Intromissões

Humanimal

Por Andres & Fiks 04.07.2006 00H00

[Humanimal]

Harold Bloom propõe que, com seu teatro, Shakespeare inventou a noção de humanidade. No recém-lançado Os criadores (Editora Campus) o polêmico Paul Johnson afirma que Shakespeare é o mais fecundo dos humanos. Em São Paulo, as duas montagens teatrais de Ricardo III confirmam que Shakespeare vai além da criação do humano. A carpintaria do texto aponta para o que temos de animal e recupera a humanidade pela percepção do fracasso. Ricardo, o anti-herói deformado, cativa por sua ironia e aproximação com o público. A todo o momento ele anuncia para a platéia sua condição física comprometida de nascença e cada etapa de seu cuidadoso plano para chegar ao trono. Ricardo justifica sua vilania pela aparência repugnante, mas isto não se sustenta para si nem para o espectador. O sucesso de sua empreitada revela que um desejo não tem fim. Não há completude. Assim como em Macbeth a culpa aparece como uma tormenta via sonhos que impedem a comemoração de um aparente triunfo. Ricardo sabe que algo fracassou com a vitória. Shakespeare deixa claro que a condição humana se dá pela percepção do erro. Só assim podemos continuar. Ricardo não tem como continuar, porque não tem com quem interagir. Quem sobreviveu se transformou em peão de seu xadrez. Não há com quem dialogar.

[Vidro barato] 

Engraçados e atuais são os comentários agudos que Ricardo faz sobre a estupidez humana. Com Ricardo III percebemos como o ser humano gosta de ser enganado. Palavras de amor se transformam em atos sado-masoquistas. Todos caem na mais banal conversa sedutora. Uma das mais impressionantes características de Shakespeare é o cenário caseiro de suas histórias. Mesmo com a escolha freqüente de reis, rainhas e súditos - mais atraentes pelo glamour - não há qualquer respeito às tradições morais ou religiosas. Nem mesmo há a mínima expectativa sobre a fidelidade entre parentes ou seres amados. Somos todos corruptos em potencial e por meras palavras. Al Pacino confirma que palavras bem ditas são a melhor forma de examinarmos a herança de Shakespeare. O arrojado Ricardo III, um ensaio foi lançado em DVD pela Fox. Como o ator/diretor conseguiu colocar em uma montagem mambembe e recortada toda a essência de Ricardo III? Quem não acredita na inteligência dos atores aqui leva uma porrada. Pacino chamou os melhores especialistas em Shakespeare - quase todos são atores ingleses bastante conhecidos - para tratar do estilo, interpretação e a importância desse texto. Entre as cenas, Pacino entrevista transeuntes e lhes pergunta o que sabem sobre o rei Ricardo III. Hilariante. A conclusão mínima é que Ricardo é lembrado como o maior dos vilões.

[Doce vingança, violência na lei] 

Sai em DVD (Califórnia) a versão de Michael Radford para O mercador de Veneza. Depois de Ricardo III, um ensaio, fica claro que Al Pacino é o Laurence Olivier de nossa era. O filme trabalha - em prólogo - a explicação para a persona vingativa de Shylock, amenizando a tradicional interpretação anti-semita do texto. Shylock é humilhado por Antônio em público apenas por ser judeu. Bassânio pede ao judeu um empréstimo, oferecendo como garantia três embarcações de Antônio - autorizado pelo mesmo - repletas de mercadorias que se aproximam de Veneza. Antônio faz isso por amor a Bassânio. Este quer capital financeiro para garantir a consumação de seu amor por Pórcia. Shylock indica os termos, já percebendo as comichões da vingança. Propõe que se Antônio não conseguir saldar sua dívida extrairá um naco de sua carne, cláusula apresentada como garantia absurda, e, portanto de improvável execução. Nas peças de Shakespeare o amor não tem tratamento direto, é mais um sentimento que mobiliza. Só em Sonhos de uma noite de verão este tema é escancarado. Em O mercador de Veneza o amor fica sugerido entre Antônio e Bassânio. Nesta versão cinematográfica a relação amorosa entre ambos é aberta. Entretanto a peça fala mais que do amor, lealdade ou até mesmo questões anti-semitas. O mercador de Veneza talvez seja o texto definitivo sobre as peripécias da lei.

