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Review: Watch Dogs: Legion

Com mecânica de recrutamento, série encontra sua razão de ser em meio a uma Londres distópica

Por Pedro Henrique Lutti Lippe 28.10.2020 08H01

Watch Dogs finalmente achou sua vocação.

A série nasceu como uma espécie de Assassin’s Creed dos tempos modernos, e depois tentou abraçar a atmosfera de GTA V para sua primeira sequência, mas tinha muita dificuldade em criar uma identidade própria. Até agora.

Watch Dogs: Legion encontrou na ambiciosa mecânica de recrutamento um grande trunfo, que eleva de uma só vez tanto a jogabilidade quanto os temas da série.

Divulgação/Ubisoft

Após uma evidente conspiração colocar a culpa de uma série de atentados terroristas no grupo de hacktivistas DedSec, o governo decide privatizar toda a operação de segurança nas redondezas de Londres. Agora sob o controle de uma empresa chamada Albion, a capital britânica rapidamente se transforma em um pesadelo distópico onde privacidade e liberdade são meras lembranças nostálgicas.

Neste cenário de dificuldade, a DedSec é obrigada a se reerguer para fazer oposição não apenas aos verdadeiros culpados pelos atentados, mas também a todos os oportunistas que encontraram maneiras de aproveitar a crise para encher os bolsos. O grande problema: basicamente todos os membros do grupo foram mortos.

Felizmente, por um motivo ou outro, 99,9% dos habitantes de Londres – incluindo os próprios funcionários da Albion – estão a uma missão de recrutamento de distância de suas carteirinhas de membro da DedSec.

Qualquer NPC encontrado no mundo aberto pode um personagem controlável. É uma daquelas promessas de marketing que deixam até o fã mais otimista com o pé atrás. Mas a realidade é ainda mais chocante: a mecânica funciona. E muito bem.

Divulgação/Ubisoft

Por mais que a Ubisoft tenha tentado vender a promessa na base do humor – “você pode controlar a velhinha!” –, o sistema de recrutamento de Watch Dogs: Legion diverte por muito mais do que apenas o fator comédia. A variedade de personagens chega a ser obscena. Eles têm diferentes atributos físicos, habilidades especiais, vantagens e desvantagens, e às vezes até vêm munidos de armas, dispositivos, veículos e drones únicos. Dá pra passar horas só brincando de olheiro, escolhendo e testando novos operadores pelo mundo.

Com exceção de um ou outro objetivo, é possível completar praticamente todas as missões do jogo com qualquer personagem (no contexto da história, quem hackeia as câmeras e portas de segurança pelo mundo não é o personagem que você está controlando, mas sim uma inteligência artificial que a DedSec roubou). Mas a graça está na experimentação: às vezes, a escolha de um operador diferente pode tornar um objetivo específico mais desafiador ou até trivial.

Os personagens também têm vozes próprias e linhas de diálogo diferentes para cada situação, ainda que figurinhas repetidas comecem a aparecer após certo tempo de jogo.

Sem um protagonista tradicional como Aiden ou Marcus, porém, a história de Legion às vezes parece um pouco desconectada e impessoal. Os fios condutores da narrativa são personagens como a sobrevivente da escalação original da DedSec Sabine e a inteligência artificial Bagley. São eles que fazem a história avançar, enquanto os avatares dos jogadores se contentam a tecer comentários sobre o que está acontecendo.

Mas mesmo os operadores genéricos têm seus momentos na narrativa. Em um determinado momento da campanha, um de meus operadores morreu enquanto tentava escapar das premissas de uma missão. O controle imediatamente passou para um outro operador que estava por perto, e a personagem que me deu a missão – que ainda estava julgando se poderia ou não confiar na DedSec – comentou que uma morte em campo garantia alguns pontos. São pequenos toques de contexto que dão coesão ao sistema.

