Capítulo II - Família

Reunidos em preleção antes da final contra a INTZ, brTT abre seu coração para motivar os companheiros

Bruno Pereira Editor de Esports
Foto: Legends Rising | Riot Games Brasil
Foto: Legends Rising | Riot Games Brasil

*Clique aqui para ler o primeiro capítulo da série*

Uma fina cortina preta separava o sol da tarde, o relvado do Allianz Parque e a brisa leve que batia em Mylon, SirT, Kami, brTT, Dioud e MiT do início do momento mais importante de suas carreiras - e talvez de suas vidas. E não era preciso espiar por entre os rasgos da cortina para ver o que estava do outro lado, podiam sentir.

Lá, não só estava o primeiro lugar do CBLoL, a atual campeã INTZ.

Passando a cortina, estava o medo de falhar.
O receio de todos os sacrifícios não serem suficientes.
Estava o sonho distante de ver um Mundial novamente de casa.
E a possibilidade de ser a última série ao lado uns dos outros.

Mas... Também estavam doze mil vozes. Ecoando, retumbando.
Também estava o palco perfeito para cinco irmãos darem a vida por algo maior que eles.
Estava também a chance de entrarem para a história.

Reunido com seus companheiros antes do início da série de suas vidas, Felipe “brTT” Gonçalves decidiu em qual lado da cortina estaria.

Fixou seus olhos em todos ao seu redor, levantou sua mão direita, abriu seu coração e começou a falar.

Quero lembrar uma coisa… Isso aqui não é um time, essa porra é uma família.
brTT

Para alguém que ficou muito conhecido por gritar bordões nos campeonatos e nas streams, gesticular, apontar, bater na mesa de frustração ou por uma jogada magistral, o verdadeiro brTT mal parece ser uma pessoa tímida. Pelo contrário, sua figura intimida.

Talvez por seu perfil fugir totalmente do estereótipo gamer. Suas tatuagens, que misturam seus sentimentos e suas paixões, incluindo três sobre League of Legends, mostram o desejo de se expressar além das telas. Seus milhares de seguidores, que o apelidaram de “Pai”, compram qualquer briga em que brTT esteja. Seus cinco riscos debaixo do olho direito, cada um representando um campeonato nacional, são a vitrine de uma carreira consagrada.

BrTT é grande. Para muitos, o maior. E isso tem um preço.

“Tenho certeza que não é qualquer jogador que tem esse poder de influenciar no jogo dos seus companheiros com apenas uma palavra”, diz brTT. “Digo sempre que tenho esta ‘aura’, e ela atua tanto para o bem quanto para o mal, só basta eu saber controlar ela”.

Recém-chegado na paiN Gaming e no Brasil em 2015, Dioud não viveu o cenário competitivo brasileiro de seu começo. Não conhece as histórias das equipes, muito menos dos jogadores. Sequer falava o idioma. “Só quando você começa a entender o português você realmente começa a entender a personalidade que as pessoas têm”, diz o francês.

Foto: Bruno Alvares | Riot Games Brasil
Foto: Bruno Alvares | Riot Games Brasil

“Durante a Segunda Etapa, lembro de um treino com o brTT em que eu estava de Janna contra a INTZ. Esse jogo eu morri três vezes em três minutos de jogo. A terceira vez que voltei para a lane eu estava nível dois, e o brTT cinco. O time estava conversando sobre o que fazer, e lembro do brTT comentar ‘Relaxa gente, tem uma Janna nível dois do meu lado’. Me senti extremamente insultado”, recorda o Suporte.

A batalha dos cinco jogadores e do técnico MiT de construírem o sentimento de unidade durante o campeonato passava diretamente pelo emocional líder da equipe, brTT. Quando cada série pode ser a última da equipe, que desafiava oponentes na mesma intensidade que desafiavam a si próprios durante o dia a dia, qualquer palavra pode bastar para tudo desmoronar. Ao entender o que brTT havia dito, Dioud naquele momento segurou a chave para a equipe alcançar o sucesso ou para abrir a porta dos fundos.

“Esperei o final de jogo para falar na cara dele o quanto havia me sentido mal com o que ele havia dito”, diz Dioud. “O brTT é um cara que pode ser intimidador, mas nunca deixei que qualquer postura dele ou do time afetasse o que estávamos fazendo, o objetivo que tínhamos em mente. Estávamos ali para dar o nosso melhor, e por isso o meu papel às vezes era de servir como uma esponja para a negatividade da equipe. Depois desse momento de papo-reto, tudo começou a fluir de uma maneira natural, e quando não era assim, escolhemos muito bem quais brigas queríamos realmente comprar”.

