Com o passar das décadas, o estereótipo do jovem geek que sofre bullying, se dá mal nos relacionamentos amorosos e é discriminado pelos colegas está bem estabelecido na cultura pop, com exemplos desde A Vingança dos Nerds até The Big Bang Theory.

Mesmo hoje, com os jogos digitais tendo conquistado um espaço maior na mídia tradicional, e com a figura do nerd sendo mostrada de forma bem mais atraente do que nas gerações anteriores, a percepção de que fãs de videogame são uma categoria discriminada segue forte. Por outro lado, movimentos pela diversidade na indústria de jogos questionam essa ideia ao exporem situações em que gamers, em vez de serem vítimas, atuam como discriminadores, o que muitas vezes leva os mesmos gamers a se perceberem ainda mais perseguidos.

Neste impasse, mais do que tentar mensurar o quanto essa percepção de preconceito contra fãs de videogame é real ou não, vale entender o porquê ela ainda é tão forte entre quem se identifica como gamer.

Problema de identidade

Para isso, temos que olhar para a própria ideia do que seria uma identidade gamer. Se já participou mais ativamente de um grupo de fãs de jogos digitais, provavelmente encontrou situações em que você ou outro membro da comunidade teve a famigerada "carteirinha gamer" questionada. Isso porque a chamada identidade gamer é baseada principalmente no seu consumo e habilidade nos jogos: quanto mais, melhor.

Com boa parte da publicidade dos anos 80 e 90 voltada para a visão do videogame como um reino de homens jovens e excêntricos, porém extremamente habilidosos (um imaginário também muito reforçado por filmes da época), a ideia de gamers como um clube exclusivo de pessoas com habilidades especiais e "gostos peculiares que você não entenderia" se consolidou no imaginário do público, e se tornou determinante para a autoidentificação como gamer. Junto disso, ficou a perspectiva de que essa identidade é exótica, esquisita e - por isso - marginalizada.

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Típica representação publicitária de um gamer nos anos 90

Sega/Divulgação

Os anos 90 que os maiores episódios de pânico moral contra videogames começaram a ganhar espaço na mídia. Em 1993 o suposto perigo que o videogame violento representava para as crianças virou pauta por causa dos jogos Mortal Kombat e Night Trap, em uma confusão que envolveu um apresentador infantil, parlamentares estadunidenses e a guerra comercial entre Sega e Nintendo (via Bonus Stage) e resultou na criação do sistema de classificação etária adotado pela indústria hoje.

Em 1999 o debate voltou a acontecer após o massacre de Columbine, quando jogos de tiro jogados pelos assassinos foram citados pela mídia como motivadores do crime, padrão que se repete sempre que algum episódio semelhante acontece, como a recente declaração do vice presidente Mourão no massacre de Suzano.

Não bastasse isso, quando não citados como causadores de episódios violentos, parte significativa das menções aos jogos digitais na imprensa dá foco aos riscos de vício e comportamentos antissociais. A persistência dessa abordagem rasa e sensacionalista por parte da mídia e de autoridades ajudou a alimentar a sensação de discriminação vivenciada pelos gamers, de forma que ela se tornou um elemento determinante nesse processo de identificação.

Pesquisas e identificações

Josep Lago/AFP

Em 2012, a pesquisadora Adrienne Shaw publicou um estudo sobre identificação gamer realizada entre minorias que são consideradas, tanto pela imprensa e mercado quanto por estudiosos da área, marginalizadas pela comunidade gamer: basicamente pessoas não brancas; mulheres e outras identidades não masculinas; e LGBTQs.

Neste estudo, Shaw entrevistou pessoas que pertencem às minorias citadas e consomem videogames regularmente, mas não se definem como gamers, questionando se essa não identificação estava relacionada ao fato de se entenderem como diferentes do estereótipo gamer tradicional.

Porém, os pesquisados consideraram o tempo e habilidade de jogo como fatores mais importantes para se definirem como gamers do que suas questões identitárias, embora reconhecessem essa marginalização em algumas situações e a influência dessas identidades em ambientes gamers.

Seguido destes dois fatores, o principal impedimento para se autodeclarar como "gamer" foi justamente a percepção de preconceito sofrido por outros deste público, e uma resistência a serem encaixados nesse estereótipo. A persistência dessa ideia de preconceito contra gamers mesmo entre minorias, que sofrem discriminação em espaços dedicados a esse público, mostra que ela não é algo a ser desprezado como inexistente ou fantasiosa.

