A Internet brasileira discute o uso da banda larga fixa há dias. A Vivo, ao lado das irmãs GVT e Telefônica, anunciou mudanças nas suas políticas de cobranças no serviço, que a partir de 2017 começam a limitar o acesso com base no conceito de franquias - um pacote de dados pré-determinados para uso mensal. Mas de fato a era da conexão ilimitada está prestes a acabar, como disse João Rezende, o presidente da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), órgão do governo que se responsabiliza por regular o mercado de telecomunicações no Brasil?

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O Omelete procurou respostas de todos os lados dessa conversa. Apesar da vontade inicial de desesperar-se com a possibilidade bradada aos quatro cantos do “fim” da Internet - esse é, afinal, nosso mercado e qualquer mudança nos afeta diretamente tanto como grupo de mídia como consumidores - é importante entender o debate e buscar mais  informações.

Na prática, as mudanças funcionarão da seguinte maneira: ao invés de contratar somente a velocidade com a qual se pretende navegar na Internet, o cliente terá que escolher também quanto ele pretende consumir: 100GB, 200GB, 300GB e por aí vai. A opção de consumo sem limite de franquia seguirá existindo, segundo um acordo quase fechado entre governo e operadora. "Conversamos com a operadora [Vivo] e ela aceitou o pedido para continuar a vender o plano ilimitado", disse André Figueiredo, Ministro das Comunicações, à Folha de São Paulo. Ou seja, a Internet ilimitada não acabou, ela existirá para quem pagar tal condição. E isso é tão ruim assim? Sim e não.

Hoje o serviço precário oferecido pelas operadoras telefônicas brasileiras é a principal preocupação de quem consome Internet. Em uma rápida análise no cumprimento das metas estabelecidas pela Anatel, é possível perceber o desempenho abaixo da média de empresas como a Vivo, primeira a levantar a bandeira dos planos com franquias. Na imagem abaixo, é notável que ela tem um dos piores desempenhos entre as prestadoras, mas há de se levar em conta a abrangência da empresa - dentro do país, ela é uma das poucas a cobrir quase o território inteiro com banda larga.

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Por outro lado, a mudança era uma atitude iminente. O mundo inteiro se mexe para entender como cobrar o consumo de dados e o Brasil, inevitavelmente, também teria que se adequar a isso cedo ou tarde. Em outros países, essas mudanças já aconteceram e hoje as empresas locais têm pacotes com franquias, mas raramente cortam acesso ou diminuem a velocidade da Internet, conforme casos que mostraremos adiante.

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O ponto positivo, caso o governo comece a entender essas modificações como um avanço comercial, será a oportunidade de uma real concorrência de mercado que pode se instalar por aqui. Diferentes propostas de consumo de Internet, sejam elas distintas por preço ou qualidade, forçariam o setor a melhorar a qualidade e suas propostas para agradar clientes - ainda que no serviço de web móvel isso já exista (cobrança por franquia) e essa concorrência não tenha feito o desempenho melhorar. O melhor regulador de serviço sempre foi e será o consumidor, que deve fazer valer seus direitos e pode abandonar a qualquer momento o serviço que contratou caso não atenda suas expectativas, procurando outro melhor...

Dentro dessa lógica de competitividade, um dos primeiros efeitos vistos por aqui foi o posicionamento contrário da Live TIM quanto à cobrança de franquias. "Nós continuaremos a oferecer Internet ilimitada", disse o presidente Rodrigo Abreu, em evento da companhia. Apesar de ter deixado seus clientes felizes - e provavelmente conquistado alguns novos -, há de se notar o seguinte: a Live TIM cobre apenas Rio de Janeiro e São Paulo, logo sua base é muito menor que a da Vivo, por exemplo. Caso aumente a cobertura, o que exige um investimento mais robusto em infraestrutura de rede, é bem provável que a empresa siga o caminho da concorrência - o mesmo serve para Claro, NET e Oi. Neste caso, resta ao consumidor torcer por uma manutenção da política executada até agora.

