A mitologia grega é fonte para incontáveis obras do entretenimento: filmes, séries, livros e, claro, games já ouviram o canto das musas para dar vida a uma história. Hades, último projeto da Supergiant, dá um olhar novo para essas lendas, colocando um quê de modernidade em contos tão tradicionais.

O estúdio já é um atrativo por si só: responsável por Transistor e Bastion, a Supergiant é amplamente reconhecida como referência em jogos independentes. Hades, devo dizer, também não é nenhum desconhecido. O game está em acesso antecipado desde 2018, e já acumulou uma base de fãs considerável desde então.

Ambientado no próprio Inferno, Hades tem como protagonista Zagreu, filho do deus dos mortos, que deseja fugir de sua casa tão mórbida. As motivações, em um primeiro momento, são desconhecidas, mas o resultado é inevitável: o Inferno é uma fortaleza impossível de se escapar, e Zagreu, que já está morto, volta a sua casa depois de uma fuga fracassada.

Sobreviva, evolua, repita

A breve sinopse já é suficiente para deduzir que Hades é um roguelite — morrer siginifica que o jogador deve voltar ao começo de sua trajetória. Todos os elementos tradicionais também estão ali: upgrades permanentes desbloqueados aos poucos, fases geradas de maneira aleatória, e novas habilidades adquiridas ao longo de cada fuga.

A grande questão em se fazer um bom roguelite, entretanto, é balancear esses três elementos e garantir que o jogador não fique sem esperança de vitória logo nas primeiras telas por não conseguir armamento bom o suficiente ou coisa do tipo. Felizmente, Hades acerta em cheio nesse aspecto.

No total, são seis armas que podem ser escolhidas antes de cada fuga. Todas trazem alguma particularidade para o gameplay, deixando o jogador livre para escolher um método de combate que se encaixe melhor com seu estilo. Prefere grudar nos inimigos e merendá-los na porrada? Os Punhos de Malphon devem funcionar bem para você. Se gostar de algo mais metódico, talvez o arco Coronacht seja a resposta.

Independente do armamento escolhido, existem maneiras de debulhar os inimigos à sua frente. Uma luta ou outra pode ficar mais difícil, mas todas as armas de Hades são viáveis. A curva de aprendizado de cada uma é bem curta, e há espaço para praticar seus golpes antes de enfrentar os desafios do Tártaro.

Depois de escolher sua arma e finalmente partir para o Tártaro em mais uma fuga, Zagreu encontrará novos recursos para sua jornada: os deuses do Olimpo simpatizam com a causa do rapaz e irão abençoá-lo com novas habilidades, que ficarão com ele até o fim daquela tentativa de fuga.

As bênçãos podem afetar seus ataques rápidos ou pesados, assim como seu Arranque (dash, para os íntimos), e seu Tiro (um ataque para distâncias longas). Há ainda bênçãos passivas, que melhorarão algum aspecto de Zagreu, e também as que se traduzem basicamente em um golpe especial.

A ajuda de divindades como Zeus, Atena, Ares e Afrodite deixa o protagonista muito mais forte e são complementos excelentes para as armas. Cada bênção abre uma nova possibilidade para enfrentar seus inimigos, e mesmo que os deuses que surgirem naquela fuga não sejam seus preferidos, o combate de Hades é quase sempre variado e divertido.

Isso sem contar os itens que podem ser comprados no caminho, a possibilidade de buffar bênçãos já recebidas e também o martelo de Dédalo, que traz melhorias para sua arma. No fim, há várias maneiras de fortalecer seu personagem durante a fuga.

Claro, o fator sorte ainda é relevante, principalmente nas primeiras tentativas: algumas bênçãos são melhores do que as outras, tanto em sua utilidade quanto em “raridade”. Da mesma maneira que vários outros jogos, as habilidades de Zagreu são classificadas em Comum, Rara, Épica e Lendária, com a tradicional cor que quase sempre acompanha essas denominações.

Felizmente, a importância da sorte é reduzida depois de cada fuga. Usando recursos que conquistou durante suas batalhas, Zagreu consegue comprar upgrades permanentes que serão essenciais para finalmente fugir do submundo.

As melhorias adquiridas fora das fugas são, provavelmente, a parte mais profunda do jogo. Mesmo com quase 40 horas de Hades, ainda estou bem longe de conseguir todos os recursos que o game reserva.

É possível construir fontes medicinais em cada uma das fases, desbloquear buffs permanentes que dão vidas e Tiros extras a Zagreu, liberar novas habilidades para suas armas, presentear outros personagens para ganhar amuletos úteis em suas fugas, e por aí vai.

A parte mais legal de tudo isso é que, mesmo com tantas melhorias disponíveis, só é preciso uma ou duas tentativas de fuga para ganhar upgrades fortíssimos logo de cara. O progresso em Hades pode ser sentido ao fim de cada fuga, e talvez seja isso que motive os jogadores a continuarem se aventurando pelo Inferno.