Cinco jogadores brilhantes não ganham campeonatos, times ganham.

“Um time não precisa ser uma família, e hoje eu entendo isso, mas para aquela paiN isso era uma necessidade”, diz Kami, Meio da paiN. “E o brTT, acima de qualquer outra pessoa, entendeu isso de uma maneira muito pessoal. Desde aquela época em que todos os times tinham uma gaming house, ele já levantava a bandeira de os jogadores aprenderem a separar suas vidas pessoais e profissionais. Às vezes você só precisa se entender com alguém dentro de jogo. Neste quesito ele sempre foi um cara muito à frente do seu tempo”.

E principalmente, partia de brTT, mesmo tímido como é, mostrar isso para os companheiros. Um líder não se faz apenas na fala, se faz nas ações.

“O brTT é um cara brilhante, e falo como alguém que depois cometeu o erro de colocá-lo na reserva em 2016, o que culminou em sua saída da paiN”, diz MiT, ex-técnico da paiN. “Ele é um jogador único em questão de tomada de decisão, faz uma diferença absurda em uma série do peso de uma final. É o cara que vai pegar a bola e fazer o gol. Ele é esse cara”.

Como o principal jogador brasileiro em 2015, brTT foi escolhido pela Riot Games na época para ser o jogador foco do documentário “Legends Rising”, que contava a história pessoal e a batalha de uma figura até o Campeonato Mundial de League of Legends. Durante toda a Segunda Etapa, câmeras seguiram o Atirador, contando um retrato pessoal da batalha interna e externa do carioca rumo ao seu maior objetivo. E com ele, a história de seus cinco companheiros.

“Ver o quanto o brTT se doava e o quanto ele dava este passo pra frente nos momentos que mais importava refletia muito na gente”, comenta SirT, Caçador. “Cada palavra que ele falava atingia o nosso subconsciente. Naquela preleção antes da final contra a INTZ no Allianz Parque ninguém pensava nas câmeras ou se ele estava fazendo aquilo pelo documentário. Estávamos concentrados em deixar toda aquela emoção entrar dentro da gente e criar uma atmosfera única. A de que éramos realmente uma família”.

“O discurso foi muito dele em um momento tão emotivo”, diz MiT. “Têm partidas que ele fica pra baixo e ele precisa que o time tenha as suas costas, mas quando ele está bem, confiante e querendo, falar como ele falou é algo que apenas o brTT consegue fazer. O Legends Rising só mostrou isso para as pessoas. O discurso veio do coração, não tenho dúvidas disso, e era tudo o que a gente precisava. A gente quis trazer aquele jogo pro coração”.

Se vocês estão vendo que alguém está correndo perigo, você vai deixar morrer, o seu irmão? Não vai!
brTT
Foto: Bruno Alvares | Riot Games Brasil
Foto: Bruno Alvares | Riot Games Brasil

Durante o discurso de brTT, quase que como posicionado pelo destino, ao seu lado estava Kami.

Também considerado por muitos como um dos melhores jogadores da história do Brasil, o Meio multicampeão pela paiN é, para todos os efeitos, um jogador brilhante. De forma diferente de brTT, Kami conquistou a segunda maior legião de fãs na região (à época) através de sua habilidade dentro de jogo aliada à sua postura sempre concentrada e tímida.

Kami não grita. Kami não gesticula. Mas Kami muda um jogo em apenas um segundo. “Ele é este tipo de jogador, um gênio”, diz MiT, que em 2011 trouxe Kami para o cenário competitivo com apenas 15 anos de idade.

Por ter os dois maiores atletas da época no time, a paiN já conquistou uma legião de fãs, e através do sentimento construído durante a Etapa, trouxe cada um deles mais para perto da organização e dos outros jogadores. Todos ansiavam para ver Kami e brTT atacarem o Rift juntos, esperando o próximo grande momento, a próxima grande jogada.

Unidos dentro de jogo, a dupla formou uma combinação mortal para os adversários.

Fora dele, uma barreira invisível assombrava-os.

