Desde seu anúncio, em 2016, The Last of Us: Parte II vêm sido vendido por seus criadores como uma história de ódio. Já nas primeiras horas de sua campanha, é bem fácil captar a mensagem da Naughty Dog com a continuação de um dos jogos mais aguardados do PlayStation 4, mas eu não esperava que o jogo me fizesse refletir tanto sobre esse sentimento.

Falar de ódio não é exatamente novo (nos tempos em que vivemos, é mais do que corriqueiro). Retratar violência, idem, especialmente nos jogos, onde a violência é instrumento de diversão, usada das mais variadas formas, e meio para os mais diversos tipos de mensagem. Mas poucas vezes eu vi o ódio ser retratado em um jogo de forma tão crua, tão visceral e, ao mesmo tempo, tão complexa, das causas às consequências.

O ódio em The Last of Us: Parte II está aí. É um sentimento que existe e com o qual temos que lidar, dia após dia. Temos que lidar sozinhos, em grupo, em sociedade. O ódio está nos botões que apertamos, que desencadeiam os golpes desesperados da protagonista Ellie em seus inimigos, sejam eles humanos conscientes, sejam eles dominados pelo fungo cordyceps que acabou com a civilização como a conhecemos. Está nas conversas que temos com uma miríade de personagens, de aliados a inimigos. Está enraizado na nossa consciência.

Mas o que vamos fazer com tanto ódio?

Essa é a pergunta que The Last of Us: Parte II vai te fazer, do início ao fim, durante suas mais de 25 horas de jogo, em um contraste marcante com as aventuras mais herméticas criadas pela Naughty Dog na última década.

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O ódio tem um motivo para existir, e para entendê-lo em The Last of Us: Parte II, é preciso conhecer seus personagens. É impossível entender, em sua plenitude, a mensagem que o jogo quer passar sem compreender e, principalmente, sem se importar com Ellie e Joel, os protagonistas que veem seus papéis invertidos na continuação - ele era jogável no primeiro jogo, e ela no segundo.

(Em outras palavras, esse foi um jeito empolado de dizer que você não devem nem pensar em jogar a Parte II sem antes terminar a primeira).

A história da relação entre estas duas pessoas, tão marcadas por tragédias pessoais (a dele, a morte da filha na noite do surto que iniciou a derrocada da civilização; a dela, uma perda trágica seguida da descoberta de ser a única humana conhecida imune ao cordyceps), foi o trabalho que alçou a Naughty Dog ao panteão de grandes elaboradores de personagens dos videogames, e o motivo pelo qual a continuação é tão aguardada.

É impossível entender The Last of Us: Parte II sem se importar com seus personagens

É um aspecto curioso, já que The Last of Us vai na contramão do que se vê até hoje na indústria de games (especialmente entre os jogos com orçamentos milionários), mais propenso a transformar a natureza interativa do meio em parques de diversão onde tudo é possível e as consequências são inexistentes. Neste trabalho tão seminal, a Naughty Dog rejeita esse papel, criando um jogo que, em nenhum momento, visa agradar o jogador.

The Last of Us Part II
Divulgação/PlayStation

Essa atitude é representada especialmente pelo final do primeiro The Last of Us, um dos mais celebrados da história do videogame e peça vital para a continuação. Explicá-lo sem estragar a surpresa é difícil, mas vamos tentar: quando finalmente chegamos ao clímax construído ao longo de toda a trama, que consiste em uma jornada através dos Estados Unidos em busca de um objetivo em comum, Joel toma a atitude mais moralmente questionável do jogo (e não foram poucas).

No olhar de um observador distante, suas ações no comando de Joel são terríveis, inaceitáveis, monstruosas. Porém, o jogo, sempre ambíguo na maneira em que retrata a condição humana, vai construindo a personalidade de seu protagonista com tanta atenção que, para o jogador, é possível condená-la e compreendê-la. Ao mesmo tempo.

The Last of Us: Parte II vai te obrigar a tomar atitudes tão ou mais questionáveis quanto a que Joel escolhe ao final do primeiro jogo, ao menos de um ponto de vista pessoal.

O drama da Naughty Dog sempre foi conhecido por ser emocionalmente exaustivo. A agência do jogador ao conduzir cenas difíceis, com ações violentas que levam a consequências pesadas e diálogos tensos, é um instrumento usado com maestria pelo primeiro jogo e levado a um novo patamar de impacto na continuação.

The Last of Us Part II
Divulgação/PlayStation

Primeiro de tudo, porque The Last of Us: Parte II sabe exatamente como revelar cada lado das emoções complicadas que seus personagens vivem. Angústia. Trauma. Resignação. Injustiça. E, por quê não, alegria, já que a história começa em período de paz na comunidade de Jackson, apresentada no primeiro jogo.

