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"Não batam palma, façam exigências", diz organizador de denúncia contra Mil Grau

Ricardo Regis uniu vítimas de perseguição e alerta: "plataformas de conteúdo precisam resolver casos de ódio diretamente"

Por Bruno Silva 09.06.2020 15H15

No último dia 7 de maio, Luiz Gustavo Queiroga sentiu-se representado em VALORANT pelos personagens Phoenix e Raze, também negros, e expressou sua alegria no Twitter. "Sim, no VALORANT só jogo com eles porque são pretos! Representatividade é tudo", escreveu o jornalista de esports da ESPN Brasil.

Foi o suficiente para que Queiroga passasse a ser perseguido.

As respostas de cunho racista ao tuíte foram parte de uma campanha coordenada pelo canal Xbox Mil Grau, que tem mais de 170 mil inscritos e ganhou notoriedade no YouTube a partir de 2015 com o discurso de promover o console da Microsoft e denunciar "casos de desfavorecimento à plataforma pela mídia e influenciadores". Entretanto, ao longo dos anos, o grupo ganhou notoriedade por publicações e declarações de cunho racista, transfóbico e misógino, além de perseguições a jornalistas, youtubers e streamers do meio.

A perseguição a Queiroga foi o primeiro momento em que Ricardo Regis resolveu transformar um sentimento de revolta em vontade de agir.

"Eu me sensibilizei muito", conta o editor de vídeo, que é negro e fundador do canal de games Nautilus.

Um mês depois, ele emergiu como o principal organizador de um movimento na comunidade brasileira de games que ajudou a expor, de uma vez por todas, o discurso de ódio do Mil Grau, resultando na exigência por parte da Microsoft de que o grupo pare de usar a marca Xbox, o banimento do canal do grupo na Twitch e a remoção de conteúdos e a retirada da monetização de vídeos do canal no YouTube.

Mas, para Regis, o sentimento de injustiça vem desde antes do discurso de ódio do canal que ajudou a derrubar.

O racismo já o havia feito abandonar a produção de conteúdo de games desde janeiro, quando deixou de publicar vídeos no próprio canal que ajudou a criar. "Como pessoa negra, a gente se sente sozinho. Temos que tratar sozinhos sobre assuntos de negritude, e sequer somos convidados para falar sobre videogame", reclama. "Quero ser como vocês, queria poder fazer o que vocês acham que existe na cabeça de vocês, de que 'não existe cor'. O negro não tem acesso ao console de última geração porque é caro, e vejo poucos negros no jornalismo de games".

"Não acho que meu papel é ensinar os caras [sobre racismo]. Isso é responsabilidade individual, eles tinham que aprender. Então fui pra cima. Para mim, a estratégia não é ensinar. É deboche", explica Regis.

Com isso, o editor passou a apontar trechos de vídeos com falas de cunho racista do grupo em suas redes sociais. "A partir disso, eles queriam me tirar do sério". No dia em que Regis passou a expor o grupo, os integrantes do canal Mil Grau abriram uma transmissão ao vivo YouTube jogando o game Sea of Thieves, com o título "Odeio macaco". A thumb do vídeo mostrava um modelo 3D do animal dentro do game de piratas.

"É o tipo de coisa que eles fazem na internet há tempos: jogar no limite do possível. A gente sabe o que eles querem dizer com isso. É a estratégia deles", aponta Regis. "Em seguida, debochei muito da cara deles. Tirei eles do sério e eles seguiram: negritude virou um grande tema dos conteúdos deles".

Dezoito dias depois do caso com Queiroga, o racismo tomou conta do debate público com a morte do norte-americano George Floyd, em Minneapolis (EUA). Floyd morreu após o então policial Derek Chauvin ajoelhar-se em seu pescoço e sufocá-lo por quase 10 minutos, enquanto estava deitado de bruços e algemado na rua.

