[Desejo revelado] 

O filme Caché (2005) estréia no Brasil com a mais chocante cena de suicídio do cinema. É mais uma das artimanhas do diretor Michael Haneke, que adora provocar o espectador em seus filmes desde Violência gratuita (Funny games, 1997), passando, é claro, por A professora de piano (2001). Em Caché, Haneke vai além do prazer da contemplação, o que adoramos veladamente em revistas sobre celebridades, até o explícito Big Brother Brasil. O filme tem uma teoria clara: o observado obrigatoriamente vira observador e não consegue mais controlar a invasão de seu pensamento por fantasmas do passado que surgem sob a forma de culpa. Quem tem alguma dúvida sobre essa teoria é só conferir no recém-lançado Música para camaleões, coletâneas de textos (ficção ou não) de Truman Capote. Em "Uma criança linda" Capote descreve uma tarde de encontro com a amiga Marilyn Monroe, que, por saber-se todo o tempo vigiada, observa e interpreta qualquer movimento ao seu redor: num velório, na rua, olhando vitrines, em um bar. Pelo medo da exposição nossa visão se transforma em um telescópio inflexível. Caché não explica nada, trata todo o tempo do camuflado, seja pelo personagem misterioso que filma, seja pelo passado que bombardeia a mente. O filme perturba de modo irritante, recusa-se a ser banal, e é de inegável impacto.

[O poder do olhar] 

A identificação com o casal feito por Daniel Auteuil e Juliette Binoche é imediata. Um desconhecido envia fitas de vídeo mostrando que sua casa é filmada. Binoche, a esposa, arma-se de palavras para defender a moradia e seu filho, e questiona a virilidade do marido. Auteuil faz um crítico literário acostumado à exposição, pois tem um programa de debates na televisão, mas se vê ameaçado ao saber que a vida da família é registrada por um estranho. Essa situação de absoluto desconhecimento obriga-o a mergulhar num passado perdido e buscar algum inimigo, alguém que tivesse algo a ganhar com a surpreendente dominação do cotidiano banal. O olhar sobre nós obriga a uma tomada de posição: escondemo-nos ou procuramos assumir a personalidade imposta por uma expectativa de outros. O personagem de Auteuil não consegue se esconder, pois é tomado por recordações reveladoras que não combinam com sua docilidade. Aquele indivíduo culto, liberal e correto tem um passado negro com o qual é impossível se identificar no presente, mas também do qual é dificílimo se livrar. Nesta divisão qualquer um pode se transformar em animal.

[Sumiço punk] 

No filme Billy Elliot (2000), o garoto de uma pequena cidade operária inglesa decide romper com os padrões locais e abraça a carreira de bailarino. Em sua primeira tentativa de ingressar em um curso renomado é questionado por uma examinadora: por que resolveu seguir esse caminho? Após um breve "não sei", Billy responde: "porque a dança me faz sumir". Em Caché a todo o momento percebemos que os personagens querem sumir ou fazer sumir. A invasão de nosso cotidiano por uma situação que abala as estruturas mais elementares é quase sempre insuportável. Isso ocorre com a violência, mas também pode acontecer com a paixão. Billy recorre à dança para sumir e assim desviar das expectativas da família e sociedade sobre si, com as quais não se identifica. Baladeiros confirmam que a dança é altamente apropriada para o sumiço de si, mas sexo e esporte não andam atrás. Quem duvida que temos aproveitado disto para cada vez mais desaparecer? Os punks quase evaporaram a classe média inglesa nos anos 70. Roupas negras, furos pelo corpo e tatuagens macabras fizeram surgir novas identidades entre os jovens contra todas as tentativas de adaptação social. Passados os efeitos de Ramones, Clash, Sex Pistols e depois Nirvana ainda encontramos um punk suavizado, sofisticado e deliciosamente palatável, embora ainda transgressor em Prodigy. É só conferir na coletânea recém-lançada (Their law: the singles 1990-2005). Mais do que trilha sonora para cenário de Matrix - não à toa o produto cultural que deflagrou a associação entre filosofia, futurismo e espetáculo - Prodigy consegue misturar contravenção, eletroniquices inventivas e diversidade cultural.