O gameplay pode ser descrito como uma árvore que vai se ramificando cada vez mais. O jogador vai avançando pelos galhos conforme adquire uma bênção ou outra, e é fácil perceber que existem muitos outros ramos a serem explorados.

Por sinal, confiem quando digo que Hades é um roguelite relativamente fácil. Aproximadamente 20 fugas já são suficientes superar o chefão final, cujos padrões de ataque são facilmente decorados. Depois de 30 fugas, você já sentirá confiança suficiente para derreter todos seus inimigos.

Mesmo que algumas lutas pareçam difíceis eventualmente, o jogo é bem mais acessível do que Enter The Gungeon, por exemplo. Dependendo do quão forte seu personagem está, preocupar-se com os golpes adversários é quase desnecessário na maioria das ocasiões.

Para quem gosta de dificuldade, o Pacto de Punição, mecânica desbloqueada após terminar o jogo pela primeira vez, enche o prato. O jogador pode escolher vários obstáculos adicionais a serem enfrentados, seja buffando seus inimigos ou colocando regras extras em sua fuga. Hades fica bem fácil depois de algumas horas, mas o Pacto garante que ainda existam desafios por muito tempo.

Bonito e afinado

Se o gameplay de Hades já é um deleite, o seu enredo também não fica para trás. Mais especificamente, os diálogos do jogo são muito bem construídos e potencializados por uma excelente dublagem — destaque para Darren Korb, que dá voz ao protagonista e ao carismático Skelly, além de ser compositor da trilha sonora.

O vocabulário dos deuses e outros seres mitológicos não é rebuscado como se esperaria de entidades milenares, mas sim moderno e repleto de gírias e sarcasmo. O brilho está em traduzir o amargor grego para uma linguagem mais jovem, algo que é feito com maestria pelos roteiristas.

Quem está acostumado com histórias do Olimpo sabe que os deuses são repletos de rivalidades e assuntos mal resolvidos, e esses tons vingativos marcam muita presença nas conversas de Zagreu, mas sem o peso desnecessário de palavras complicadas.

Algumas interações se destacam, como os flertes com Megaira e o tesão reprimido entre o protagonista e Tânatos, mas todos os personagens possuem sua hora de brilhar. Até mesmo o pacato Sisífo proporciona momentos marcantes na trajetória de Zagreu.

Ainda sobre as conversas, elas deixam bem claro que outro ponto fortíssimo do jogo está na direção de arte. As ilustrações dos personagens que acompanham as falas possuem um quê de rústico e grandes sombreamentos — que até lembram Transistor — e isso também se espalha para os belos cenários encontrados no submundo.

Completando a tríade artística, a trilha sonora sobressai em determinadas porções do game: alguns definitivamente épicos, como a luta contra o chefão final; enquanto outros mais mornos, mas que não deixam de ser impactantes justamente por conta das músicas — o tema da loja de Caronte e a voz de Eurídice podem fazer você perder alguns minutos para escutar o ambiente.

História linear e side quests na medida

Mesmo que o cerne de Hades esteja na repetição de suas fugas, a sua história progride de forma bastante direta. Os diálogos evoluem de maneira muito clara, principalmente quando o jogador consegue derrotar o último chefão, mas também há espaço para outras conversas reveladoras de acordo com quantas fugas o jogador já realizou.

Em termos práticos, a história não acaba ao derrotar o boss final pela primeira vez. Serão necessárias algumas vitórias para encontrar o verdadeiro destino de Zagreu, mas deixarei o número exato em segredo para evitar spoilers. Depois, há até mesmo uma espécie de final secreto que precisa de caminhos específicos para ocorrer.

Por ser tão linear, inclusive, o enredo se torna o menor dos atrativos do game. São poucas reviravoltas em uma trama que acaba sendo levemente previsível. Como dito acima, os diálogos excelentes e a dublagem seguram muito bem a barra, mas não espere algo tão profundo.

Por outro lado, as sidequests são interessantíssimas e aprofundam justamente o espírito vingativo e os conflitos mal resolvidos que permeiam a mitologia grega. Diálogos com Aquiles e Orfeu, por exemplo, chegam a ser muito mais intrigantes do que a história por trás das fugas de Zagreu.

Hades é extremamente competente em tudo que se propõe a fazer: roguelite acessível e com bastante espaço para aumentar dificuldade, o jogo complementa seu ótimo combate com trilha sonora e direção artística excelentes.

Se precisasse apontar um aspecto negativo, seria a história previsível, mas mesmo ela é compensada por vários outros fatores. Hades é excelente e deve ser protagonista no circuito de premiações deste ano.

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Hades
  • Lançamento

    17.09.2020

  • Publicadora

    Supergiant Games

  • Desenvolvedora

    Supergiant Games

  • Gênero

    Roguelite

  • Plataformas

    PC Nintendo Switch

Nota do crítico