O Omelete procurou representantes da empresas para entender melhor o cenário e, apesar de algumas só se comunicarem via nota oficial, alguns relatórios mostram o porquê destas mudanças acontecerem agora, em 2016. No ano passado, o consumo de dados representou a maior parte (51%) da receita da Telefônica/Vivo. Isso é algo inédito no Brasil, já que operadoras sempre venderam mais pacotes de voz do que de dados. E a previsão é que esta tendência cresça com o passar do tempo e com a mudança dos hábitos dos consumidores, que hoje se comunicam cada vez mais através de aplicativos de mensagens. Em 2015, somente a receita de banda larga aumentou 11,6% para a Telefônica/Vivo.

Até dezembro do ano passado, esse consórcio tinha quase 4 milhões de clientes com acesso à rede via fibra, o que representa 53,1% do total de acessos de banda larga. Por isso, o movimento de alteração na cobrança destes serviços é natural. Conforme o comportamento da população muda, é necessário se adequar a isso para que os lucros da empresa se mantenham. E neste caso, a mudança coincide com um panorama mundial de consumo, afinal, dados são o produto principal do mercado de telecomunicações.

Como funciona fora do Brasil?

Quando a Vivo e a Anatel dizem que o mundo inteiro aplica franquias limitadas eles não estão 100% erradas. A Comcast, uma das maiores provedoras de Internet dos EUA, oferece diversos pacotes com conexão limitada - e nem por isso há uma revolta popular em volta do assunto; mas os motivos são simples: a qualidade do serviço e a estrutura que as operadoras usufruem são todos de melhor qualidade - algo que não acontece no Brasil. Além, claro, da livre concorrência melhor desenvolvida entre as empresas do meio, que resulta em um cenário mais favorável ao consumidor, com preços abaixo dos que enfrentamos aqui - e um serviço bastante superior.

Numa comparação direta, ignorando o câmbio, enquanto nos EUA uma internet com 50MB de velocidade custa por volta de 35 dólares, no Brasil, menos da metade disso sai por um preço próximo aos 70 reais, seguindo os planos da Vivo. Além disso, há de se considerar que boa parte dos planos oferecidos pelas operadoras brasileiras encaixam a TV por assinatura junto, o que os encarece mais ainda. E dentro da banda larga fixa, como mostra o gráfico abaixo, as operadoras estão longe de cumprir as metas da Anatel - sejam elas de desempenho ou de satisfação do clientes.

A experiência do usuário estrangeiro

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Mas fora os preços, como é o cotidiano de quem usa Internet fora do país? Raphael Draccon, escritor brasileiro residente em Los Angeles, conversou com o Omelete sobre a conexão nos EUA. "Pago 35 dólares por uma velocidade de 50MB, com acesso livre. Bom lembrar que não precisamos assinar uma TV paga junto do pacote", diz Draccon. Em Nova York, Wellington Lacorte passa pela mesma situação. "Pago 35 dólares por 50MB e sempre foi ilimitada", diz. O preço relatado por ambos é equivalente ao pacote básico da Time Warner em LA ou pela RCN em NY, sem adicionar canais pagos ou telefonia - serviço este oferecido de forma ilimitada para quem contratar. E dentro dos contratos há sim uma franquia, mas esta é tão grande, que dificilmente os clientes a consomem por inteiro.

No Japão o negócio é um pouco diferente. Os preços da hiraki, a internet via fibra ótica de lá, variam entre 500 e 7.500 ienes (17 e 242 reais), mas em alguns lugares leva-se em conta o tipo de consumo: se o cliente quer telefone, TV ou mesmo um pacote especial para streamings como a Netflix, por exemplo. "Por aqui, quem mora em casa paga mais, quem mora em prédio paga menos", diz Rafael Yuji, brasileiro residente em Tóquio, referindo-se à mudanças de cobrança devido às estruturas das moradias.