[O sumiço do corpo: perdidos ou desesperados?] 

O que queremos com sexo, esporte ou a dança? O que buscamos com plásticas, cremes, drogas que mexem com o psiquismo? Desaparecer. Pode dizer que é para melhorar de forma estética. Internamente ou externamente. Ou talvez dar forma a algo que é impessoal. Mas o que realmente queremos é fazer sumir o que incomoda. E o que incomoda é a marca do tempo que nos lembra que morreremos. A tentativa patética e inevitável de dominarmos a natureza só nos faz lembrar que ela domina nossos corpos. A cultura é a única saída para a tradução desse dilema intraduzível. Dá algum papel a nós mesmos enquanto a morte não chega para anunciar a vitória da natureza. A sociedade burguesa do final do século XIX descobriu que tinha poder, seja pela economia, seja pela política. Abaixo a nobreza deitada em berço esplêndido. Mantida apenas a decadente, mas necessária Inglaterra, origem de todas as transformações da contracultura na década de 1960. As primeiras temporadas de Lost e Desperate housewives acabam de ser lançados em DVD no Brasil. As duas séries, com cenários tão diversos, tratam de assunto parecido: como sumir com um passado maculado e construir um futuro purificado? Em Lost, os personagens sobrevivem um desastre aéreo e se reinventam numa ilha do Pacífico. Toda nova chance lembra do passado, mesmo em um cenário em que o antigo não precisa ser revelado. Mas nossas mentes não dão sossego. Em Desperate housewives uma vizinhança aparentemente tranqüila encobre os mais tremendos segredos. Os dois programas falam da persistência da realidade em nossa imaginação em detrimento à verdade. O problema é: o que fazemos com aqueles pensamentos que insistem voltar como sonhos, como sintomas?

[O boom da barbárie] 

Lost e Desperate housewives falam de nossas personas secretas, aquelas que fogem do convívio em comum, mas que estão estampadas em nossos atos mais banais. Não precisamos estar perdidos no meio do oceano para nos reinventarmos. É o que fazemos em qualquer sala de bate-papo da internet. Mentiras a granel ou fantasias verdadeiras? Não há escapatória. Sexo virtual, novas identidades e afinidades mais bizarras vieram para ficar e trazer conforto para aqueles que silenciosamente conversavam com seus fantasmas. A virtualidade atualizou o desejo que pode ser realizado lá mesmo, sem precisar ofender, nem machucar aqueles com os quais convivemos. Para sermos aceitos em nossas novas e extravagantes personalidades é preciso que respeitemos ao outro. Mais do que nunca. Talvez este tenha sido o grande triunfo de Crash - No limite, ganhador do Oscar que agora sai em DVD. Além do retrato-de-uma-grande-cidade-violenta, o filme trata de uma segunda chance que todos podemos ter. A discussão sobre o racismo aparece em Caché e Crash. Óbvio, necessário e atual em épocas de ameaça terrorista, mas secundário frente à transformação que pode vir da barbárie. Esta pode ser entendida como o triunfo da burrice e da ambição com resultados desastrosos; um misto de involução e impotência. Caché denuncia a culpa e a hipocrisia, Crash defende a transformação sobre uma terra devastada.

