Fenômeno mundial da literatura, Orson Scott Card ganhou de presente, ainda pequeno, uma exemplar de Fundação, um dos maiores épicos da ficção científica de todos os tempos, escrito pelo mestre Isaac Asimov. Fascinado com a trama que apresentava um futuro longínquo, a decadência de um Império Galáctico e a formação de sociedades em milhões de planetas, decidiu que um dia escreveria sua própria grande saga no gênero. Leitor voraz, estudou a arte da escrita em todas as suas formas, e nunca desistiu de seu sonho. Seu conto "O Jogo do Exterminador" ("Ender´s Game") foi recusado por várias revistas de ficção científica, até ser finalmente publicado, em agosto de 1977, na Analog, mudando o curso da história. Hoje, transformado em romance, é um clássico do gênero, e deu início a duas séries paralelas de livros que exploram o que há de melhor na ficção científica.

O fato curioso é que o autor não pretendia expandir o universo de seu conto original. A situação mudou quando Card estava trabalhando idéias para um novo romance, o Orador dos Mortos (Speaker for the Dead). Mais maduro como escritor, reconhecia o potencial da história de um homem que falaria sobre pessoas recém-falecidas da forma como realmente deveria ser feito, e não como víamos no mundo real. O problema é que ele carecia do pano de fundo necessário para que sua nova história funcionasse. Foi quando caiu a ficha. Card já possuía em suas mãos a história perfeita para servir de prólogo a Orador dos Mortos. Começou, então, a transformar o conto "O Jogo do Exterminador" num romance bem desenvolvido e mais poderoso. O resultado marcou época. O Jogo do Exterminador e Orador dos Mortos foram sucesso de público e crítica, fazendo de Orson Scott Card o único escritor a ganhar os prêmios Hugo e Nebula, os dois mais importantes da ficção científica, por dois anos consecutivos, em 1986 e 1987.

O Jogo do Exterminador já começa mostrando em seu primeiro capítulo uma cena brutal, que não deixa dúvidas quanto à proposta do autor. Andrew (Ender) Wiggin, uma criança de apenas seis anos de idade, é vigiado pelas autoridades através de um mecanismo de monitoramento em seu pescoço. Ender é o terceiro filho de uma família problemática, um gênio e a maior esperança do mundo. A Terra foi invadida por uma raça de alienígenas insetos com tecnologia avançada. Para combatê-los, os militares recrutam crianças para o treinamento na Escola de Batalhas Espaciais. No primeiro dia de aula após a retirada do aparelho, Ender é atacado pelo típico valentão da escola e sua gangue. E não hesita em reagir com força letal para garantir sua sobrevivência. Para os militares estava comprovado que aquele poderia ser de fato o salvador da humanidade. Seu inferno pessoal está apenas começando.

O passado de Ender

Boa parte do livro apresenta um tom de militarismo e estudo de personagens muito mais forte que de ficção cientifica propriamente dita. Apesar de constante, por exemplo, até a existência da ameaça de uma nova invasão extraterrestre é contestada pelas crianças. E o jogo não é nada fácil para o pequeno Ender. O Coronel Graff, que o recrutou, faz de tudo para transformá-lo no exterminador que a Terra supostamente necessita para derrotar os insetos. O jogo inicial consiste de uma simulação de combate em gravidade zero, no qual as crianças usam trajes especiais e armas capazes de paralisar umas às outras. Contudo, o verdadeiro treinamento está nas manipulações que deixam Ender cada vez mais isolado de tudo e de todos, gerando a antipatia de outras crianças contra ele, de modo que seu instinto de sobrevivência fica cada vez mais desenvolvido.

Acompanhar crianças superinteligentes em jogos de vida ou morte é uma experiência fascinante. O tema certamente ajudou a conquistar um público mais jovem para o hábito da leitura, tornando-se um fenômeno muito antes do surgimento de um certo menino-bruxo inglês. Já a atmosfera de paranóia e violência, associada a uma competente análise do comportamento humano, garantiu que a obra fosse levada a sério pelo leitor maduro e atingisse a todas as faixas etárias. Para a trama, tão importantes quanto a intriga militar e os combates nos simuladores estão a evolução do comportamento e da psique dos personagens, especialmente Ender. Por se destacar em todas as atividades, ele não deixa de ser alvo de outros jovens mais velhos e percebe que precisa criar vínculos sociais até numa escola de guerra.

O confinamento na Escola de Guerra gera um clima cada vez mais angustiante. Mas a presença de outras crianças com as quais Ender se identifica permite que mantenhamos um grau de identificação e apreciemos o fato de que existe ali alguma inocência, mesmo sabendo que elas são treinadas para matar.

Por conta dos temas abordados, O Jogo do Exterminador é um livro adotado em escolas, universidades e centros de estudos diversos, sendo tema de trabalhos acadêmicos que comparam Ender desde um messias que representa a esperança da humanidade até Adolf Hitler. Por mais que alguns estejam equivocados, não deixam de comprovar a força e a relevância da obra.

Além da saga de Ender

Orson Scott Card deu prosseguimento à saga de Ender. Além de Orador dos Mortos, ele escreveu Xenocídio e Children of the Mind. Criou também uma série paralela de livros centrada no personagem Bean - um dos amigos de Ender na Escola de Batalha. É ele o protagonista de Ender´s Shadow. A história é a mesma de O Jogo do Exterminador, mas narrada do ponto de vista de Bean. Reeditou também o conto original no livro First Meetings in Enderverse. Além da série que o lançou ao estrelato, Card escreveu romances nos mais diversos gêneros, como ficção história, religiosa, horror, uma adaptação do Livro dos Mórmons para a ficção científica e até um guia para aspirantes a escritores de ficção científica e fantasia. Também contribuiu para a saga Fundação, de Isaac Asimov, num conto publicado na antologia Foundation´s Friends. Recentemente, escreveu o gibi mensal do Homem de Ferro para a Marvel.

Card morou dois anos no Brasil, como missionário da Igreja dos Mórmons, de 1972 a 1973, antes de publicar o conto "O Jogo do Exterminador". Sempre afirmou que os brasileiros dariam um grande presente ao público de ficção científica se lhes permitissem experimentar a cultura nacional. Bom conselho. E nada melhor que começar com a leitura de sua obra essencial.