[Capitanias hereditárias]

Aos acostumados com cartórios - restos da divisão do Brasil entre Portugal e Espanha -, assinaturas, carimbos e desconfianças infindáveis sobre valor de documentos, pode achar estranho. Pensar que Shakespeare se debruçou sobre uma complexa trama para tratar do valor da palavra! Palavra, aqui, como sinônimo de compromisso e também do conceito poético, até amoroso em sua significação. Na época de Shylock, século XVI a lei não era necessariamente escrita. Até hoje a constituição inglesa ainda não foi redigida! Judeus eram restritos aos guetos, mas a Igreja fazia vistas grossas às negociatas que envolviam juros e empréstimos, mas que sabidamente sustentavam as rotas de comércio e dos descobrimentos. Shylock se baseia no amparo de uma lei verbal. Isto é destruído pela bela Pórcia que, para salvar Antônio e por tabela seu amor, Bassânio, se finge de advogado. Numa magistral defesa apóia-se em um contra-senso da proposta de Shylock: se este retirasse um pedaço da carne de Antônio, ele vai sangrar e até morrer pelo ferimento. Nada disto estava no contrato. Assim Pórcia consegue derrotá-lo em humilhante desempenho e Shylock é obrigado a resignar-se. Quem tem mais poder: a lei ou quem sabe fazer cabeças a despeito dela? Com a palavra os políticos brasileiros. Ou melhor, o artigo de Paulo Ghiraldelli Jr. no excelente fascículo sobre Shakespeare da Entrelivros clássicos (Duetto Editorial), ainda nas bancas.

[All about beauty] 

A bela do palco (Stage beauty) sai em DVD (Califórnia). Adaptação feita pelo próprio Jeffrey Hatcher, autor da peça, mostra a cena teatral inglesa no século XVII. Período em que somente atores homens podiam pisar nos palcos, mesmo para os papéis femininos, Ned Kynaston (Billy Crudup - perfeito) brilha como uma prima-dona sem rivais. Até que sua fiel camareira, feita por Claire Danes resolve se arriscar e representar os papéis femininos shakespereanos em pulgueiros de Londres. Numa bem acabada trama, criador e criatura se envolvem em uma variação de A malvada, com Betty Davis. Entretanto A bela do palco não trata apenas da inveja. No recém-lançado documentário em DVD pela Warner Im going to tell you a secret (The Re-Invention tour), Madonna mata a curiosidade de quem não entende sua duradoura relação com o cineasta Guy Ritchie. A multiartista, depois de cenas e mais cenas em que é zombada pelo marido revela que a força de seu casamento vem pelo constante desafio imposto por ele, que aparentemente a desdenha. Ritchie não bajula a esposa. Pelo contrário, goza de suas esquisitices. Falta às apresentações da esposas sem a mínima vontade de se desculpar. Acompanha a caravana da turnê e se diverte do seu jeito, freqüentando pubs, enchendo a cara de cerveja e a mega-star de tédio. Não é à toa que o show de Madonna em 2004 se chamava The Re-Invention tour. O que resta a uma mente criadora que aceita uma das mais tradicionais instituições inventadas pela humanidade? O ser humano é banal porque copia modelos. Madonna sabe disso e que é preciso inventar para não cair no tédio. Jovens não querem crescer; adultos não querem envelhecer. A bela do palco mira o mesmo alvo. Após a derrota de seu estilo de representar - quando as mulheres definitivamente tomam seus lugares no palco - o personagem feito por Billy Crudup tem de se reinventar. Depois de desprezado pelo rei como diva procura sua antiga camareira e atual substituta, a nova estrela dos palcos. A subversão da ordem via afeto e sexo mostra que só na aventura humana é que pode surgir uma continuidade criadora.

[Senhor das armas]

O senhor das armas (Lord of war) sai em DVD e prova ser um dos poucos grandes filmes do ano passado. O ótimo roteirista e diretor Andrew Niccol - que já escrevera O show de Truman, além de roteiro e direção de Gattaca - volta com uma versão definitiva e shakespereana sobre o poder sem limites. Aquele que decididamente leva à solidão. O senhor das armas mostra que moral não é o problema, mas que a vida criminosa só pode resultar em isolamento, mesmo com o aparente sucesso no crime. O personagem feito por Nicolas Cage faz tudo para articular uma vida criminosa de sucesso paralelamente a uma dedicação amorosa à família. Impossível. O mal da mentira é que ela impede a manutenção de uma idéia sobre o outro. Há um limite para Cage manter seus amores afastados da sordidez. Patrícia Highsmith já provara isto com o personagem Ripley em quatro romances. A procura desesperada deste anti-herói por alguma companhia é uma das características do personagem. Ripley mente e está condenado à eterna solidão. O amigo americano, de Wim Wenders - também lançado em DVD em ótima cópia (Versátil, como sempre) - mostra como o falsário se desespera para ser cúmplice de um crime para o qual não fora convidado, mas com o qual se associa pela possibilidade de camaradagem e a simples identificação com outro ser maldito e só.