"Dentro deste valor já estão cobranças por provedor e, às vezes, pelo modem da NTT, empresa que concede o modem", fala Yuji, que lembra ainda duas curiosidade do local: "Quando há uma taxa de download muito grande eles mandam uma carta perguntando o motivo, afinal, compartilhar conteúdo sem autorização é crime". Mesmo com essas diferenças, Rafael atesta que o acesso "é sempre ilimitado. A única Internet limitada é a móvel, via celular".

O atendimento é outro fator que distingue bastante o serviço brasileiro do estrangeiro. "Nunca precisei de nenhuma manutenção em casa, mas todas as vezes em que lidei com a empresa via telefone fui muito bem atendido", completa Draccon, que está nos Estados Unidos há quase um ano. No Japão, Rafael diz que o problema é a burocracia. "É chato para cancelar mas dá menos dor de cabeça que no Brasil. Temos que devolver o modem e lidar com uma papelada da mudança, que nem sempre é fácil", complementa.

A qualidade da velocidade da web lá fora é também muito diferente da oferecida aqui - e não só em termos de velocidade, mas também de entrega. Enquanto por aqui a Anatel determina que as operadoras devem entregar no mínimo 30% da velocidade contratada, em downloads e uploads (faixa sempre obedecida no limite pelas operadoras), o mesmo não pode se dizer de outros países. Nos EUA, a entrega supera 50%, e no Japão chega a mais de 70%, conforme se pode ver no teste feito pelo pessoal do canal 'Japão Nosso de Cada Dia'. Além da velocidade ter um padrão alto (1GB é uma velocidade real), a taxa de down e upload chega a 750MB por segundo.

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Dificuldade no Brasil, os preços e o futuro

Os problemas enfrentados pelas prestadoras de serviço aqui no Brasil também não são simples. Para se ter uma noção das barreiras e da quantidade de imposto calculado no setor, cerca de 45% da conta telefônica do consumidor brasileiro é composto de tributos. Para superar a infraestrutura precária do país, as companhias precisam de investimentos mais altos e que passam por uma série de burocracias impostas pelo governo. Não é apenas desculpa, mas sim uma realidade vivida pelo país nos últimos anos.

Ciente dos problemas, o Ministério das Comunicações começou a se mexer nos últimos meses. Em evento realizado no início de abril, o ministro André Figueiredo disse que o órgão tem "compreensão da urgência da definição de um marco regulatório que propicie segurança jurídica e garanta as bases para investimentos para as empresas”. E completa: “É o caminho natural, a telefonia fixa está em completo declínio. Temos que pensar em apostar todas as fichas em banda larga”.

A portaria criada pelo governo no início de abril prevê exigências diferentes para regiões com menos concorrência entre as empresas, além de um fundo de investimento de R$ 400 milhões para as empresas melhorarem a sua estrutura de fibra ótica. A intenção do governo é popularizar a banda larga no país. Hoje, segundo dados do ministério, 53% do território está coberto pelo serviço. A intenção é cobrir 70%, sem data determinada.

Da parte das empresas, mais especificamente da Vivo, um relatório divulgado no final do ano passado mostra que boa parte do investimento em infra este ano seria voltado para a tecnologia móvel. A banda larga fixa continua entre os principais investimentos também, assim como a expansão e melhoria da cobertura em estados como Pernambuco e Ceará. O valor total a ser colocado na país este ano gira em torno de R$ 8,9 bilhões, segundo comunicado da Telefônica/Vivo.

Limitar fere os direitos do consumidor?

Outro problema enfrentado pelas empresas que querem aderir à limitação do acesso à Internet é o Marco Civil. Sancionado pela presidente Dilma em abril de 2014, ele descreve que o cliente só poderá ser desconectado "por atraso na conta e não por limitação de franquia". Além disso, a regulamentação também nega o direito das operadoras em fazer planos específicos para cada site que o cliente consumir, nada de cobrar a mais por Netflix ou YouTube. É a chamada neutralidade da rede, um conceito que está no centro das discussões, no mundo todo, quando se fala em privacidade de navegação; defensores da neutralidade e do Marco Civil dizem que a rede é uma só, e segregá-la em nichos seria uma forma de limitar seu uso.

