Capcom
Resident Evil 4: Ashley é insuportável, mas o problema é maior
Porque o arquétipo da donzela indefesa deve ficar no passado
Ashley Graham, aliada de Leon em Resident Evil 4, é uma das personagens mais insuportáveis e problemáticas dos games. Reduzida ao papel da donzela indefesa, a garota se tornou infame na comunidade, com jogadores chegando a deixar que ela seja capturada ou morta propositalmente. O problema com Ashley vai para além de ser insuportável e, com sorte, a personagem será retrabalhada para o Remake de Resident Evil 4.
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Em algum ponto do desenvolvimento, parece que a intenção era que Ashley fosse a sidekick de Leon — a auxiliar que ajuda o protagonista em sua jornada. Encontramos ela na igreja do início do jogo e, a partir de então, ela passa quase toda a jornada ao nosso lado. Contudo, a garota praticamente não colabora com o jogador na aventura. Ela é, infelizmente, mais um fardo do que qualquer outra coisa.
É compreensível que a filha de 20 anos do presidente dos Estados Unidos não tenha conhecimento tático algum. Tendo crescido no que muito provavelmente foi uma realidade de privilégios e regalias, é totalmente natural não saber usar armas para se defender e se ver arrebatada por uma situação em que uma organização obscura quer te capturar a todo custo.
A questão é que Ashley não evolui durante a narrativa, limitada a, em toda e qualquer situação, estar totalmente desamparada e em estado de desespero. Falando sempre entre soluços e voz de choro, a garota chama constantemente pelo auxílio do jogador, com seu estridente “Leon, me ajude!”.
E o problema está aqui: eu, como jogadora, passei o jogo todo com vontade de mandá-la calar a boca. E odiei me ver nesse lugar.
Até mesmo a forma como Ashley foi programada parece a tornar motivo de irritação. Com movimentos desorientados, a aliada constantemente entra na frente do jogador, atrapalhando a movimentação e se colocando em situações de perigo. Frente a isso, criei o costume de pedir para que ela ficasse parada no início da sala até que eu eliminasse os inimigos da área e fosse seguro prosseguir.
Mais do que o primeiro encontro com o tenebroso Regenerator, a situação mais desconfortável para mim em Resident Evil 4 aconteceu na sequência em que é preciso defender uma casa de uma horda zumbi. Ao conhecer Ashley, a primeira coisa que Luis Sera diz é: “estou vendo que o presidente muniu sua filha com muita balística” — e, nesse momento, a câmera desce para focar nos seios da garota. Foi então que percebi que, bom, não apenas metade do elenco (e dos monstros) quer capturar Ashley como quem tem oportunidade a sexualiza.
O arquétipo da donzela indefesa é um dos mais recorrentes nos games. Colocando-as em situações em que precisam ser resgatadas, esse tipo de representação desempodera as personagens femininas, restringindo-as do poder para serem heroínas.
Em seu artigo “Gendered Media: The Influence of Media on Views of Gender”, Julia T. Wood analisa a sub-representação de mulheres na mídia, uma forma primária pela qual a realidade é distorcida. A autora argumenta que “a distorção constante nos leva a acreditar que realmente existem mais homens do que mulheres e, além disso, que os homens são o padrão cultural."
“Normalmente, os homens são retratados como ativos, aventureiros, poderosos, sexualmente agressivos e em grande parte não envolvidos em relacionamentos humanos”, aponta a autora. “Igualmente consistente com as visões culturais de gênero são as representações de mulheres como objetos sexuais, que geralmente são jovens, magras, bonitas, passivas, dependentes e muitas vezes incompetentes e burras” — e o fato dessa descrição se encaixar perfeitamente com Ashley não me surpreende.
Sarah Projansky destaca em seu livro “Spetacular Girls: Media Fascination and Celebrity Culture” o quanto a representação midiática é central na sociedade, sendo capaz de transformar meninas e mulheres em “objetos visuais fabulosos e escandalosos à mostra”. O impacto da representação feminina como a presente em Resident Evil 4 possui o mesmo efeito e, por isso, deve ser problematizada.
Projansky alerta ainda que uma representação midiática não representativa “serve como um aviso para todas as mulheres de que o fracasso é uma possibilidade constante, algo que deve ser evitado por meio de dedicação contínua”. Ou seja, representações femininas distorcidas reiteram que é preciso corresponder às expectativas sociais sobre o corpo e o comportamento da mulher.
É inegável o impacto e a importância da representatividade nos games e em qualquer outra forma de mídia. Por isso, ver personagens hiperssexualizadas, assistentes, acompanhantes, não atuantes e submissas, como Ashley, deve se tornar algo do passado.
- Lançamento
24.03.2023
- Publicadora
Capcom
- Desenvolvedora
Capcom
- Gênero
Terror, sobrevivência
- Plataformas
PlayStation 5 Xbox Series X Xbox Series S PC