A morte de Floyd, a última entre inúmeros casos de violência policial contra a população negra, causou uma onda de protestos nos Estados Unidos, com repercussões na indústria de games: eventos foram adiados e diversas empresas, incluindo a própria Microsoft, repudiaram o racismo.

Cinco dias após o ocorrido, um dos integrantes do canal Mil Grau publicou um tuíte com uma imagem de manifestantes nos EUA, em sua maioria negros, ao lado de outra imagem, com astronautas no foguete da SpaceX que decolou dos EUA rumo à Estação Espacial Internacional (ISS). Em cima, uma legenda: "O que negros estão fazendo hoje / O que brancos estão fazendo hoje."

Twitter/Reprodução

"Para mim, aquilo foi tão explicitamente racista, que compartilhei a imagem no meu perfil, e a partir dali gerou alguma comoção", conta Regis. "Algumas pessoas que me seguiam por conta do meu trabalho no Nautilus, e várias delas começaram a se juntar, indignadas. Elas estavam vendo, acredito eu, que alguém estava tomando um posicionamento."

No mesmo dia, Regis passou a receber diversos vídeos que expunham o discurso de ódio dos integrantes do grupo. "A partir daí, pedi a todos que me passassem o material que tinham. Eu trabalho com edição de vídeo e vou expor esses caras", relembra, apontando que todo o material, incluindo os cortes, havia sido produzido pelo próprio Mil Grau e seus fãs. "Tudo o que utilizei foram vídeos salvos por eles. Eles fizeram um dossiê contra si mesmos."

A partir daí, o conflito cresceu. A cada dia, Regis ajudou a coordenar pressões sobre as plataformas onde o canal Mil Grau produzia conteúdo, e a própria Microsoft, cujo console emprestava seu nome para o grupo. Por três dias seguidos, a mobilização emplacou hashtags como #TwitchApoiaRacista e #YouTubeApoiaRacista nos trending topics do Twitter.

Tudo se intensificou quando a primeira resposta de empresas como Microsoft e Twitch passou a publicar notas de repúdio e solidarização com os negros, em parte pela mobilização contra o canal Mil Grau, em parte pelas manifestações contra racismo ao redor do mundo após a morte de George Floyd. As publicações vieram já em um momento onde as denúncias contra Mil Grau se amontoavam nas redes sociais.

"A posição da Twitch foi decepcionante. Eles postaram a favor do #BlackLivesMatter [traduzida no Brasil como "Vidas Negras Importam"], mas não baniam racismo da própria plataforma", conta Regis. "Com o YouTube foi muito mais difícil. Fui procurar maneiras de denunciar e fiquei sabendo que, para que o algoritmo da plataforma entenda uma sinalização de denúncia como urgente, precisaríamos de 20 mil denúncias."

A partir daí, Regis decidiu montar um tutorial de como denunciar vídeos no YouTube, ao lado de um dossiê com diversas imagens e trechos de vídeos com mensagens com discurso de ódio. "Eles próprios publicavam todos esses trechos de transmissões ao vivo em seus canais no YouTube", diz o editor.

"Sinto que fiz o que podia. Tive coragem para combater esses caras. Eu fui lá, e não tinha nada a perder. Muita gente foi atrás de mim, pessoas que tinham vontade de fazer algo a respeito, mas se sentiam caladas pela sensação de que poderiam ser perseguidos, assediados. Esse é o modus operandi dessa galera [do Mil Grau]."

Atuação das empresas

Regis não vê com bons olhos a atuação das empresas onde Mil Grau publicava seu conteúdo. "É hipocrisia. A cara de pau é tão enorme que elas são capazes de emitir notas de repúdio, mas não são capazes de tratar o assunto diretamente", dispara o editor. "Elas são algumas das culpadas por parte das pessoas confundir racismo e ódio como liberdade de expressão."

"Há quantos anos o Mil Grau está aí? E o que essas plataformas fazem para proteger as comunidades [de minorias]? Elas repudiam [o discurso de ódio] publicamente, mas o que elas fazem para proteger essas pessoas? E para dar visibilidade? Nenhuma dessas plataformas está fazendo nada. No máximo, eles estão batendo palmas", indaga.