Nos EUA, onde Netflix e YouTube são responsáveis por metade de todo o tráfego gerado em rede, a batalha entre provedores e geradores de conteúdo teve um capítulo importante em 2014, quando a Netflix fechou um acordo com a Comcast para ter uma velocidade melhor quando um usuário assiste aos seus conteúdos. Tecnicamente, isso é possível pois a Netflix tem uma parceria com alguns provedores para que seu conteúdo seja disponibilizado dentro da rede de provedor, o que reduz significativamente a carga do tráfego online.

O acordo, porém, causa até hoje desdobramentos no país, que preza pela neutralidade da rede - fator que proíbe o tratamento preferencial para serviços na internet e defende também que prestadores não saibam o que o consumidor acessa, para assim agir de acordo com tal informação.

No Brasil, o Código de Defesa do Consumidor também vai contra as medidas que serão adotadas. Um dos argumentos usados pela Vivo é que a cobrança por franquias melhorariam as condições da rede. Rafael Zanatta, responsável pelas pesquisas de telecomunicações do Instituto de Defesa do Consumidor, o Idec, disse ao Olhar Digital que "isso é falso. Existem estudos e relatórios importantes que dizem que a franquia de dados não é a resposta adequada para o congestionamento do tráfego de rede".

Na última semana, o presidente da Anatel colocou parte da culpa na limitação da banda larga fixa no Brasil em quem joga online. "Tem gente que adora ficar jogando o tempo inteiro e isso gasta um volume de banda muito grande", disse João Rezende. Não há estudos consolidados que comprovem esse argumento.  Em testes realizados pelo usuário do Reddit GyroWorld em 2014, games como Killzone: Shadow Fall (194.52 MB), Battlefield 4 (66.88 MB) e FIFA 14 (26.7 MB) consumiram pequenas quantidades durante uma hora de jogatina.

Neste caso, o maior problema é a quantidade de dados que serão aplicadas nos planos futuros. Se começaram com 10GB e terminar com 120GB, números muito baixos, como o previsto pelo TecMundo, aí sim qualquer cliente terá problema. Um download de um jogo pesado da série God of War, por exemplo, pode consumir metade da franquia mensal de um cliente de uma só vez.

O panorama muda quando o assunto é vídeo. Para assistir a uma temporada completa de uma série na Netflix, por exemplo, cerca de 46 GB são consumidos. Cinco minutos de vídeo no YouTube em uma resolução de alta definição podem consumir até 7,5GB. E de acordo com dados da Cisco, a partir da pesquisa da Visual Networking Index, esse cenário tende a crescer ainda mais. A expectativa é de que até 2019, 89% de todo o tráfico de dados no Brasil corresponda ao streaming de vídeos - o que exigiria franquias muito maiores do que as previstas atualmente.

Começamos uma nova era?

Com um panorama geral, a limitação da Internet é tão preocupante pelas cobrança das franquias em si, como pela qualidade dos serviços prestados no país - ruins e muitas vezes com preço abusivo. A Anatel deu 90 dias para a Vivo, e qualquer outra empresa que aderir à limitação da banda larga, para medir e adequar o uso para as novas diretrizes. Pacotes ilimitados serão oferecidos e não haverá modificação para os antigos usuários, aqueles que não assinaram um plano antes de fevereiro de 2016.

Todas estas exigências são uma forma de amenizar o baque desta nova era de consumo de Internet no Brasil. Dados são o novo produto das operadoras, todas elas movidas pelo capital privado, e não há como escapar de modificações em planos e cobranças. Cabe aos clientes e aos órgãos que defendem o consumidor exigir um serviço de primeiro escalão, condizente com o preço cobrado - algo raramente visto em qualquer empresa do setor por aqui. Esperamos que as operadoras, neste momento de transição, não ignorem as manifestações de seus clientes. Afinal, quando preços e planos forem anunciados, uma nova fase do debate se iniciará e novas questões serão postas. Este é apenas o início de uma conversa ainda longe do fim.