[Canalhices da paixão]

Por conta do destino (Heights) não passou pelos cinemas e foi discretamente lançado em vídeo (Warner). O filme ousa com competência e vai até a fronteira entre o entusiasmo e a indiferença causada pelas paixões. Diana (Glenn Close) é uma diva da Broadway que estréia uma nova montagem de Macbeth. Sofre calada com um casamento aberto, em que apenas o marido parece se divertir. Sua fama é de xavecar jovens atores promissores. Apaixona-se coincidentemente - ou não - pelo vizinho de sua filha que já vive com o namorado. O filme é uma amarga comédia de erros, bem ao estilo de Shakespeare, que quase dá em tragédia. Aristóteles dizia que o ser humano arruma confusões quando se sente completo. Para este filósofo, um dos princípios do humano é a necessidade de nos sentirmos ignorantes para continuar buscando um saber. Por conta do destino aposta no resgate da paixão, seja pela novidade, seja pela busca dela no passado. A paixão envolve a admiração - sempre enganosa - que o objeto de idolatria é alguém que possui algo que não temos. É a idéia patética e humana da completude. A paixão certamente é uma cilada para aqueles que vivem na tranqüilidade das relações. Nunca estamos livres da incompletude. Viver é perceber que sempre falta algo. Em Por conta do destino personagens do cotidiano que aparentemente vivem suas escolhas são pegos por novas verdades: Diana não é tão liberal como se apresenta; sua filha não é tão feliz na relação como anuncia e seu namorado não consegue esconder um passado que ele mesmo pensava estar morto. A paixão vem para evitar a morte, mas é decididamente com ela que morremos em uma entrega que nunca satisfaz.

[Apego, idolatria e ternura]

Assim como em A bela do palco, Por conta do destino questiona o sentido da paixão em detrimento ao amor. Enquanto o primeiro toma o passado longínquo para tratar de uma questão absolutamente atual o segundo mergulha na contemporaneidade de Nova York - a cidade ícone dos modernos - para ir até o limite entre o amor, a paixão e o sexo. Este é apenas referido como uma relação de cumplicidade. A modernidade parece pender mais pela paixão, a busca pela conquista. Entretanto o esvaziamento é inevitável. A personagem de Close (Diana) tem poder, saber. É sedutora e conquista. Mas não se satisfaz. Sua filha e o namorado vivem aparentemente bem, mas numa relação de superfície, um acordo frouxo que busca sustentação em um casamento que demora a chegar. O que ocorre de forma subliminar - o resgate de uma ternura das relações - é o que dá volume progressivo à trama. Este é o segredo do filme e talvez um dos segredos da vida amorosa satisfatória. E esta só pode ocorrer com acordos. A mentira tira o chão, dissolve a referência. Por conta do destino é um título abrasileirado e irônico. O filme trata exatamente de não deixarmos nossas vidas na mão do destino, o qual nunca traz a maturidade. Se esta existe, só pode vir com a abdicação do sentimento de desprezo por aqueles que nos amam. Quem cumpre determinações sempre acredita que é um fracasso, portanto não pode ser amado. Ricardo III acredita que nunca será reconhecido por conta de seu físico repugnante. Zomba de quem lhe ama, apesar de nunca perceber que além da conquista por belas palavras pode provocar um amor verdadeiro.

[O mal da leitura]

Leitor por horas é uma peça de câmara. Em cartaz no Sesc Paulista, quarenta lugares são ocupados por uma platéia que senta em círculo fazendo o contorno envidraçado de uma biblioteca. O centro é ocupado por uma pequena poltrona, uma mesinha e uma cadeira. Neste acanhado cenário que se avoluma pela iluminação impressionante assistimos a um embate em que a impossibilidade de comunicação é o resultado mais freqüente. Lorena (Ana Beatriz Nogueira, perfeita) é uma moça cega após um acidente e vive sozinha com seu autoritário e violento pai (Sebastião Vasconcelos). Ismael (Luciano Chirolli) é contratado para ler clássicos para a jovem reclusa. Lampedusa, Conrad, Schintzler e Flaubert são incapazes de fornecer material para que os três possam se entender. O pai pensa que sabe o que é melhor para sua filha. Esta tem certeza que conhece o rapaz pela voz, titubeios e inflexões e o moço nunca aceita uma discussão demais radical. Os três personagens têm certeza de tudo, mas não sabem de nada. Parecem temer uma crise, pois esta nos deixa burros. Duvidar é perigoso e exige demais. O recém-lançado História universal da destruição dos livros (Ediouro), de Fernando Báez, afirma que 40% da destruição de bibliotecas se deram por causas naturais, portanto 60% pela mão do homem. Leitor por horas prova como a obra literária pode incomodar especialmente pela cegueira da comunicação.