Regis faz um apelo para que negros continuem a pressionar por mais ações a favor de representatividade. "Não batam palma. Façam exigências, para que as plataformas saiam do discurso. Como elas transformam discurso em ação? Estamos distantes de conseguir que algo [a favor da representatividade dos negros] seja feito", diz.

Apesar do sucesso da mobilização contra o discurso de ódio do canal Mil Grau, Regis se vê dividido sobre a luta contra o racismo e o discurso de ódio na comunidade de games. "Sabemos que o mundo dos games é extremamente problemático. A única chance de começarmos, a passos de formiga, a mudar, é primeiro: que as plataformas sejam claras e transformem o discurso em ação. Que elas tratem diretamente sobre esse tipo de assunto. Se um canal como o Xbox Mil Grau fale algo a respeito [de ódio e preconceito], que elas diretamente tomem uma ação", enumera.

"Em segundo lugar: as pessoas precisam ser mais vocais, especialmente influenciadores. Eu era seguido por pessoas com um, dois milhões de seguidores. Se há um limite para tudo, é necessário que os influenciadores sejam os primeiros a mobilizar as pessoas."

"Por fim, peço que a galera se eduque a respeito do preconceito. É uma responsabilidade individual. Não coloquem o peso em homossexuais, negros e outros o peso de traçar uma linha, um limite. A responsabilidade é de vocês", conclui.

Outro lado

O The Enemy entrou em contato com o canal Xbox Mil Grau por e-mail, mas não obteve resposta até a publicação desta entrevista.

Nas redes sociais, o grupo publicou um comunicado, assinado pelo criador do canal, Christoph Schlafner, o Chief, no qual diz que "a XMG jamais cometeu atos de racismo ou discriminação".

O texto também fala que o canal é recomendado para maiores de 18 anos e que faz "brincadeiras e piadas conhecidas como de 'humor negro'". Após a repercussão, o comunicado foi apagado da conta do Mil Grau no Twitter, assim como todas as outras postagens na rede.

Veja a íntegra do comunicado:

Por meio de sua assessoria de imprensa, o YouTube compartilhou sua política em relação a proibição de discurso de ódio e iniciativas em prol da diversidade sendo desenvolvidas no Brasil.

De acordo com a última atualização nas diretrizes da comunidade feita pelo YouTube, em junho de 2019, será removido todo conteúdo que promover a violência ou o ódio contra pessoas ou grupos com base em diversas características, como etnia, identidade e expressão de gênero, raça, orientação sexual, entre outras. Veja mais detalhes.

As violações da política do YouTube são penalizadas com um sistema de três avisos e notificações por e-mail. Primeiro, o canal recebe um alerta, por entender que o criador não tem a intenção de violar as políticas. No primeiro aviso, o canal fica impedido por uma semana de enviar vídeos, histórias, fazer transmissões ao vivo, criar thumbs, postar na aba de comunidade, criar ou editar playlists.

Caso o canal receba um segundo aviso, no mesmo período de 90 dias, ele não poderá postar conteúdo por duas semanas. Caso receba três avisos em 90 dias, o canal será removido permanentemente.

Na última semana, o YouTube Brasil tem reunido vídeos de seus criadores que discutem a questão racial no Brasil em quatro playlists: "Entendendo a questão racial no Brasil", "Como falar com as crianças sobre injustiça racial", "A Voz dos Criadores" e "Protestos contra injustiça racial".

Além disso, a plataforma também vai realizar lives, a partir desta terça-feira (9), com criadores negros. A primeira live reune Gabi Oliveira, o comediante Yuri Marçal e Felipe Neto. Por fim, a plataforma também transmitirá a primeira Parada Virtual do Orgulho LGBTQIA+, em 14 de junho.

O The Enemy também procurou Twittter e Twitch, que também não responderam até o momento de publicação desta entrevista.