Foto: Bruno Alvares | Riot Games Brasil
Foto: Bruno Alvares | Riot Games Brasil

Kami e brTT atuaram juntos em dois períodos, 2012-14 e 2015-2016. A parceria que conquistou o bicampeonato brasileiro para a paiN, quebrando todos os concorrentes, no entanto, não foi forte o suficiente para derrubar a linha tênue entre jogadores e amigos.

Kami faz silêncio após a pergunta sobre sua relação com brTT. Pelo nariz, solta ar e consigo ver sua cabeça balançando negativamente enquanto um sorriso triste se abre pelo seu rosto. “Curioso, fiquei um pouco emocional pensando nisso”, diz, por fim.

“Todo mundo sabia que eu e o brTT éramos super próximos. Tinham essa visão de que ele era o irmão mais velho, e eu o mais novo, e sempre levamos isso muito próximo de nós, mas… sinto que fui muito injusto com o brTT em diversos momentos, no sentido de poder ter sido muito mais próximo dele. Poderia ter aberto as portas para realmente termos o relacionamento que todos sentiam que a gente tinha”.

Kami e brTT sentiam a verdade nos olhos do público.
Tanto que este sentimento de respeito e admiração quase que atuava como uma barreira entre o que era e o que poderia ser entre os dois maiores atletas de LoL do Brasil.

“Eu carrego muita culpa dentro de mim em relação a isso”, diz Kami, lentamente. Processando um sentimento de anos atrás. “Me arrependo de não ter passado mais tempo com ele, e se eu pudesse voltar no tempo com certeza faria muitas coisas diferentes para mudar a nossa história fora de jogo. Nunca brigamos, mas ele sempre dava abertura para sairmos juntos, sermos mais próximos e ter uma proximidade de família sem precisar passar por todas as dificuldades que, depois, tivemos que passar com a paiN em 2015”.

Foto: Bruno Alvares | Riot Games Brasil
Foto: Bruno Alvares | Riot Games Brasil

Para pessoas como brTT, abrir-se para novas amizades não é um processo fácil. Há um quê de fragilidade em criar um laço como este, e apenas quem constrói confiança e respeito, sentimentos difíceis de serem construídos, são permitidos no círculo mais íntimo.

Por sua habilidade, trabalho duro e sucesso, Kami conquistou o respeito.
Pelo tratamento, pela bondade e pelo seu carisma, Kami conquistou a confiança.

Mas amizade verdadeira não é uma via de mão única. E por mais que ambos tivessem os ingredientes para fazer funcionar… não funcionou.

“A minha relação com o Kami é um pouco triste”, disse brTT, tal como o companheiro de equipe, pausadamente. “Saber que a gente deixou de aproveitar muitos momentos de amizade e irmandade… eu tinha realmente um carinho muito grande por ele, algo de irmão mais novo, mas ficava apenas neste sentimento. Não rolava proximidade. Eu tentei algumas vezes me aproximar, mas era muito difícil, ele era um cara bastante fechado, e eu sempre escolhi muito bem para quais pessoas eu verdadeiramente me abria”.

“É difícil de explicar o que acontecia, porque eu tinha uma personalidade muito diferente da dele. A questão é que eu não conseguia quebrar a barreira que tinha, e me arrependo bastante disso, de não ter tentado tanto, de ter desistido muito rápido. Por ser mais velho e experiente, eu poderia ter insistido mais na nossa amizade, em conversar mais com ele, até ensinar alguma coisa da vida. Senti que poderia ter passado bastante coisa pra ele, mas acabou que ficou só no jogo, e carrego essa culpa comigo”.

Ao lado de brTT durante o discurso antes da série de suas vidas, Kami olhava para brTT com afeto, com admiração e com respeito.

Um respeito que não se construiu apenas dentro de jogo.
Um sentimento que, apesar de barreiras separarem, estava ali, vivia.

Um carinho de irmandade, um amor de família.

Comunica, fala tudo. Se estiver precisando de ajuda, fala. A gente vai te ajudar, não vai deixar você morrer!
brTT

“O brTT é muito emo”, diz Mylon, sendo Mylon. “Aquilo veio do fundo do coração dele mesmo, e fez muito sentido. Ele conseguiu dizer em palavras o que eu sentia, de estar ao lado de cada um, de confiar. Traduziu minha intenção em palavras, e a gente aplicou isso no jogo. Jogamos como um time. Isso é League of Legends”.

