucial, o que está atraindo gente cada vez mais talentosa pra cá".

O desenvolvimento da tecnologia, porém, também foi um ponto importantíssimo nessa evolução. Afinal, poucos, muito poucos, conseguiram estabelecer uma relação jogador-personagem contando com uns poucos pixels empilhados. Hoje, com o poder de processamento dos consoles e computadores e cada vez mais verba de desenvolvimento, podemos acompanhar personagens realistas, o que facilita essa relação. "Aos poucos estamos caminhando para um sentimento cinemático nos games e os personagens importam cada vez mais em todos os sentidos, visual e interior", lembra Matt.

Ao mesmo tempo que a indústria dos games progride, porém, o prestígio que ela tem na grande mídia segue bastante inferior ao que outras indústrias - muito mais antigas, claro, mas ainda assim menos lucrativas - desfrutam. Temos astros da música em capas de revistas, temos atores e atrizes, diretores e programas de televisão, mas onde fora das publicações especializadas estão as capas estampadas pelos grandes jogos eletrônicos? Quando é que games estamparão as capas de jornais ou serão assunto de noticiário senão com o velho ângulo da caça às bruxas? "É uma questão de tempo... Qual será o game que conseguirá romper a barreira do mainstream?", contempla o produtor. "Essas publicações, por mais modernas que sejam, tendem a jogar com segurança, orbitar o universo que já conhecem". Mas se games como Grand Theft Auto IV, Guitar Hero e Rock Band ultrapassam essas barreiras, debutando singles e contando com trilhas sonoras maiores que qualquer longa-metragem (só GTA IV tem 200 músicas!!), qual seria obstáculo à recíproca?

"Acho que isso se deve em parte aos rótulos que jogadores de games receberam no passado. Geeks, nerds... você sabe como é, não?". Perfeitamente. "Ninguém queria levar a sério esse meio. Mas agora não tem muito jeito... A mídia tem que levar a sério os games pelo tamanho da indústria e o volume de público que a mídia atingiu e a própria convergência das mídias do entretenimento. Não há argumento que negue que os games são uma nova forma de arte contemporânea", afirma o produtor. "Não que os primeiros games não fossem, afinal, havia um pioneirismo ainda mais empolgante no começo, claro", acrescenta. "E há todo o barulho de bastidores, tal filme tem o astro A, o astro B, é dirigido por C... até pouco tempo era bem difícil comparar isso com um sujeito que pulava na cabeça de cogumelos. Ninguém se importava. Mas agora é uma forma de arte orgânica, que evolui a todo instante".

Será que a ausência de programas de qualidade e colunas em publicações mainstream também não colaboram nesse atraso? Ou talvez a carência de premiações, sempre grandes campeãs de audiência? Acredito que seria uma maneira de alçar grandes criadores, gente que apenas jogadores hardcore e a indústria conhecem, à condição de criativos em pé de igualdade com Steven Spielberg, Martin Scorsese, Peter Jackson... "Os prêmios existem, mas sua divulgação é ínfima, as pessoas não se importam com os talentos dos videogames - mesmo que o trabalho de um diretor de arte seja o mesmo no cinema ou nos jogos eletrônicos. Uma saída para isso, algo que já está sendo feito, é a contratação de gente já conhecida de outras mídias para a nossa. Dubladores, por exemplo, são cada vez mais famosos. Isso trará mais notoriedade", afirma

Assim os games vão se aproximando de um ponto de virada cultural - afinal, representam uma evolução das técnicas narrativas. Sai a linearidade (por mais que Tarantinos e Nolans consigam embaralhá-la na tela grande) e entra o fator "jogador", que está ganhando poder para efetivamente mudar os rumos da história que joga, tornando-se ao mesmo tempo personagem e co-roteirista, verdadeira metalinguagem digital.

A Coluna GameOvo volta na próxima semana com a continuação dessa conversa - que ganhou o reforço da designer-chefe do conteúdo de download de Army of Two. Mantenha-se omeletado.

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