Fredrick Tendong/Unsplash

No Brasil, dados da pesquisa "O Mundo Invisível dos Gamers", realizada em 2017, mostram que entre autodeclarados gamers algumas das mesmas tendências observadas por Shaw, como a valorização do tempo investido jogando (64% jogam todos os dias) e a percepção de serem discriminados (41% dos entrevistados acreditam que os gamers sofrem algum tipo de preconceito).

A pesquisa de Shaw e o levantamento brasileiro também convergem nos principais motivos percebidos pelos gamers para esse preconceito: a ideia de que jogar é uma perda de tempo ou uma atividade viciante, o que pode ser um indicativo de quanto o foco da mídia nesses aspectos afetou os próprios gamers.

Por meio de todos estes dados, podemos entender que a identidade gamer é muito baseada em validação pelo investimento de tempo jogando – portanto pelo consumo, mesmo que isso não signifique necessariamente apenas comprar jogos – e pela sua percepção como grupo marginalizado e estereotipado, o que ajuda a reforçar um senso de "nós contra os outros".

Estas são duas características que alimentam um forte senso de grupo e postura defensiva, que resultam muitas vezes em cyberbullying e hostilidade contra tudo que parecer, de alguma forma, desviante do que se espera de um gamer de verdade e resultando no que já conhecemos bem como a "toxicidade gamer". E movimentos legítimos que questionam essa toxicidade muitas vezes geraram reações de intensas hostilidades ao apontar esses problemas em uma comunidade já bastante defensiva.

Publicidade e política

Outro fator que não ajuda muito a solucionar esse problema é que a identidade gamer é bem atraente para a publicidade, afinal de contas um público-alvo com fortes convicções identitárias baseadas principalmente em consumo é tudo o que uma marca pode querer.

Ao mesmo tempo que se mostram ansiosas e receosas por explorar esse potencial, já que nenhuma marca quer estar no meio de polêmicas públicas, muitas vezes elas acabam validando essa toxicidade, como no caso das empresas que retiraram sua publicidade de veículos que denunciaram as agressões ocorridas durante o Gamergate (via Revista Mídia e Cotidiano) e na nota da fabricante Razer durante os ataques sofridos pela streamer Gabi Catuzzo (via O Globo)

Outro segmento bastante interessado em explorar esses aspectos da identidade gamer são alguns movimentos políticos, que usam plataformas como o YouTube e utilizam da percepção de discriminação para mobilizar esse público por meio de uma narrativa cheia de elementos conspiratórios, que coloca os games no centro de uma guerra cultural.

Os gamers hoje são tão importantes para a política que, em meio a crise das queimadas na Amazônia, provavelmente a maior crise internacional do atual governo, o presidente Jair Bolsonaro escolheu acenar para esse público com a redução dos impostos sobre jogos digitais.

Novos caminhos

Marco Longari/AFP

Para construir um ambiente mais saudável para os fãs de videogame, acredito que é preciso entender que todos esses fatores se articulam de forma mais complexa do que apenas a redução dos gamers a uma categoria privilegiada que resiste ao questionamento do seu espaço – o que em muitos contextos nem faz tanto sentido em um país como o Brasil –, embora isso também seja verdade, ao menos em parte.

Em primeiro lugar, é preciso entender que a construção da identidade gamer é uma narrativa publicitária que se apoia muitas vezes em um imaginário de discriminação para fortalecer o senso de grupo desse público por meio de histórias de superação (vide os filmes que falam sobre "nerds"). Também é importante não confundir a abordagem rasa de parte da mídia, pânico moral e estereotipação com preconceito estrutural: essas coisas são ruins, mas você não corre risco de perder a vida, o emprego e o acesso a espaços importantes por causa do seu hobby.

E, finalmente, questionar o quanto essa percepção de preconceito é interessante para grupos que usam o público gamer como instrumento político. Para estes, a manutenção da ideia de que gamers são discriminados é interessante para canalizar a frustração que essa percepção gera e usá-la para seus próprios interesses.

Podemos pensar em construir comunidades baseadas em novos parâmetros: a conexão afetiva com os jogos, o senso de colaboração e a ideia de que somos um grupo importante para a articulação de assuntos de interesse da sociedade. Contextualizar os jogos digitais fora de um grupo de "gamers" exclusivos para iniciados pode ser uma prática interessante para desmistificar essa mídia e reduzir assim esses fatores que ainda fazem esse público se perceber como tão discriminado.