Chega às locadoras esta semana a versão em DVD de Os reis de Dogtown, adaptação dramática da gênese do skate como o conhecemos hoje. O recorte coloca em pauta uma discussão sobre a prática do skate como forma de critica à instrumentalização da vida nas cidades.

A história acompanha a trajetória dos Z-Boys à condição de celebridades midiáticas, seguindo os passos e conflitos de Jay Adams, Stacy Peralta, Tony Alva e sua trupe. O roteiro é do próprio Peralta, polivalente ex-skatista, empresário e cineasta. Já a direção ficou a cargo de Catherine Hardwicke, mesma de Aos treze, que trata de qüiproquós adolescentes.

Por seu caráter alternativo e segmentado, o filme, quando estreou nos cinemas brasileiros, em outubro do ano passado, acabou ficando em cartaz em pouquíssimas salas, com horários de exibição não muito amigáveis e, ainda por cima, por um breve período. Agora é a chance de quem perdeu finalmente poder conferi-lo.

A história já havia sido abordada por Peralta no primoroso documentário Dogtown & Z-Boys - Onde tudo começou (2001). A dramatização, aqui, não supera a radiografia original, verdade seja dita. Mas ainda assim se faz relevante por romantizar com certa desenvoltura a revolução que os rapazes fizeram no universo do skate, enchendo de vida as ruas da Califórnia nos anos 70. O filme traz momentos cruciais na evolução do esporte, quando o grupo de amigos começa a adaptar os movimentos do surfe, algo até então inédito. Daí surge a equipe, formada por jovens imersos em dificuldades financeiras e sem muitas perspectivas. No carrinho descobriram um sentido para suas vidas, nas piscinas vazias da cidade encontraram motivação, e, aos poucos, foram se tornando verdadeiros ícones da cultura pop.

A prática do skate disseminada por eles foi inspiradora a toda uma geração de jovens entediados com a vida nas cidades, nas periferias dos grandes centros urbanos. Assim, o skate ganhou força na segunda metade dos 70 e chegou ao final dos 90 com mais ou menos quarenta milhões de dedicados praticantes espalhados por todas as metrópoles do mundo. Representa, hoje, uma subcultura bem definida que transcende a simples prática esportiva ao atingir os campos do design gráfico, da música e da moda.

A vanguarda setentista foi capaz de impulsionar o desenvolvimento de uma linguagem própria e certa repulsa à vida cotidiana, bem como ao marasmo que ela oferecia. Isso acabou gerando um tipo de contestação semiconsciente que implicava na aversão ao trabalho, à estrutura familiar e ao tédio do dia-a-dia, incutindo nas relações juvenis um conceito de universalidade em favor da construção de novas formas de integração entre os indivíduos - para além das fronteiras geográficas, étnicas ou de classe. Essas relações eram produzidas nas ruas mesmo, uma vez que a repulsa não era expressa através da literatura, da pintura ou da teoria científica, mas da performance: Tomava forma a partir de como os skatistas passaram a interagir com o pavimento.

Das praias ao concreto

O skate teve seu boom nas famosas praias californianas, entre final dos 50 e começo dos 70. Era tão somente uma brincadeira de criança. Os pequenos se divertiam nas calçadas e ladeiras. Depois da falência do skate como moda passageira entre a petizada norte-americana - algo comparado ao iô-iô ou o bambolê - os desocupados surfistas de Dogtown ressuscitaram-no, dando vida e atribuindo novo sentido ao carrinho. Nessa época, skates eram produzidos num esquema quase do it yourself (faça você mesmo). Na segunda metade dos 70 passaram a experimentar novos espaços onde pudessem aprimorar suas performances ainda baseadas nos movimentos clássicos do surfe. Interagiam com ladeiras, guias, escadas, bancos de escolas e hidrantes. Rapidamente descobriram que as milionárias residências de férias da cidade propiciariam o verdadeiro levante do skate. Fora das temporadas, as casas ficavam vazias, assim como suas piscinas - logo os skatistas passaram a invadir essas moradias, transformando aqueles tanques sem água em verdadeiros playgrounds. A inspiração vinha das transições onduladas entre o fundo e a parede - exploravam ao limite as bordas, curvas e até o hiato entre uma parede e outra com "aéreos".