[Legolândia] 

O ótimo Dicionário do século XXI foi reeditado pela Ed. Record. Jacques Attali, economista e consultor francês escreveu o livro em 1998, portanto bem antes de 11 de setembro e antes do Katrina. Não importa. Está tudo ali previsto nos verbetes que organizou como um dicionário. Ótima saída para um texto que poderia ser chato, mas como dicionário envolve pela constatação do que já acontece em suas previsões de quase dez anos atrás. Dentre ela, o conceito de CiviLego, uma estrutura urbana aglutinadora de diferenças, alegoria das grandes cidades. Nos Estados Unidos, Los Angeles é o exemplo típico. No Brasil, certamente São Paulo. Do caos urbano pode emergir fraternidade, criatividade, mesmo com toda a diferença econômica. Situação típica: na mesma praça pública temos manifestações evangélicas ruidosas, bailão sertanejo e saída da ópera. Ou qualquer porta de restaurante grã-fino, com manobristas que moram a três ônibus de distância e conversam com algumas crianças pedintes às quatro da manhã. Falência da sociedade? É óbvio. Daquele antigo resto de utopia, mas não de um futuro que elimine a hipocrisia e valorize a inventividade que pode vir das situações mais adversas. Os jovens franceses de 1968 exigiam mais acesso ao conhecimento. Espertinhos os jovens franceses de hoje, que pateticamente tentam garantir um empreguinho público para poderem continuar no celular, na internet e nas baladas. Inútil. Neste mundo não há retorno. Entre a droga e o dogma religioso é melhor ficarmos com a saída pela criatividade solidária, aceitação de todas as diferenças.

[Cadáveres ilustres] 

O eternamente gótico Tim Burton aprontou mais uma. A noiva-cadáver, que agora sai em DVD, só confirma a imaginação sem limites para o estranho que deu certo. Obra-prima. No mesmo estilo de animação de O estranho mundo de Jack, o musical trata da comunhão entre a maior das diferenças possíveis: um casamento entre o mundo dos vivos e o dos mortos. Pelo menos dos mortos que povoam a imaginação dos vivos. O tema é a renúncia. E a mais nobre delas: a do amor. Deixo para outro a possibilidade de sonhar com aquilo que não posso ter. Nobreza. Duas noivas - uma viva e uma morta - disputam elegantemente o amor de um jovem que, como em quase todos os filmes de Burton é feito por Johnny Depp. Lívido, tímido e atrapalhado. A noiva-cadáver fala de paixão, esperança e abnegação. O amor cria espaço para o outro florescer, enquanto ele faz o mesmo por você. Importar-se com o ser amado é estar presente de forma ausente. É dar atenção sem ligar para si mesmo. É ainda a maior aventura da humanidade. Dá possibilidade de conhecermos a forma mais próxima da verdade que é o ser amado. Traz a possibilidade de chegarmos à eternidade quando sabemos parar no momento certo, quando percebemos que amamos o amor que sentimos pelo outro e assim podemos continuar amando. É o mais sublime das relações humanas. É o máximo da lealdade conosco.

[Do silêncio ao infinito] 

Marisa Monte é uma reconhecida reclusa. Recusa falar de sua vida pessoal, aparecer na imprensa ou até mesmo fazer shows. A compositora/cantora prefere a companhia de sambistas da velha guarda a qualquer evento que traga exposição. Não parece birra, mas uma escolha de vida. Sorte nossa. A intérprete que explodiu no final dos anos 80 tem se preocupado em pesquisar, cantar e recriar a canção carioca genuína em um trabalho iniciado por Nara Leão. Infinito particular e Universo ao meu redor têm confundido a crítica, que prefere o segundo, supostamente mais ligado às raízes do samba. Nada disso. A audição cuidadosa faz a mistura e o esquecimento das diferenças de propostas entre os dois discos. Em Infinito ela avisa: "Eis o melhor e o pior de mim". Modesta. Em Universo (na canção "O bonde do dom") confessa: "Vivo cantando só para te tocar". Os parceiros habituais, Arnaldo Antunes e Carlinhos Brown estão em letra, melodia e estilo, mas a cantora preferiu os arranjos sutis às vozes dos companheiros Tribalistas. Universo particular presta tributo ao samba de morro, mas para falar da intimidade de MM: criança, casa, flor e amor. Com os Titãs a música brasileira começou a traduzir aos jovens alguns conceitos elementares como polícia, fome, religião. Marisa é da mesma escola que define, explica e complica com sua refinada atmosfera: o diálogo com os arranjos. Preciosidade. 