Divulgação/Ubisoft

O maior pecado de Watch Dogs: Legion é o fato de que o nível de criatividade no aspecto das missões não acompanha a engenhosidade do sistema de recrutamento. A maioria esmagadora das missões envolve o mesmo tipo de atividades que já existia em Watch Dogs 2: coisas como explorar tubulações com o bot aranha, cumprir quebra-cabeças de circuito elétrico e pular de câmera em câmera até encontrar o laptop que tem a chave digital que você precisa roubar.

Não é como se a ação seja ruim – vasculhar um novo prédio antes de começar a invasão é sempre algo empolgante –, mas como os objetivos são previsíveis, o jogo não aproveita todo o potencial do sistema de recrutamento. Não há, por exemplo, nenhuma missão que cobre o uso de três tipos diferentes de operadores especialistas – que é algo que poderia render quebra-cabeças e desafios muito criativos.

Além da parte de espionagem, o jogo também oferece um sistema de combate corpo-a-corpo bem básico com mecânicas de bloqueio e esquiva seguida de contra-ataque. Dá para o gasto. E é engraçado como inimigos costumam esperar que você saque uma arma antes de começar a atirar; caso você resolva sair ‘na mão’, até mesmo atiradores de elite têm honra o suficiente para não trazer um rifle para a briga de rua.

Mesmo com essas ressalvas, progredir por Watch Dogs: Legion ainda é interessante o suficiente. O mundo aberto do game não é inchado como os de outros títulos do gênero. Todas as atividades podem ser encontradas facilmente no mapa, e muitas outras ainda aparecem como oportunidades emergentes – você pode, por exemplo, dar de cara com um potencial operador especialista na rua, e imediatamente conversar com ele para iniciar uma missão de recrutamento.

O sistema de progressão aberto de também é algo que merece elogios. Watch Dogs: Legion permite que você gaste pontos de tecnologia livremente em diferentes habilidades e aparelhos na ordem que desejar desde o início da campanha. É uma dose a mais de liberdade em um jogo que levanta justamente essa bandeira.

Divulgação/Ubisoft

E por falar em levantar bandeiras: o novo Watch Dogs certamente faz muito disso, especialmente para um jogo da Ubisoft, que jura de pés juntos que seus jogos não têm mensagens políticas.

Imediatamente após entrar no esconderijo da DeadSec pela primeira vez, o jogador ganha acesso a cerca de 15 minutos de episódios de podcasts fictícios que existem naquele mundo, comentando assuntos como a ligação entre fascismo e ‘big data,’ transumanismo, algoritmos como ferramentas de controle e as relações incestuosas entre governos e corporações. Ainda que o jogo pareça confundir constantemente os conceitos de “resistência” e “revolução”, a mensagem é clara e muito pertinente, especialmente frente a todos os paralelos entre a Londres do jogo e a Londres do Brexit. (Recomendo muito escutar os podcasts – especialmente o de comédia. As atuações nas gravações são muito boas, e ainda mais com o áudio original em inglês.)

A mesma carga política também transparece nas missões da campanha principal, que enchem o copo na fonte de Black Mirror para inventar inúmeras maneiras horríveis com as quais pessoas poderosas podem se aproveitar daqueles que estão abaixo por meio da tecnologia. Merecem destaque – mas não spoilers! – os arcos da mafiosa Mary Kelley e da genial guru da tecnologia Skye Larsen. Certos pontos de ambas as tramas chegaram até mesmo a me deixar tenso, de tão perturbadoras.

Divulgação/Ubisoft

Por fim, vale mencionar: Watch Dogs: Legion terá um modo multiplayer com opções cooperativas e competitivas, que será adicionado ao game através de uma atualização gratuita. Como ainda não tivemos a oportunidade de testar o conteúdo, tal modalidade não foi contemplada neste review.

Watch Dogs: Legion é um avanço enorme para a série, que agora tem um caminho claro pela frente, pavimentado pela engenhosa mecânica de recrutamento. Ainda que a história deixe um pouco a desejar por não ser centrada em uma figura como o carismático Marcus de Watch Dogs 2, é difícil lamentar a troca que foi feita considerando tudo o que os operadores recrutáveis proporcionam em termos de variedade de jogo. O futuro é promissor, mas o presente já é muito bom.

Nota do crítico