[Domínio em declínio]

Todo ano a HBO adapta uma peça ou livro ganhador do prêmio Pulitzer. Desta vez Richard Russo fez o roteiro de sua própria obra. Empire falls (já lançado por aqui pela Editora Globo e atualmente em exibição pela HBO brasileira) é o nome do filme e da pequena cidade em decadência da Nova Inglaterra. A matriarca da família Whiting (Joanne Woodward) ainda comanda a região por pura inércia. Com a falência das indústrias têxteis e madeireiras nada mais resta do que um comércio modorrento e estagnado. Ed Harris é um quarentão recém-divorciado que dirige um pequeno restaurante. Ainda com esperança de ser dono deste comércio, divide sua vida entre os problemas com sua amalucada ex-esposa (Helen Hunt), a doce filha adolescente, o irmão sonhador e a Sra. Whiting que ainda espera casá-lo com a filha inválida. Nada acontece em Empire falls até que um massacre típico da modernidade dá o tom de tragédia e prenúncio de uma conclusão que está escrita na cultura desde Shakespeare. Empire falls não esconde que é uma metáfora da sociedade norte-americana e atesta que o conhecimento da verdade - e aqui somente uma catástrofe pode revelá-la - nos aproxima da morte. Ao mesmo tempo esta consideração pode servir de inspiração para uma interpretação diferente da realidade. Uma outra tentativa. Só assim pode haver continuidade e mudança.

[As mulheres em Shakespeare]

Na leitura atenta ou ao atender às suas peças somos presas fácil do poeta e podemos pensar que ele prefere os homens como protagonistas. Ledo engano! Curiosamente não há uma peça sua com nome de mulher; há apenas nas obras líricas A violação de Lucrecia.

De resto, todas as vezes que o nome feminino surge é para acompanhar o masculino, geralmente este como principal: Romeu e Julieta, Troilo e Cressida e Antonio e Cleópatra. Já o nome masculino abunda: Hamlet, Titus Andronicus, Macbeth, Rei Lear, Péricles, Othello. Isto não implica que as mulheres sejam secundárias. Em Macbeth, por exemplo, Lady Macbeth (nem nome ela têm) domina e reina induzindo o frágil esposo aos piores crimes. Titus sofre na mão da perversa Tamora. Lear vai aprender que não se divide herança em vida para filhas que parecem amorosas e nem se deserda a que o ama, Cordélia, (saquem o nome!). Em O mercador de Veneza a mulher travestida de advogado é a mais hábil, inteligente e perfeita defensora de Antônio e a cruel acusadora de Shylock.

Curiosamente em Ricardo III não há esta mulher, ou melhor, ele é esta mulher. Shakespeare abusa do monólogo dirigido, espécie de diálogo com a platéia e o personagem seduz tanto as mulheres da corte, os homens que o bajulam e a nós, embasbacados com sua audácia e despudor. Além da imoralidade incestuosa com que trama as mortes dos irmãos e sobrinhos e atrai a viúva cunhada e a filha desta! Que melífluo consenso se passa entre ele e nós?

[O Brasil é shakespeareano]

O Bardo é atual, repete-se, está na essência do homem, portanto atemporal como todos os clássicos. Na platéia dos teatros que levam o Ricardo III há nítido desconforto e cumplicidade com a trama. Na sua tradução o ousado Jô Soares introduziu um "tudo termina em sopa" dito por desiludidos cidadãos. Concluímos que na Inglaterra dos Yorks não havia pizza... Nem justiça social ou amor às leis e ao povo, apregoados nos discursos de campanha. Sim, até isto existe neste texto espetacular! Mas na ficção o bem vence, os heróis são agraciados e o mais fantástico de tudo: os vilãos têm um lampejo de sua vileza e sordidez. Sabem que merecem castigo! Macbeth e Ricardo nas suas falas finais choram porque ninguém se lembrará deles depois de mortos. Nem colocarão flores em seus túmulos. Sabem que foram poderosos e temidos. Amados, nunca! É divertido nos reconhecermos nos personagens da peça de 1545, mas também dói!

Agora que o inverno do nosso descontentamento
transformou-se neste glorioso verão, sob o sol de York,

E todas as nuvens que pesavam sobre nossas casas
estão sepultadas no profundo seio do oceano,

Nossas frontes estão cingidas pelas coroas da vitória.
Nossas armas pendem como troféus,
nossos sinistros alarmes passaram a alegres reuniões
e nossas terríveis marchas em deliciosas danças se transformaram!

Ricardo III
Shakespeare