[Evolução pela mentira] 

Qual o limite da mentira? Caché mostra que há limite para escondermos fatos de nós mesmos sobre nós mesmos. É fácil a transformação em pesadelo. Para o filósofo David Livingstine Smith a mentira é um mal necessário para a evolução. Animais se camuflam, assim como plantas, para se protegerem. Para o autor do recém-lançado Por que mentimos: os fundamentos biológicos e psicológicos da mentira (Ed. Campus) a mentira é a verdade da nossa existência. Sem ela estaríamos condenados ao isolamento social. Dizer a verdade todo o tempo, o culto da espontaneidade transformam qualquer ser humano rapidamente em insuportável. A depressão seria o estado mental da veracidade. Na depressão sabemos do mais legítimo fato humano: nada somos, vamos para o nada. Somos completamente superáveis. Antes da depressão vem a vontade de sumir, de ludibriar o desconforto de nossa decomposição. O auto-engano engana o óbvio ditado pela biologia, mas que a cultura se nega a admitir. O fim é o que nos guia. Cada doença do psiquismo tem sua manifestação de acordo com a cultura do momento. O tema da depressão é a realidade da finitude. Um médico também mente para o paciente quando diz que esse estado é passageiro? A depressão eliminaria a capacidade de nos enganarmos sobre nosso inexorável fim, mas ao ser - humano também foi dada a capacidade de se divertir. Desde pequeno somos curiosos sobre o que nossos pais fazem a portas trancadas. Na puberdade também queremos fazer "aquilo" e a partir da adolescência pensamos que sabemos tudo sobre "aquilo". Vida adulta começa quando "aquilo" não satisfaz mais nossas vidas. É pouco, não dá futuro. O problema da mentira é a perda da referência. Verdades desaparecem no ar, mentiras não. Perpetuam a desconfiança. Não é uma questão moral, mas ética. Como diferenciar mentira da intenção de trapacear? Para Livingstone Smith a capacidade de enganar está ligada à evolução, mas o que acontece quando não conseguimos mais nos enganarmos para enganar os outros?

[Alugar ou comprar? Eis a questão!] 

O cinema namora os musicais da Broadway com pouco sucesso atualmente. Apesar do hexa-oscarizado Chicago, de 2002, a lembrança é pálida comparada com A noviça rebelde (The sound of music), de 1965, que com seus cinco Oscar grudou para sempre no imaginário popular. Está na quarta edição em DVD no Brasil e a sexta nos EUA!!! E o mundo a comprar...

Estréia este mês Rent - Os boêmios nos cinemas brasilianos. O musical - há dez anos na Broadway - foi e é um extraordinário sucesso, ainda mais glamurizado pela morte do seu autor por um aneurisma pouco antes da estréia! Passou palidamente por palcos paulistas, sem nenhuma importância. Não entendemos ou não participamos dos movimentos culturais típicos de megalópoles? Na arte parece que não! Os temas de Rent - misturas culturais, sexo, gay, lésbico, a três... drogas, HIV, morte por AIDS - não chamou atenção por aqui. O filme não fará sucesso, mas é bom. Honesto, coerente com o original da Broadway e de apelo mais universal do que o problema de aluguel em Alfabet city, New York City! Não esqueçamos que, baseado na ópera La Bohème, de Puccini, tira desta o essencial: os jovens mudam o mundo se puderem. Sonham, desejam e morrem por isto. Os mais velhos escrevem musicais, peças e óperas sobre eles, quando e enquanto conseguem se lembrar como já foram...

"A vida é apenas sombra ambulante,
um pobre palhaço que se pavoneia
e se agita uma hora em cena,
sem que depois seja lembrado...
é uma história contada por idiotas,
cheia de som e fúria que nada significa!"



Macbeth
Shakespeare