O roteiro assinado por Neil Druckmann em ambos os jogos (e, na continuação, pela talentosa Halley Gross, egressa de Westworld) sempre se destacou ao colocar personagem e jogador em momentos de tensão absoluta, física e psicologicamente, em que instinto de sobreviver se misturam a múltiplos sentimentos. As mortes e tragédias incessantes faziam cada “respiro” tão importante que, até hoje, muitos jogadores se emocionam ao ver Joel e Ellie acariciar uma inocente girafa.

The Last of Us: Parte II é mais generoso nos respiros e mais profundo nos mergulhos de estresse, mas isso não significa que a narrativa comete excessos. Pelo contrário. Embora seja mais longo do que qualquer outra aventura já desenvolvida pelo estúdio californiano, o novo Last of Us não desperdiça um segundo sequer de tela. Tudo ali tem uma razão de existir, está ali para dar sustentação a algo que Ellie e os demais integrantes do elenco sentem.

Parte II disseca, destrói e reconstrói os sentimentos expressados no primeiro game

É preciso entender a atual situação de Ellie para compreender por que, após um acontecimento trágico, a jovem parte rumo a Seattle, uma das várias metrópoles convertidas em zonas de quarentena que sucumbiu ao longo dos anos pós-surto. Agora, ela é território de duas facções em guerra: a milícia Frente de Libertação de Washington (WLF) e o culto religioso dos Serafitas. Ambos adicionam uma camada de perigo aos sempre mortais ambientes urbanos, com infectados à espreita.

The Last of Us Part II
Divulgação/PlayStation

Falar mais sobre a história da Parte II além de sua sinopse é estragar a surpresa para você (se ela já não tiver sido comprometida pelos vazamentos maciços de informação do jogo a poucos meses de seu lançamento), mas a condução da trama e, sobretudo, dos personagens é provavelmente a mais brilhante que um jogo de videogame já conseguiu alcançar.

The Last of Us: Parte II pega os sentimentos expressados no poderoso final do primeiro game - que por sua vez foram construídos em uma história de 15 horas repleta de nuances e complexidade - e os disseca, destrói, reconstrói e faz o jogador (sempre ele, no comando das pedradas) reexaminar tudo o que se assumia sobre os personagens que ele vê na tela.

Em uma entrevista recente, o diretor-roteirista Neil Druckmann afirmou que o jogo fará você se sentir o vilão da história, mas até isso é um eufemismo para marcar as profundas transformações que ocorrem com Ellie e grande elenco durante a Parte II.

O texto é, sem dúvidas, o grande motor dessas transformações, mas aqui abro um espaço para falar também da qualidade gráfica do jogo. A Naughty Dog é conhecida por seu apreço ao detalhe visual e a Parte II chega já no fim do PS4 enquanto console principal da Sony, um período no qual desenvolvedoras já estão familiarizadas com o hardware e, portanto, sabem extrair o máximo da máquina.

The Last of Us Part II
Divulgação/PlayStation

Apesar de todas as condições favoráveis a um jogo graficamente exemplar, o novo The Last of Us me surpreendeu ainda mais nas expressões faciais dos personagens, que deixam as cenas emocionantes ainda mais críveis. Um novo sistema de captura facial usada pelo estúdio californiano dá outro nível às atuações de Ashley Johnson, Troy Baker e cia., em uma união perfeita de arte e tecnologia. Por último, cabe também pontuar a sempre precisa trilha sonora do argentino Gustavo Santaolalla, vencedor de dois Oscars e compositor do primeiro jogo, com seu estilo único e icônico de tocar violão.

(Na versão em PT-BR, é preciso destacar também o trabalho de dublagem, que evoluiu significativamente em relação ao primeiro jogo, tanto na mixagem de som, muito criticada no título lançado originalmente no PlayStation 3, e na magistral performance de Luiza Caspary como a intérprete brasileira de Ellie).

Nada disso seria possível, porém, sem um estupendo processo de caracterização que começou em 2013 e chegou a um novo patamar, refletido também por uma equipe e um elenco mais diversos do que nunca no ponto de vista de etnia e orientação sexual (especialmente, por tratar desses temas com uma naturalidade que reflete o mundo como ele é, sem idealizações bobas e preconceituosas). The Last of Us: Parte II choca, acolhe e deverá dividir opiniões, mas dificilmente poderá ser chamado, até mesmo por seus críticos, de um jogo de baixa qualidade.

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The Last of Us Part II
Divulgação/PlayStation

Ao longo das gerações de PS3 e PS4, a Naughty Dog investiu na excelência narrativa de seus projetos, a ponto de quem não gosta do estúdio argumentar que seus jogos mais se assemelham a filmes, ou dizer que as qualidades narrativas de seus trabalhos carregam sua fama, em vez do gameplay.

Eu nunca concordei com essas linhas de raciocínio, mas em The Last of Us: Parte II fica bem claro que a história manda nesse cabo de guerra interativo - ainda que exista, sim, um jogo de qualidade para ser jogado.

