Esse texto possui conteúdo sensível que pode ser um gatilho. Então se você possui algum tipo de trauma relacionado à feminicídio, eu recomendo cautela na leitura.

"Essa ação terá consequências…" é o que lemos no canto da tela ao completar certas partes do jogo Life IS Strange, publicado em 2015 pela Square Enix. Muitas vezes, não nos atentamos a esse ponto, sequer pensamos que as nossas ações afetam a vida de outras pessoas. E nesse meio tempo, também esquecemos que não agir diante de certas situações também é tomar uma ação.

Na última terça feira (22), o cenário de Esports como um todo foi atingido por uma notícia trágica: a jogadora de Call of Duty Mobile Ingrid Oliveira, de 19 anos, mais conhecida pelo nick de "Sol" foi assassinada por outro jogador do cenário, Guilherme Alves Costa, de nick "Flashlight", em mais um caso de feminicídio (assassinatos de mulheres cometidos em razão do gênero). O jogador se entregou à polícia 30 minutos após o crime.

Sol, jogadora de CoD Mobile assassinada na  terça-feira (23)

Imagem: Reprodução/Instagram

Ao noticiar o caso, como sempre, os veículos de mídia tradicional associaram o caso à "violência dos jogos" por se tratar de um crime cometido por uma pessoa que fazia parte da comunidade do CoD, dando a entender que aquele comportamento só se desenvolveu por conta do contato com jogos de tiro.

A verdade é que não existem estudos científicos que comprovem a relação entre os jogos tidos como ‘violentos’ e a execução de crimes hediondos. Pelo contrário  — eles afirmam não haver qualquer relação de causa e consequência entre jogos e a violência cometida na vida real — , mas mesmo assim, esse discurso permanece, tirando o foco do problema real.

A misoginia dentro dos Games e Esports

Não é surpresa para ninguém que, ao perguntar a uma mulher se ela já sofreu algum tipo de assédio ou ofensa relacionada ao gênero, a resposta seja "sim". Isso acontece porque o meio dos Games e Esports é um concentrado de conceitos da nossa sociedade. Sendo a maior parte do público muito jovem, ainda reproduzem as falas que aprenderam durante a infância e adolescência, sendo muitas vezes incapazes de julgar por si mesmos o que é ou não correto de se fazer em um meio tão amplo e diverso.

Partindo desse ponto, vemos constantemente preconceitos como o machismo, o racismo e a lgbtfobia sendo reproduzidos dentro das comunidades dos jogos. E, para muitos, esse tipo de atitude é considerada normal, pois enxergam ela como ‘apenas mais um rage qualquer’, sendo que, na verdade, vai muito além disso.

Mulheres são constantemente ameaçadas dentro das comunidades dos games. Ameaças de morte e de estupro não são incomuns quando seus companheiros de jogo percebem que trata-se de uma mulher do outro lado da tela. E essas ameaças não são palavras vazias, elas denotam a realidade feminina no Brasil, o 5º país no mundo que mais mata mulheres de forma violenta, segundo a OMS.

Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, em 2019, a cada dois minutos uma mulher sofre agressão física. A cada oito, uma mulher é estuprada. E a cada sete horas, uma mulher é vítima de feminicídio, assassinada unicamente por questões ligadas ao seu gênero. Essa situação já havia acontecido anteriormente no meio dos Esports. Em 2019, a jogadora de Rainbow Six Thainara Barbosa, conhecida pelo nick de “ruivinhayakuza44”, tinha 23 anos quando foiassassinada a facadas pelo então marido. 

Imagem: Fiocruz

Quando um homem se acha no direito de te ameaçar dentro de um jogo online, dizendo que vai te estuprar e depois matar toda a sua família na sua frente (como já aconteceu comigo dentro do League of Legends), ele não fala isso de maneira vazia. Ele fala porque sabe que você está suscetível a isso. Ele fala porque sabe que isso vai te atingir, porque nós nunca sabemos quando vamos sair de casa pra fazer uma atividade qualquer e não voltar mais. Essa é a realidade da mulher no Brasil.

Você pode fazer parte do problema

Provavelmente, em algum momento da sua vida você já escutou que “em briga de marido e mulher não se mete a colher”. Acontece que as coisas não são bem assim. Você não precisa deixar de interferir numa briga onde a situação está propensa a dar errado por estar acontecendo entre duas pessoas casadas. Da mesma forma, você não precisa deixar de dizer que o seu amigo é um babaca por ameaçar mulher dentro do seu joguinho de fada favorito.

Boa parte da reprodução desse comportamento persiste porque é amplamente divulgado nas comunidades que “homem que defende mulher é ‘gado’*”. Assim, os homens que discordam de tais atitudes permanecem calados para não serem julgados como ‘gado’, as mulheres permanecem em silêncio para não sofrer mais assédio e o comportamento misógino continua sendo reproduzido livremente pela comunidade como algo normal e aceitável.

E não é.

Então eu venho por meio deste texto te dizer algo muito importante: você não é inferior a outra pessoa por defendê-la de quem está sendo maldoso com ela, e não merece ser tratado mal por isso. Às vezes, você é só uma pessoa que tem a noção de que todos merecem ser respeitados igualmente, independentemente do gênero.

Imagem: Reprodução

A partir do momento em que você está presente diante de uma cena de injustiça e não se move para mudar aquilo, você está sendo conivente. Está fechando os olhos para algo que sabe que é ruim pra outra pessoa, está aceitando aquela situação como algo positivo que não deve ser mudado. Quando você vê uma atitude dessas e não denuncia, você é cúmplice. 

Toda vez que você se cala, acaba colaborando para a manutenção de um sistema que acredita ter poder sobre as mulheres, tirando delas o direito de se expressar e fazer as atividades da forma que elas desejam, mesmo que seja uma coisa simples como jogar. Ao fazer isso, você ajuda a fixar a ideia de que mulheres devem ser tratadas como seres sub-humanos, que não possuem voz e devem aceitar a dominância masculina sobre as atitudes delas, e muitas vezes, até sobre a própria vida. Se você acredita que seus comentários maldosos são inofensivos por terem sido emitidos dentro do jogo, saiba que é esse tipo de crença que alimenta atitudes criminosas que são realizadas fora das suas partidas.

Se você se cala, você faz parte do problema.

Eu espero profundamente que esse texto possa te ajudar a entender a sua importância dentro de uma comunidade como a dos games. Se puder ajudar alguma pessoa, mesmo que seja algo simples, ajude. Você nunca sabe quando pode estar salvando a vida de alguém. Antes desses acontecimentos, a Sol marcou nossa comunidade pela jogadora e pelo ser humano que era. Que todas as discussões e questionamentos que se iniciaram por conta dessa situação nos ajudem a construir um cenário melhor para todos, igualmente. Que a história dela nos ajude a sermos melhores uns para os outros

Todas as nossas ações têm consequências.

* "Gado" é uma expressão utilizada dentro dos jogos online para descrever uma pessoa, geralmente do gênero masculino, que age como "servo", sem personalidade própria, fazendo de tudo para agradar alguém.

Foto de capa: #MyGameMyName, campanha criada pela WonderWomenTech em parceria com a Vivo, com o objetivo de conscientizar a comunidade sobre o assédio moral e sexual vivido pelas mulheres no ambiente de jogos.


Juliana "Moondded" Alonso entusiasta de Esports desde 2013. Fundou a Sakuras Esports, em 2018, e depois disso não parou mais de falar e lutar pelo cenário feminino e pelas mulheres nos Esports. Você pode acompanhar mais sobre ela em @moondded nas redes sociais.