“É muito legal ver o quanto a equipe levou o discurso do brTT do coração para o mouse”, diz Thúlio. “O que ele fala é realmente o que acontece dentro de jogo. Em diversos momentos na final você vê que um ou outro é pego sozinho no mapa, e o time rapidamente corre para acudir ou pra cobrar o cara que matou alguém. Todas essas kills não eram convertidas necessariamente em algo no mapa, mas deixava todo o senso de equipe, todo o discurso sobre a família realmente à prova”.

A paiN não apenas falou, como fez. Em cada momento daquela final, os jogadores seriam líderes que liderariam por exemplo, transformando as suas palavras em ações.

“Antes do brTT, eu e os psicólogos usamos uma metáfora para explicar o que era aquele time, diz MiT. “Éramos um corpo só. BrTT era o coração, Thúlio e Dioud a cabeça, por serem os coordenadores de jogadas e quem mais abriam mão de seu jogo em prol do time. Mylon e Kami eram os os membros, e colocavam as mãos em tudo o que fazíamos. Quando a gente transforma o time em algo humano e mostramos que fazíamos parte do mesmo corpo, todas as peças do quebra-cabeças se encaixam”.

“Os psicólogos falaram também uma coisa muito pertinente sobre o Dioud, que era apontado pelos analistas e pela torcida como o ponto fraco da equipe”, lembra Mylon. “‘Uma corrente só é tão forte quanto o seu ponto mais fraco’, diziam. Então se o nosso ‘ponto mais fraco’ fosse forte pra caralho, o time inimigo estava fudido”.

“Saímos daquela conversa sem nenhuma possibilidade de perder aquela final”, crava MiT. “A INTZ poderia jogar o que quisesse, poderia voltar no tempo um milhão de vezes, eles nunca ganhariam da paiN naquele dia”.

Vamos pra cima deles! Um, dois, três, GO PAIN!
brTT

“Tinha uma coisa um pouco mística naquele time e naquela final”, diz MiT. “Todos se doaram tanto, sacrificaram tanto desde o começo de suas carreiras para estar ali naquele momento… Pelo tamanho do evento e tudo o que ele significaria para o cenário brasileiro, foi um presente muito grande termos sido a equipe a quem os ‘deuses do League of Legends’ entragaram a chave para abrir as portas para o futuro. Quase como falando ‘Aqui está, obrigado por tudo o que vocês fizeram até agora, vocês merecem. Agora, vão lá e deem o último passo’”.

Assim, juntos, como uma família, a paiN ultrapassou a fina cortina preta, deixando o verde da grama do Allianz Parque e o silêncio de um estádio vazio e passaram para o calor da ansiedade antes da subida para o palco, tremendo com o crescente barulho de doze mil torcedores alguns metros acima, no palco.

“Se eu fechar os meus olhos, consigo me lembrar da sensação e do sentimento de subir o elevador que nos levava ao palco e à torcida”, diz Dioud, certamente fechando os olhos. “Quando estávamos embaixo, aguardando a INTZ subir primeiro, começamos a ouvir os fãs e falamos ‘Nossa torcida vai gritar muito mais quando estivermos lá’. Então, subimos na plataforma e o Kami deu a ideia de ficarmos de costas e levantarmos as mãos, na pose do anime One Piece. Uma pose de união e confiança”.

Os motores do elevador começaram a funcionar, e a paiN lentamente foi sendo alçada para o momento mais importante de sua história.

A cada centímetro a mais que os corpos de Mylon, SirT, Kami, brTT e Dioud apareciam, a torcida falava…

E gritava…

E urrava…

Ficou ensurdecedor.

Os jogadores se viraram e começaram a descer as escadas para a frente do palco, trocando a vista do primeiro anel do Allianz Parque e das costas do imenso telão pela visão do anfiteatro do estádio em sua totalidade. Dois anéis lotados com pessoas de diferentes lugares, diferentes personalidades, mas que ali eram um só na voz.

PAIN! PAIN! PAIN!

“E foi aí que pensamos”, disse Dioud, sorrindo. “A gente realmente chegou nesta final, neste momento, e com esta família. Precisamos lembrar disso para o resto de nossas vidas”.

Publicado 15 de Agosto de 2020
Texto Bruno "LeonButcher" Pereira
Tecnologia Igor Esteves, Eliabe Castro e Thays Santos
Imagens Bruno Alvares e Pedro Pavanato (Riot Games Brasil)