Como já explicamos em um artigo de impressões produzido já com base na versão final do jogo, a Parte II traz no sentimento de ódio de Ellie a mudança mais visível na jogabilidade da continuação. O porte físico da jovem imediatamente a torna mais ágil e discreta do que Joel, mas é a raiva que faz a personagem se destacar como força motriz dos confrontos.

Ellie soca, golpeia e atira com uma raiva que pode ser sentida em cada frame de animação, combinando fúria com o sangue frio de quem planeja emboscar ou interceptar numerosos oponentes.

The Last of Us Part II
Divulgação/PlayStation

O ódio é usado como arma até mesmo no gameplay

The Last of Us: Parte II é mais voltado à furtividade em detrimento da ação, e nesse ponto, é importante ressaltar também como melhorou a inteligência artificial dos soldados controlados pela máquina, um ponto discutivelmente fraco nos jogos da Naughty Dog. Acabou a história de inimigos não detectarem o personagem não controlável que está te acompanhando, por exemplo, e a movimentação dos vilões segue múltiplos padrões, tornando ainda mais difícil a vida de quem gosta de se esconder.

(Isso tudo sem falar nos cachorros, que te farejam e adoram revelar sua posição).

Por isso, o jogo dá novas opções de abordagem, permitindo que você passe por áreas sem precisar eliminar todos os oponentes. Às vezes, essa é inclusive a melhor opção, pois você pode se fazer valer de cenários mais amplos, verticais e cheios de frestas que foram feitas para garantir uma travessia silenciosa e longe da visão de quem quer acabar com sua vida.

The Last of Us Part II
Divulgação/PlayStation

Os inimigos humanos ganham grande importância em The Last of Us: Parte II, mas isso não significa que os infectados pelo cordyceps sejam menos perigosos. A continuação aposta em maneiras engenhosas de surpreender o jogador, colocando corredores (runners) ou temíveis estaladores (clickers) e perseguidores (stalkers) à espreita, escondidos em salinhas ou preparados para te assustar.

O destaque principal fica para os novos tipos de infectado, como os trôpegos (shamblers), que misturam a agilidade de tipos mais mundanos com um porte grande e resistência mais próximos dos baiacus (bloaters). Há mais inimigos não revelados pelo material promocional do jogo, que também oferecem desafios à altura.

Explorar Seattle e os demais cenários do jogo também é mais recompensador do que o primeiro, especialmente porque há mais coisas para ver e, consequentemente, há mais chances de você deixar coisas pra trás se não estiver prestando atenção.

Antes de jogar a Parte II, joguei novamente o primeiro game e a diferença é considerável. Não esperava ver arenas tão grandes e tão cheias de opções de travessia, com muitos itens e, sobretudo, detalhes de narrativa contextual que ajudam a dar muito mais vida às pessoas que cruzam o caminho de Ellie.

Essa narrativa contextual é amplificada por um esforço que vale ser mencionado: a Parte II é possivelmente o jogo de alto orçamento mais acessível já feito. O exemplo mais evidente fica em símbolos que dão a tradução simultânea de textos e placas em inglês e vai a um menu detalhadíssimo no qual é possível mexer em percepções de audição, visão, esquemas de controle, assistências de combate e navegação.

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The Last of Us Part II
Divulgação/PlayStation

Eu vou confessar que, ao final das 25 horas de The Last of Us: Parte II, estava emocionalmente exausto. Não foi algo exclusivo à minha experiência: depois de terminar, conversei com colegas que sentiram o mesmo.

Isso tampouco é uma coincidência.

Em sua determinação inquestionável de tratar personagens como pessoas e conduzir um roteiro que fará você compreendê-las em uma proximidade na qual poucos estúdios de games se dispõem a trabalhar, a Naughty Dog complementa sua obra-prima (sim, o segundo jogo é indissociável do primeiro) em uma continuação que será para a geração do PlayStation 4 o que o primeiro game foi para o PS3: um divisor de águas que vai pavimentar mudanças estruturais na indústria de videogames.

Este é um jogo que vai te exaurir, vai fazer você se questionar, simpatizar, detestar - às vezes, tudo isso ao mesmo tempo. Quem já viveu cheio de ódio sabe como esse é um sentimento perigoso, e a sequência da história de Ellie mostra esse caminho em todas as suas facetas.

E você, o que vai fazer com tanto ódio?

Você pode até não saber, mas The Last of Us: Parte II vai mostrar o que o ódio pode fazer com você.

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The Last of Us: Part II
  • Lançamento

    19.06.2020

  • Publicadora

    Sony

  • Desenvolvedora

    Naughty Dog

  • Censura

    18 anos

  • Gênero

    Ação

  • Testado em

    PlayStation 4

  • Plataformas

    PlayStation 4

Nota do crítico