No final daquela década o esporte já havia sido absorvido pela cultura de massa. Skates começaram a ser fabricados em série e comercializados em lojas de surfe. Os primeiros campeonatos proliferavam e as manobras se tornariam ainda mais dramáticas com o advento dos Skateparks um pouco mais tarde, no início dos 80. Os Skateparks eram centros de lazer financiados pelo governo com o objetivo de tirar os skatistas das ruas. Inspirados na arquitetura urbana, esses centros foram especialmente construídos em diversos bairros dos EUA, Inglaterra e outros lugares do mundo. As pistas tipicamente ofereciam uma imensa gama de atrativos, incluindo piscinas exageradamente maiores do que o comum - repletas de curvas e bordas -, dentre as mais famosas estavam Marina Del Rey e Pipeline, nos EUA, e The Room e Solid Surf, na Inglaterra.

Mas, logo depois da febre inicial, muitos voltaram a ocupar fortemente as ruas, um fenômeno não somente na Califórnia, mas no mundo todo. A arquitetura modernista ocidental inspirou o desenvolvimento do Streetstyle, praticado por aqueles que se recusavam a aceitar o confinamento e a comodificação proposta pelas autoridades, ou seja, não queriam vê-lo como entretenimento banal, com lugares pré-definidos para sua prática. Isso nos chama atenção para a dimensão política e contra-cultural do skate.

Por volta de 84 os skatistas começaram a experimentar os mais diversos e convencionais elementos da paisagem cotidiana. A manobra básica era o ollie, técnica desenvolvida para saltar do solo. Com isso começaram a deslizar sobre as paredes dos prédios, degraus, corrimãos e bancos das praças. Hoje, seguem mandando seus habilidosos grinds e slides sobre canos, muros e até monumentos.

Ao interagirem com o espaço de tal maneira, os skatistas acabaram por aceitar as definições arquitetônicas, redefinindo-as física e conceitualmente, assim como o próprio entendimento que se faz da cidade. Em outras palavras, produzem uma crítica política do espaço, criam ambientes de convivência prazerosa e criativa em meio a amplos não-lugares, caminhos para o trabalho ou para o Shopping Center. Há algo de poético nisso: descobrir a praia no concreto, as ondas no cimento.

A crítica não se restringe à América do Norte, onde começou e se desenvolveu. Todas as modernas cidades capitalistas abrigam hoje um sem número de adeptos, que por sua vez comunicam-se globalmente via Internet, dão entrevistas, produzem revistas, vídeos, fotos, eventos e música. Em virtude de seu caráter contestatório, o skate é proibido fora das pistas em diversas cidades ao redor do mundo. Muito freqüentemente, os esportistas são tratados pelas autoridades de modo similar a trombadinhas. É comum proprietários prestarem queixas apontando marcas como prova da depreciação do local, o que obriga os infratores a pagar multas ou cumprir pequenas penas - são expostos, assim, às leis da propriedade privada e à censura espacial urbana.

Henri Lefebvre, em seu livro The Production of Space, (Oxford: Blackwell, 1991 p. 94) diz: "Certamente é suprema ilusão atribuir aos arquitetos, urbanistas ou planejadores o status de serem as últimas autoridades na discussão referente ao espaço". A conclusão de Lefebvre baseia-se em diversos estudos e teorias. Segundo ele, arquitetos e planejadores podem ser especialistas e idealizadores do urbanismo, mas seus esquemas e desenhos, edifícios e plataformas, não lhes concedem o atributo do espaço. Diferentemente, enxerga o espaço urbano como uma contínua reprodução que envolve não apenas objetos concretos e cálculos, não apenas textos codificados e especialização acadêmica, mas também imaginação, criatividade e experimentação.

Os skatistas, ao forjarem ambientes de convívio criativo em localidades que foram previamente idealizadas e construídas para o convívio anticriativo, anticomunitário, de relação superficial e burocrática entre as pessoas, acenderam a fagulha de uma discussão sobre o convencionalismo urbano como instrumento de alienação social. Nesse sentido, os motivos primeiros do skate podem nos ensinar muito sobre criatividade. Sobre como desenvolver uma crítica profunda sem recorrer às palavras. Sobre como tentar viver num mundo sem fronteiras.